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“A Década Perdida”, por Francis Scott Fitzgerald

Quinta Avenida, c. 1930 (New York Public Library Collection)

(Tradução de Miguel Forlin)

Todos os tipos de pessoas frequentavam os escritórios da redação da revista semanal, e Orrison Brown tinha todo tipo de relações com elas. Fora do expediente, ele era “um dos editores” ― durante o expediente, apenas um homem de cabelos encaracolados que no ano anterior editara a Jack-O-Lantern, de Dartsmouth, e que agora estava feliz demais em pegar as tarefas indesejadas do escritório, desde dar um jeito em matérias ilegíveis até ser o garoto de recados, sem o título.

Ele vira esse visitante entrar no escritório do editor ― um homem alto e pálido de quarenta anos, com cabelos louros esculpidos e uma atitude que não era nem envergonhada, nem tímida, nem sobrenatural como a de um monge, mas que tinha algo das três. O nome em seu cartão, Louis Trimble, evocou alguma vaga memória, mas não tendo nada por onde começar, Orrison não ficou intrigado com isso ― até que uma campainha soou em sua mesa, e experiências anteriores o advertiram de que o sr. Trimble seria o seu primeiro prato no almoço.

“Sr. Trimble ― Sr. Brown”, disse a Fonte de todo o dinheiro do almoço. “Orrison ― o sr. Trimble esteve fora por muito tempo. Ou ele sente que fora muito tempo ― quase doze anos. Algumas pessoas se considerariam sortudas por terem perdido a última década”.

“Verdade”, disse Orrison.

“Não posso sair para o almoço hoje”, continuou seu chefe. “Leve-o para o Voisin ou o 21 ou qualquer lugar que ele queira. O sr. Trimble sente que há muitas coisas que não viu”.

Trimble objetou educadamente.

“Ah, eu posso me virar”.

“Eu sei, meu velho. Ninguém conheceu este lugar como você no passado, e caso Brown tente explicar a carruagem sem cavalo, apenas o mande de volta para mim. E você retornará às quatro, certo?”

Orrison pegou seu chapéu.

“Você ficou fora dez anos?”, Orrison perguntou enquanto desciam pelo elevador.

“Eles tinham começado a construir o Empire State”, disse Trimble. “Quando acabaram?”

“Por volta de 1928. Mas como o chefe disse, você teve sorte de perder bastante do que aconteceu.” Como um teste, acrescentou: “Provavelmente havia coisas mais interessantes para ver”.

“Não posso dizer que houve”.

Chegaram à rua, e a maneira como a face de Trimble se contraiu ao rugido do tráfego fez Orrison tentar mais um palpite.

“Você esteve fora da civilização?”

“De certo modo”. Essas palavras foram ditas de um jeito tão calculado que Orrison concluiu que aquele homem não iria falar a não ser que quisesse ― e simultaneamente pensou que talvez tivesse passado a década de 1930 numa prisão ou num manicômio.

“Este é o famoso 21”, ele disse. “Gostaria de comer noutro lugar?”

Trimble parou, olhando atentamente para a casa marrom-clara.

“Lembro-me de quando o nome 21 ficou famoso”, ele disse, “por volta do mesmo ano que o Moriarty’s”. Depois, continuou, quase se desculpando: “Talvez pudéssemos andar por uns cinco minutos pela Quinta Avenida e almoçar em qualquer lugar ao acaso, algum lugar que tenha gente jovem para olhar”.

Orrison olhou-o de relance e pensou mais uma vez em grades e paredes cinzentas e grades; imaginou se fazia parte de suas obrigações apresentar o sr. Trimble a garotas agradáveis. Mas o sr. Trimble não parecia ter isso em mente ― a expressão dominante era de absoluta e profunda curiosidade, e Orrison tentou ligar aquele nome ao esconderijo do almirante Byrd no Polo Sul ou ao de aviadores perdidos em florestas brasileiras. Ele era, ou tinha sido, um sujeito e tanto ― isso era óbvio. Mas a única pista definitiva a respeito de seu ambiente de criação ― e, para Orrison, essa pista não levava a lugar algum ― era sua obediência interiorana aos sinais de trânsito e sua predileção por andar no lado da calçada próximo às lojas e não à rua. Em uma ocasião, ele parou e admirou a vitrine de uma rouparia para homens.

“Gravatas de renda”, ele disse. “Não vejo uma desde que saí da faculdade”.

“Onde você estudou?”

“Massachusetts Tech”.

“Bom lugar”.

“Vou dar uma passada lá na semana que vem. Vamos comer em algum lugar por aqui…” ― Eles estavam perto da rua 60. ― “Você escolhe.”

Havia um bom restaurante com um pequeno toldo logo na esquina.

“O que você mais deseja ver?”, perguntou Orrison, assim que se sentaram.

Trimble pensou.

“Bem ― a parte de trás da cabeça das pessoas”, ele sugeriu. “Suas nucas ― a forma como suas cabeças se ligam aos seus corpos. Eu gostaria de ouvir o que aquelas duas garotas estão dizendo a seu pai. Não exatamente o que elas estão dizendo, mas se as palavras flutuam ou submergem, como suas bocas se fecham quando param de falar. Apenas uma questão de ritmo ― Cole Porter voltou aos Estados Unidos em 1928 porque sentiu que existiam novos ritmos por aqui.”

Orrison tinha certeza de que agora conseguira sua pista e, com delicadeza, não a seguiu nem por um milímetro ― até mesmo reprimiu um desejo súbito de dizer que haveria um bom concerto no Carnegie Hall naquela noite.

“O peso das colheres”, disse Trimble, “tão leve. Uma pequena tigela com um cabo preso. O olhar nos olhos daquele garçom. Eu o conheci certa vez, mas ele não se lembraria de mim”.

Mas, quando saíram do restaurante, aquele mesmo garçom olhou para Trimble um tanto intrigado, como se quase o conhecesse. No lado de fora, Orrison riu:

“Depois de dez anos, as pessoas esquecem”.

“Oh, eu jantei ali em maio passado…” ― Ele se interrompeu abruptamente.

Era todo meio doido, Orrison concluiu ― e se transformou repentinamente num guia.

“Daqui se tem uma boa visão do Rockefeller Center”, apontou com espiritualidade, “― e do edifício Chrysler e do Armistead, o pai de todos os novos prédios”.

“O edifício Armistead”, Trimble se virou para olhar, obedientemente. “Sim… eu o projetei”.

Orrison balançou a cabeça animado ― estava acostumado a sair com todos os tipos de pessoas. Mas aquilo sobre ter ido ao restaurante em maio passado…

Parou diante da placa de metal no pilar do edifício. “Construído em 1928”, ela dizia.

Trimble acenou com a cabeça, confirmando.

“Mas eu fiquei bêbado aquele ano inteiro ― bêbado de todas as maneiras. Por isso, eu não a tinha visto até agora”.

“Ah”, Orisson hesitou. “Gostaria de entrar agora?”

“Eu entrei nele ― muitas vezes. Mas eu nunca o vi. E agora não é questão do que eu quero ver. Nem estaria apto a ver agora. Eu quero apenas ver o modo como as pessoas andam e do que são feitas suas roupas, seus sapatos e chapéus. Se importaria de apertar a minha mão?”

“De jeito nenhum, senhor.”

“Obrigado, obrigado. É muito gentil. Suponho que pareça estranho ―, mas as pessoas vão pensar que estamos nos despedindo. Andarei pela avenida por um tempo, portanto, nós iremos nos despedir. Diga no escritório que estarei lá às quatro”.

Orrison observou-o enquanto se afastava, quase esperando que ele entrasse em um bar. Mas não havia nada nele que sugerisse ou que sequer tivesse sugerido bebida.

“Jesus”, disse para si mesmo. “Bêbado por dez anos”.

De repente, ele sentiu a textura de seu próprio casaco e, depois, esticou o braço e pressionou o polegar contra o granito do prédio ao seu lado.

  • Tradução publicada originalmente na revista Mallarmagens
  • Título original: “The Lost Decade”

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