Carne salgada

Johann Moritz Rugendas

Djalma Augusto (Guto Mello)

A história oficial e a robusta historiografia sobre o Vale do Café Fluminense tornar-se-ia uma referência na década de 1980 e o campo da pesquisa histórica oitocentista fora fundamental nos oitocentos, sobretudo no romantismo literário. Não por acaso, o historiador Vanhagen, um dos expoentes no IHGB (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro), ciente da ausência de uma produção literária científica, escreveu História Geral do Brasil pautado nos romances de Castro Alves, José de Alencar, Gonçalves Dias e Gonçalves Magalhães.

A literatura ficcional tem sido extremamente importante na história da literatura brasileira e universal. Senhora de José de Alencar, Dom Casmurro de Machado, Vidas Secas de Graciliano Ramos, entre outras, são verossímeis e o romancista tem uma elasticidade inexistente na literatura científica, a exigência no devir histórico. O livro Carne salgada (Cajuína, 2025) é um exemplo de “liberdade” na escrita, trabalhando com o imaginário do leitor. O “longo século XIX” – definição essa do historiador Fernand Braudel e um dos principais intelectuais na Escola dos Annales na França – pensou na cultura, na economia e na política em uma sociedade estruturada. O Brasil do século XIX fora patriarcal, mandonista e escravocrata.

Na aristocracia rural e urbana, as escravas atendiam por bem ou por mal os desejos sexuais e cruéis dos sinhozinhos e barões do café. As sinhazinhas e baronesas eram “escravas” do machismo e cerceadas no direito de ir e vir. O livro Carne salgada vai na contramão da história oficial. A sinhazinha Virgínia Helena de Carvalho é feminista, abolicionista e sua história é uma ruptura na cultura dos costumes. Rompe com a censura da Igreja Católica e da família lendo O crime do padre Amaro e O primo Basílio do respeitado escritor do realismo lusitano Eça de Queiróz. Apaixona-se por um escravo comprado pelo seu pai, o Barão de Barra Mansa, na zona portuária do Rio de Janeiro e é levada para a Fazenda Santa Cecília em Barra Mansa, cidade de relevância política e econômica no Vale do Café fluminense. A paixão platônica da Virgínia pelo escravo Mohammed é fruto da sua formação e intelecto, uma folie baudeleriana de Virgínia. Muçulmano, filho de pais envolvidos na histórica Revolta dos Malês na Bahia em 1835, nascido no Recôncavo Baiano, letrado, culto e belo, Mohammed sentiu na carne o ódio e na alma um profundo amor. Carne salgada é uma história sobre um quadro metafísico e dubitável; no entanto, a ideia é desconectar o leitor do pensamento amiúde, seja na história enquanto produção científica, seja em um romance com um quadro típico: o homem ativo e a mulher passiva ou submissa.

O livro é pura transgressão e é um desejo de todas as mulheres, independente da classe social ou cor no século XIX, que se encontra até hoje na nossa sociedade.

Compartilhe:

Translate