Leonardo Almeida Filho
Poética
De desalento e desencanto
faço um vesgo soneto
cheio de vício e de espanto
de pés quebrados, punho ereto
Como quem morre de tédio
faço meu gauche quebranto
De desencanto e desalento
versos de pássaro morto
costuro pras bandas do tempo
sem trupe, tropa ou encosto
sem santo, vela ou incenso
um menestrel sempre a postos
Me acostumei com essa estrada
conheço o uivo do vento
e ouço cigarras cantando
na solidão ao relento
Minha bandeira, meu canto
Minha euforia e lamento.
Não morro quando versejo
Não sofro, não desespero
Escrever não é sentimento
Talvez seja puro tédio
desencanto e desalento
ou mesmo, talvez, nem tanto
desalento e desencanto.
Soneto em redondilhas
Traga e prove um turvo trago
que te trave a língua avara
Vê que nesse mundo amaro
mais te sobra o que faz falta
para a prole de Maria,
para a fome de João?
Tua gula contraria
a fraterna divisão
das coisas que nos são caras
e que tu tornas tão raras
como não devia ser
De tanta gente ignara
não tens vergonha na cara
de seres cruel clichê?
Roteiro sentimental de conselhos inservíveis
Louvado sejas, meu Senhor,
pelo irmão Vento,
pelo ar, ou nublado
ou sereno, e todo o tempo
pela qual às tuas criaturas dás sustento.
São Francisco de Assis, “Cântico das criaturas”
Conte os passos ao redor da praça,
pedras, postes, nuvens, pássaros.
Enumere vira-latas, grave seus latidos,
contabilize o farfalhar das árvores
e os arrepios sob os ventos frios.
Fique atento:
a soma deve ser menor que seus suspiros.
Fotografe poças de chuva,
aprisione o céu de seus reflexos
para futuras aquarelas inefáveis e elusivas.
Catalogue crepúsculos, alvoreceres,
manhãs de sol, tardes de chuva,
noites de grilos, estrelas, vagalumes.
Registre orvalhos, folhas e perfumes.
Fique atento:
não se esqueça do sabor e dos frescores.
Descarte sonhos desfeitos,
rancores, mágoas e saudades.
Libere espaço para o espanto e o estupor
e o coração para as coisas tolas
e imprescindíveis
retalhos que são da grande costura da vida.
Fique atento:
a linha e a agulha que cosem o seu desejo
estão nas mãos do sujeito que te fita do espelho.
Narcisos
Meu coração é o despertar de ventos
um turbilhão de feras em conflito
a escuridão cruel de um precipício
um deus que estraçalha os seus rebentos.
Meu coração pagão tem seus momentos
de libações, de preces, sacrifícios.
Meu coração, que acalmas com teus beijos,
em tua ausência é terra devastada
às vezes, quando voltas, água calma
e quando partes, vagas, pesadelos.
Meu coração carrega em si desejos
de ver-te em mim e em ti a tua amada.
Eu busco ver em ti o meu semblante
já que o que vejo em mim é o teu sorriso
tu és o meu espelho, eu teu Narciso
tu és a virgem trilha, eu viajante.
Eu busco ver em ti o meu sorriso
já que o que vejo em mim é o teu semblante
Babelical (Patuá, 2018)
Ogiva
Para Alberto Bresciani
Armar um poema requer lógica.
Uma lógica secreta,
de seita, confraria,
e que apenas os poetas,
iniciados nas artes dessa alquimia,
conhecem e arriscam articular.
Armar um poema é sempre forma
de amar o poema
que o leitor, ao final,
amando-o também,
tentará eternamente,
e sem sucesso,
desarmar.
Tutano (Patuá, 2020)