O difícil cultivo da liberdade

Pere Borrell del Caso, "Escapando à crítica" (1875)
Paseo del Prado e Buen Retino, Madri

Felipe Cardoso Silva

As relações entre cultura, educação e liberdade não são tão simples quanto tendemos a crer. Em geral, é comum que pensemos em termos de educação e emancipação, como se, por si só, o exercício da educação e da cultura garantisse o advento da liberdade. Pretendo mostrar rapidamente algumas nuances desse processo. Para tanto, busco responder a uma questão aparentemente mais localizada: quais são as relações que podemos traçar entre a ideia de cultura e a ideia de universidade?

Em poucas palavras, penso que a universidade é um produto da cultura para a própria cultura, uma forma de cultivar e amadurecer as disposições humanas – uma maneira, em suma, de humanizar o humano. Percebe-se, contudo, desde logo, que humanizar o humano não possui um significado dado; afinal, há tantas concepções de humano quanto astros no firmamento. Qualquer concepção do que é ser humano já pressupõe, portanto, uma certa cultura.

Em geral, costuma-se contrapor os conceitos de natureza e de cultura. No entanto, o conceito de cultura, etimologicamente, se origina da natureza, designando, originariamente, o cultivo agrícola ou a lavoura. Por essa razão, Terry Eagleton afirma que “se a cultura significa cultivo, um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz”. Em resumo, como a cultura surge, materialmente, da própria natureza, a natureza produz uma cultura que transforma a própria natureza.

Frente a essa acepção ampla de cultura, é interessante observar como sua concepção se tornou restrita. Ou cultura designa uma acepção antropológica, descrevendo as produções humanas de um determinado período, ou denomina uma acepção estética, restrita ao campo da produção artística. Para Eagleton, a primeira acepção é ampla e debilitante, enquanto a segunda é restrita e sufocante. Nesse contexto, cultura não seria simplesmente a produção humana em geral, nem simplesmente o estético, mas aquilo que cultiva as disposições naturais do humano. A questão que se coloca é determinar quais disposições humanas devem ser cultivadas.

Ingressamos aqui no problema mais geral da educação e, mais especificamente, da universidade. Nesse passo, penso que é interessante retornarmos a Kant. Afinal, ao leitor dos escritos de Kant sobre pedagogia, é surpreendente encontrar a afirmação de que as duas invenções mais difíceis do gênero humano são a arte de governar e a arte de educar. Ao que parece, o governo e a educação são constantes da cultura: todos os povos constituíram alguma forma de governo, mesmo que violenta, assim como alguma maneira de educação, ainda que precária.

Contudo, o ponto não está na realização de algum modo de governo e de educação, mas sim na efetivação de formas de governar e educar que conduzam à liberdade. Kant compreende que o governo e a educação precisam produzir a própria liberdade; quer dizer, que conduzam à realização da autonomia e à efetivação da moralidade no mundo. O problema consiste, portanto, no fato de que governar e educar envolvem sempre a limitação e a coerção do livre-arbítrio, condição indispensável para a própria criação de instituições de governo e de ensino.

Afinal, não conseguiríamos pensar o governo sem restrições, nem a educação sem disciplina. Nesse caso, existe uma antinomia da razão pedagógica, bem como uma antinomia da razão governante. O desafio posto por Kant para todos os que querem se envolver no educar e governar consiste, portanto, em conceber uma forma de arte que, ao mesmo tempo, restrinja o livre-arbítrio e instigue a liberdade.

É um desafio complexo, pois se trata de inventar uma arte de governar e uma arte de educar que sejam críticas, isto é, que incentivem, ao invés da servidão e da docilidade, a “inservidão voluntária” e a “indocilidade refletida”. Como se percebe, tentar trilhar esse caminho mais longe nos colocaria na companhia de Foucault, o que não será o caso.

Convém, portanto, retornarmos ao tema da universidade. A ideia de universidade, por muito tempo, foi formar o culto de um determinado período e região geográfica, vinculada à ideia de República das Letras. No contemporâneo, a ideia de universidade fragmentou-se em diversos ideais, os ideais descritos por Robert Paul Wolf, quais sejam: o santuário dos eruditos, o treinamento de profissões, a prestação de serviços e as linhas de montagem do establishment.

Se a cultura é o cultivo de disposições naturais e a universidade tem por função executar esse cultivo, convém discutir quais disposições naturais do humano queremos cultivar. Kant, talvez, tenha dado uma dica com a ideia de liberdade. Contudo, essa ideia pressupõe, sempre, a ideia de razão, algo que, como sabemos, encontra-se em crise.

Mas, afinal, o que devemos entender por crise da razão? Devemos essa expressão a Edmund Husserl. Segundo Husserl, a crise da razão é resultado do próprio discurso científico. Sem recusar o progresso científico, Husserl indaga qual o significado desse progresso em relação ao sentido da vida humana. Em termos gerais, Husserl entende que à razão, elaborada pelos gregos, corresponde uma determinada finalidade, intimamente vinculada ao problema do sentido ou da ausência de sentido da própria existência humana.

Em termos similares, Horkheimer descreverá a crise da razão pelo crescimento da razão instrumental, concebida como o modelo de meios para fins, contra a razão crítica, capaz de avaliar o sentido dessa experiência. Os termos dessa oposição, sabe-se, não são novos. Kant distingue um uso hipotético da razão prática, também concebido como meios para fins, e um uso categórico da razão prática, que visa às ações como fins em si mesmas. Fenomenologia transcendental, razão crítica ou mesmo imperativo categórico são formas de se conceber um uso da razão que não se limita ao modelo de relação entre meios e fins mas que vê a experiência humana como fim em si mesma. Qual é a conexão disso com a crise da universidade?

Ao se adaptar a demandas externas, seja da Igreja, seja do Estado, a universidade precisa adequar seu funcionamento à estrutura da razão instrumental e, consequentemente, à crise que torna sem sentido seu próprio exercício.

Por mais simples que possa parecer, a universidade só pode sustentar racionalmente sua existência na proporção inversa à sua adequação discursiva ao modelo instrumental, ou seja, ao se propor como espaço que vise ao ser humano, com todas as suas necessidades, como fim em si mesmo. Retomando, portanto, o tema da cultura, percebe-se que o cultivo da liberdade é um cultivo difícil.

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