Revista de Cultura

Search
Close this search box.

Revista de Cultura

Search
Close this search box.

De Agnès Varda à Virginia Woolf: os modos de subjetivação, o tempo subjetivo e estranhamentos que habitam as personagens Cleo e Clarissa Dalloway

Ana Karla Farias

“Mrs. Dalloway disse que ela mesma ia comprar as flores”. Assim se inicia a narrativa do romance da escritora britânica Virginia Woolf “Mrs. Dalloway“, publicado em 1925 e que notabilizou o estilo modernista que rompe com convenções literárias, a partir do uso de recursos estilísticos como fluxo de consciência, discurso indireto livre e monólogo interior. Woolf se insere num contexto de mudanças políticas e sociais que marcaram o fim da era vitoriana e o limiar do século XX. Escritora vanguardista, ela questiona as ferramentas literárias da geração anterior. Assim, lança-se a uma escrita com liberdade de estilo e de experimentação, uma vez que a forma de se fazer literatura de antes se mostrava insuficiente para contemplar os momentos de ser do mundo moderno. Como por exemplo usar os recursos do monólogo interior, digressão, fragmentação, quebra da ordem causal no exterior para mergulhar no íntimo das personagens. Fazia-se necessário reinventar um ato de criação que buscasse transferir para o texto momentos vividos com grande intensidade, e retidos na mente, de captura do indizível do presente (Silva, 2020, p. 39).

Na busca incessante por uma nova forma de escrever e de linguagem que contemplasse a experiência de vida de pessoas comuns, sobretudo das mulheres excluídas da literatura considerada canônica e universal, Woolf rompe com a tradição realista e o discurso patriarcal predominante na ficção do período vitoriano. Para a escritora que reinventa novas formas de criação artística ao escrever desmontando a linearidade do romance tradicional, diluindo os gêneros e captando o de dentro das pessoas, em diálogo com o de fora, era urgente captar os momentos de existência das pessoas, as miríades de impressões, a vida que escapava ao romance convencional, caracterizado por um enredo, personagens e espaço bem delimitados.

Assim, por meio de técnicas de linguagem como o fluxo de consciência, o discurso indireto livre e a reprodução do “vaguear e jogar da consciência” (Auerbach, 2002), a escritora permite o processo de subjetivação da escrita e o acesso à interioridade das personagens. Na escrita de Virginia Woolf, nota-se também um distanciamento do subjetivismo unipessoal, havendo uma representação pluripessoal da consciência das personagens que compartilham sentimentos e se tornam um único organismo. “Diferencia-se do subjetivismo unipessoal, que só permite que fale um único ser e que só considera válida a sua visão da realidade” (Auerbach, 2002). Woolf constrói personagens mais complexas, apreendendo sua interioridade, demolindo a tirania do enredo, repensando o aspecto temporal e criando condições para projetar o mundo a partir da consciência das personagens.

Em consonância com o movimento de interiorização do ser, está a “cinescrita” da cineasta belgo-francesa e precursora da nouvelle vague (movimento artístico do cinema francês) Agnès Varda. A cineasta realiza filmes-ensaio, assim como ficções, que dialogam com o seu universo interno e nos quais organiza sua subjetividade no intuito de se desnudar, de falar de si para falar do outro, das pessoas que cruzaram seus caminhos, de lugares e de sua filmografia. A subjetividade é uma estratégia narrativa de Varda que pode ser observada em grande parte de sua filmografia, na qual se dilui a fronteira tênue entre ficção e não ficção, objetividade e subjetividade.

Assim como as personagens de Woolf vivem uma dicotomia da interioridade e da exterioridade (a mulher que ocupa o espaço circunscrito ao âmbito interno da casa, da maternidade, da esposa, mas que se autodescobre por meio de epifanias domésticas, insatisfeita com esse papel normativo e social), a narrativa de Varda também se encontra em constante ambivalência e tensão entre o objetivo e subjetivo, o documentário e a invenção imaginativa.

Woolf e Varda contam narrativas sob a perspectiva da subjetividade, o que se pode denominar de “escrita de si”. A escrita de si, associada ao exercício do pensamento, configura-se na “expressão dos pensamentos que ficaram gravados na alma do autor” (FOUCAULT, 1992). Assim sendo, a filmografia de Varda é irrigada por uma abordagem narrativa em que a cineasta reflete a realidade a partir de suas impressões pessoais, de sua visão particular de mundo, construindo narrativas costuradas para dentro. Já a literatura de Woolf também é permeada por autorreflexividade, pela presença subjetiva assumindo a condução da narrativa ao percorrer um movimento que leva o dentro para fora e o fora para dentro. Dessa maneira, as formas de enunciar de ambas abrem margem a reflexões sobre os processos de subjetivação, sendo crucial, portanto, precisar a definição de subjetivação.

A subjetivação sequer tem a ver com a pessoa: é uma individuação, particular ou coletiva que caracteriza um acontecimento (uma hora do dia, um rio, um vento, uma vida…). É um modo intensivo e não um sujeito. Uma narrativa autorreferenciada sugere um deslocamento de ponto de vista de um fora para um dentro, situando o filme como território onde se produz, que se constitui como criação de algo, como gestação de uma reflexão e sua forma […].

(Teixeira, 2015, p. 276)

A subjetividade como estratégia narrativa na cinematografia de Varda pode ser percebida em Cleo das 5 às 7, Os Catadores e Eu, As Praias de Agnès, Varda por Agnès, Ulysse, Visage Vilages, entre outros. Em 1954, Agnès Varda lançou o seu primeiro filme, La Pointe Courte, considerado o precursor do movimento vanguardista francês nouvelle vague em virtude de sua liberdade de estilo e forma.

Segundo Yakhni (2015), o uso da subjetividade como procedimento estilístico é conceituado por Pasolini como cinema de poesia, tratando-se da imersão do autor na alma do personagem. Já a possibilidade estilística de libertar a voz autoral, subvertendo o formato tradicional da narrativa, é chamada de “subjetiva indireta livre”. De acordo com Yakhni (2015, p. 254), “no cinema, a expressão dessa voz interior requer uma estilística que venha se consubstanciar numa câmera que se faça sentir, em contraposição ao cinema clássico”.

Assim, o cinema de Varda se apresenta como reflexão sobre o mundo a partir do olhar e das experiências pessoais da “cinescritora” (Varda se autointitulava cinescritora por conceber que se escreve com a câmera), que se utiliza de experimentações e liberdade de criação artística para inovar, criando caminhos outros e múltiplas possibilidades de se construir uma narrativa. A subjetividade como recurso de abordagem fílmica da cinescritora pode ser verificada na presença da cineasta na tela, em corpo e voz, na narração em primeira pessoa, na câmera subjetiva, na quebra de narrativa, no uso de atos perfornativos e encenações, na recorrência a imagens de arquivo de seu acervo pessoal para evocar a memória da sua carreira, na filmografia e na experiência do vivido. A cineasta coloca o outro em tela, mas também coloca a si mesma em campo em diversas passagens de seus filmes, como é o caso de Os catadores e eu (2000), em que Varda insere sua presença subjetiva, autodenominando-se uma catadora de imagens. Na Figura 01 podemos ver em quadro a mão da realizadora que recolhe uma batata em forma de coração. Em Os Catadores e Eu, a título de exemplo, a cineasta escolhe uma abordagem subjetiva para discorrer sobre como os restos e as sobras da sociedade são administrados, esquecidos ou ressignificados.

Em filmes como As praias de Agnès (2008), a cineasta, na iminência de completar 80 anos de idade, estrutura uma narrativa de modo a evocar a memória do vivido, da sua filmografia, de tempos históricos, de lugares e de pessoas que marcaram sua vida, como é o caso do marido, então falecido, Jacques Demy, que se torna uma presença constante ao longo do filme, dando a conhecer os movimentos de pensamento, afetos e passado da cineasta. Varda aborda um fato do mundo histórico a partir de suas impressões, de sua voz e de um eu narrador em um movimento de interação com esse mundo. Como elucida Nichols (2007, p. 44), “o nós falamos sobre nós para vocês foi uma estratégia narrativa encontrada pelas minorias sociais e políticas para se autorrepresentar no campo cinematográfico”.  Assim sendo, sua cinematografia é centrada na mesclagem de som, imagens e ideias que seguem um fluxo de pensamento, evidenciando a subjetividade da cineasta que fala de si em um movimento de travessia do individual em direção ao coletivo. Ou seja, uma cinescrita costurada por meio de encontros, amigos, a carreira e as pessoas que marcaram sua trajetória, descortinando o cinema como um lugar de construção de afetos.

Figura 1 Imagem de Os catadores e eu (2000)
Figura 1. Imagem de Os catadores e eu (2000)
Figura 2 Imagens de Varda e Demy em As praias de Agnès (2008)
Figura 2. Imagens de Varda e Demy em As praias de Agnès (2008)

Os momentos de ser

Segundo Silva (2020), a obra de Virginia Woolf foi precursora na preocupação em expressar os momentos de ser, ou seja, instantes que são experimentados com intensidade e retidos na mente, à semelhança de um choque. Consistiria, assim, numa tentativa de “capturar o indizível no presente”. Mrs. Dalloway apresenta uma narrativa que se passa em Londres, no intervalo de um único dia, no mês de junho, tendo o seu andamento acentuado pelas batidas do Big Ben. As badaladas do sino indicam a passagem do tempo cronológico e subjetivo dos personagens. Acontecimentos externos como a travessia do carro, o voo do avião, as flores de Richard, entre outros, estão interligados às batidas do Big Ben.

Embora se trate de um romance de quase 300 páginas, pouca coisa acontece numa dada dimensão objetiva e na vida dos personagens porque o acontecer se dá sobretudo internamente. Woolf discorre sobre a vida de pessoas comuns, contudo inova na linguagem literária de modo formal e estético ao apresentar uma escavação interior dos personagens, realizando um aprofundamento vertical no inconsciente deles.

A realidade objetiva já não importa tanto, mas sim o que acontece no âmbito interior, sendo necessário que o ato da escrita acompanhe o dinamismo das relações humanas que não são estáticas ― portanto, os próprios personagens apresentam-se porosos ao devir-outros, já que a vida segue um processo contínuo de tornar-se e vir a ser. Nos dizeres de Auerbach (2002), o que interessa a Woolf é a interpretação da vida que decorre dela própria, aquela que se perfaz em cada caso, em cada personagem, na consciência, nos pensamentos e nas palavras.

Já o enredo de Cleo de 5 às 7 também se dá em um único dia, no intervalo das 5h às 7h, assinalando também o tempo de transformação interna da protagonista Cleo. Com uma formação eclética que se construiu longe das cinematecas e dos cineclubes, Varda, que era fotógrafa, bebeu de outras artes para compor sua estilística cinematográfica. A fotografia, as artes plásticas e a literatura são referências cruciais para a filmografia da cineasta, segundo Yakhni (2014).

A poesia e a literatura serão outros parâmetros importantes – Baudelaire, Rimbaud. Apollinaire, Rilke, Mallarmé são alguns dos autores que a realizadora cita, tomando o texto como outra vertente significativa de suas narrativas. Ela mesma escreve todos os seus roteiros e é comparada por jornalistas e críticos a Virginia Woolf, Collete, Marguerite Duras, o que reverbera em sua configuração como autora.

(Yakhini, 2012, p. 23)

O filme Cleo das 5 às 7, ambientado na França de 1962, trata do drama vivenciado pela protagonista Cleo, uma belíssima cantora, oriunda de uma classe privilegiada, que suspeita está com câncer em estágio terminal e que, no lapso temporal das 5h às 7h, vivencia a tormenta da iminência da morte. Em consonância com outras personagens da filmografia vardaniana, Cleo se sente solitária, segue sozinha e se reconstrói. Embora seja uma mulher jovem, abastarda e bela, a protagonista, em um momento de vulnerabilidade percebe o quanto as relações do seu convívio próximo e afetivo são supérfluas e frágeis. Ela não se sente à vontade para contar ao amante sobre sua doença e se questiona se, de fato, ele se preocuparia com ela, conforme a voz over da personagem: “ele nem mesmo pergunta como estou. Se eu morresse nem iria ficar transtornado”.

Figura 3. Imagens do filme Cleo de 5 às 7 (1962)

Nesse caso, a epifania interior experimentada por Cleo, a travessia de uma visão banal para uma transformação interna, se dá de uma maneira angustiante, corporificada em suas falas e sentimentos, e em metáforas visuais. A suspeita de uma doença incurável e o medo da morte serviram de via de acesso para o processo doloroso de autoconhecimento e desvendamento de si mesma pela protagonista. Apesar de muito bajulada e mimada, ao ser atingida em seu âmago pela epifania interior, Cleo conseguiu enxergar a capacidade de ser estranha em meio ao seu grupo de amigos e de pessoas mais próximas, despertando o entendimento para a superficialidade de suas relações humanas.

Quando o sufocamento do pavor da morte e da solidão começa a pesar, ela decide sair de casa e caminhar errante pelas ruas, despindo-se dos acessórios e da vestimenta suntuosa que usava de praxe. Opta, então, por trajar um vestido preto que, segundo ela mesma, combinava mais com seu estado de espírito, conforme o vemos na Figura 4. Percebe-se que a cor preta condiz com as implicações psicológicas da personagem. Na trama, o cenário escolhido, sempre remetendo ao uso de espelhos, dialoga com a atmosfera emocional da ação, refletindo o drama da personagem.  O espelho reflete a sua imagem e sua subjetividade, corroída pela angústia e pelo processo de autodescoberta. Em trecho posterior, após reencontrar uma amiga na rua, Cleo deixa cair displicentemente um espelho, que quebra, no qual ela observa sua imagem fragmentada. “O espelho, janela aberta para um mundo misterioso e angustiante (…)” (Martin, 2013, p. 71).

Figura 4 Cleo contemplando sua imagem no espelho com vestes pretas
Figura 4. Cleo contemplando sua imagem no espelho com vestes pretas
Figura 5. Cleo, agora aquela que observa o mundo, vagando pelas ruas

Em outro momento, vagando pelas ruas (aqui se percebe a dualidade do movimento interno, da casa, da subjetividade, para a exterioridade das ruas, do espaço público), observa sua imagem refletida em uma vitrine e diz: “eu achava que todo mundo olhava para mim, mas só eu olho para mim”, auferindo-se que Cleo começa por meio da epifania corrosiva a trazer o olhar de fora para dentro a partir da desfamiliarização do olhar a fim de se autoconhecer. Na cena seguinte, ela se depara com um aglomerado de pessoas observando um homem engolindo sapos e acabando por regurgitá-los, o que provoca uma reação de estranhamento e náusea na protagonista, perceptíveis no olhar de espanto e desconforto de Cleo, o que pode ser interpretado como a rejeição do que é estranho. Porém, é o estranho na ordem do que lhe é familiar que assusta e causa maior perplexidade, haja vista que aquele homem que lhe causara ojeriza engolindo sapos também era ela, iniciando-se um processo condoído de autorreconhecimento.

 Somente quando a protagonista se desvia da projeção do que os outros fazem dela e da própria percepção que tinha de si e do seu entorno ela consegue se desolhar para alcançar um olhar inaugural, um olhar de quem se descobre pela primeira vez. O movimento de subjetivação também é constante nas narrativas literárias de Virginia Woolf, condizentes com sua escrita intimista e profunda. O sentimento de estranheza, o estar de fora, os momentos de ser percorrem as obras woolfianas que estão centradas na complexidade e busca dos mais profundos mistérios humanos. Os escritos de Woolf nos dizem muito, mas também gritam sobre ela mesma, revelando a sua interioridade. A título de exemplo, em Mrs. Dalloway, o personagem Septimus é um protagonista com neurose de guerra, uma crítica ao tratamento de doenças mentais e depressão, o que dialoga com as vivências pessoais da escritora que lutava contra enfermidades mentais, um possível transtorno bipolar e depressão. Não é o enredo que assume a missão de conectar os personagens Clarissa e Septimus, mas o interior deles, isto é, o fluxo de consciência.

Mrs. Dalloway aborda um dia de verão de 1923, das 10h da manhã à meia-noite: o dia em que a personagem protagonista Clarissa Dalloway dará uma de suas típicas festas. A partir de sua decisão de sair e adquirir as flores que enfeitarão seus salões, o leitor é conduzido a flanar entre as ruas e os parques de Londres, vagando entre o fluxo de pensamento dos personagens e as ações e os acontecimentos de uma metrópole após o fim da Primeira Guerra Mundial. Clarissa, em seus devaneios e elucubrações, revisita memórias da infância, dos amores na vida adulta, ao passo que encontra pessoas nas ruas, havendo um entrelaçamento de histórias. Assim, a narração muda para adentrar o universo íntimo do personagem Septimus Smith, ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, que representa um outro, um duplo de Clarissa, tão centrada e lúcida, enquanto Septimus vive atormentado pelos traumas e feridas emocionais decorrentes da guerra e da morte do amigo Evans.

O tempo subjetivo

Na narrativa cinematográfica de Varda, o tempo não exerce função apenas cronológica, como também psicológica. O curto lapso temporal das 5h às 7h se reveste de uma infinitude porque assinala o tempo de vida de Cleo e corresponde também ao tempo de sua transformação, da morte simbólica para o renascimento. Nos dizeres da cineasta em seu filme testamento Varda por Agnès, Cleo de 5 à 7 funde o tempo objetivo, também chamado de cronológico e mecânico, com o tempo subjetivo. O tempo objetivo é representado pelos relógios espalhados no set de filmagem e o tempo subjetivo corresponde ao emaranhado de sentimentos experimentado por Cleo.

Em Mrs. Dalloway, auferem-se a vida cotidiana dos personagens e a interioridade deles se intercala. Assim, o tempo cronológico cede lugar e ressoa no tempo interior dos personagens. Para Silva (2020), a escavação interna dos personagens a partir da exploração dos seus pensamentos e sentimentos é uma tentativa de romper com o tempo, espaço e enredo para captar o não dito. O tempo objetivo é mensurado pelas badaladas do Big Ben, que prenunciam também uma mudança na dimensão interna do personagem.

Tempo e espaço, assim sobrepostos, refletem o tempo sensacionalizado; o tempo nada é além de sensações, momentos de ser, apreendidos pela memória. Como um choque, paradoxalmente, essas sensações revelam um mal-estar que resulta no mergulho de Bernard em si mesmo e das recordações da existência (…).

(Silva, 2020, p. 70)

O estranhamento

No que tange ao entranhamento, marcante nas obras de Varda e de Virginia Woolf, estranho significa aquele que não pertence, que está de fora em relação a um grupo, a um lugar. Assim, as personagens Cleo e Clarissa se inserem como “estrangeiras”, aquelas que vagueiam sem encontrar seu lugar por estarem em vias de ruptura. Em muitas passagens, Cleo e Clarissa parecem se mover no sentido de sair do próprio corpo para se enxergar de fora. O sentimento de estranhamento antecede a epifania individual, resultando na travessia de uma visão banal para um momento de transformação interna, de renascimento e ressignificação do olhar: o desolhar para olhar pela primeira vez.

Tanto em Varda como em Virginia, as personagens femininas vivem um nomadismo interior e costumam subverter os paradigmas de mulher ideal traçados pelo patriarcado. E exatamente por não se encaixarem e não encontrarem seu lugar no mundo, as personagens de ambas vivem à margem. Estão imbuídas do sentimento de não pertencimento, sendo assim personagens deslocadas, não integradas, excluídas. Daí, insurge o sentimento de estranhamento tão presente no universo interior de Cleo e Clarissa, ou seja, a sensação de ser uma estrangeira, de não caber naquele lugar social e status quo, como também de não caber em si mesma, tamanha a densidade dessas personagens. A cineasta e a escritora se debruçaram amplamente sobre as questões sensíveis às mulheres em suas narrativas e levantaram a importância de contar a experiência feminina, tantas vezes obscurecidas e renegadas nos cânones do cinema e da literatura. Varda se autodeclarava feminista e destacou as lutas, em boa parte de sua filmografia, como a maternidade, os direitos reprodutivos, o aborto; Uma Canta a Outra Não (1977) é o seu filme mais feminista. Já Woolf tornou-se um grande expoente da luta feminista, defendendo que a mulher deveria ter sua própria renda e um quarto para escrever, em seu famoso ensaio Um Teto Todo Seu. A vida das mulheres e sua representação na literatura sempre foram preocupações da escritora e permeiam a sua escrita ficcional e ensaística.

Esse resgate da experiência feminina, desde sempre relegada ao esquecimento e obscurantismo, perfaz tema central tanto da ficção de Woolf, quanto nos seus ensaios críticos. O problema é que tal experiência, principalmente a experiência doméstica, se baseia no inefável, na invisibilidade. Woolf acreditava no poder criativo da mulher que emanava de sua própria experiência. No caso da mulher escritora, o que ela vivenciava na sala de estar, entre um olho na batata que cozinhava e um parágrafo de um romance, a exemplo das Brontë, o universo familiar se constituía sim, num aparato imprescindível da valoração de sua escrita (…).

(Tavares, 2008, p. 68)

Em Mrs. Dalloway, as personagens são atormentadas pelo sentimento de frustração de uma liberdade refreada pelo espaço doméstico, da família e do marido. Isso resulta na sensação de estranhamento, de não pertencimento. “Tinha a esquisita sensação de estar invisível, despercebida, desconhecida, de não ser mais casada, não ter filhos agora (…)” (Woolf, 1980, p. 14). Dessa forma, Cleo e Clarissa têm vozes e olhares que se entrecruzam ao traçarem, cada uma a seu modo, os percursos de aprendizagem, de autodescoberta, em face do incômodo gerado pelo confinamento, pela vida reduzida à esfera privada e a um rótulo. São personagens que precisam do espaço público das ruas para se transformarem internamente e voltarem a se pertencer. Elas saem de casa, imbuídas de suas subjetividades, e ao lançarem o olhar sobre o mundo são tocadas e deslocadas, entregues à deriva.

Assim sendo, não cabe aqui uma tentativa de comprovar a influência de Woolf nas obras cinematográficas de Varda, mas lançar o desafio de mostrar o quanto as narrativas dessas duas grandes mulheres que se dedicaram a trincheiras diferentes (cinema e literatura) podem se emaranhar a partir do olhar feminino, da recusa a uma linguagem convencional,  bem como pela necessidade de transgredir acepções tradicionais a fim de inventar novas formas de compartilhar no espaço público da literatura e do cinema as experiências das mulheres.

Ao fazerem uso de recursos e modos de subjetivação em suas narrativas, elas foram alargando os horizontes de experimentação para captar a essência da vida, a interioridade do ser e o indizível. Se a vida e, sobretudo, as experiências das mulheres escapavam das narrativas literárias e cinematográficas tradicionais, Woolf e Varda não se fecharam em uma fórmula pronta; elas ousaram e criaram formas. Assim, as obras de ambas nos ensinam, entre outras coisas, que é preciso ousar tomar a caneta e a câmera para inscrever a subjetividade feminina, construindo, por meio de uma nova linguagem, um espaço e lugar de fala para as vivências das mulheres nas frestas do discurso patriarcal e convencional.


Referências

AUERBACH, Erich. Mímesis. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, pp. 471-498.

FARIAS, A. K. B.; CRUZ, A. C. Entre a cinescrita e a literatura: a subjetividade e epifania em Agnès Varda e Clarice Lispector. Revista Temática, João Pessoa, pp. 72-86, 2020.

FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992, pp. 129-160.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2013.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.

SILVA, Maria das Graças Gomes Villa da. Momentos de ser em Virginia Woolf, Clarice Lispector e Alice Munro. Curitiba: Appris, 2020.

TAVARES, Ana Adelaide Peixoto. Que mergulho! O espaço vertiginoso da subjetividade feminina no livro/filme As horas. Tese (doutorado), UFPE, João Pessoa, 2008.

TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O ensaio no cinema. Formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea. São Paulo: Hucitec Editora, 2015.

Compartilhe: