Thiago Francisco
Reading Genesis, o novo trabalho da escritora americana Marilynne Robinson, é um livro bastante curioso. É uma obra sobre Deus que articula uma visão a respeito de Deus, mas que não é um livro de teologia cristã tradicional. Tampouco é um comentário bíblico, e nem pretende ser, apesar dos comentários de Robinson a respeito de diversas passagens do Gênesis. A principal tese do livro, a bondade de Deus, é bastante convencional dentro da tradição cristã, mas a insistência de Robinson em identificar esse tema como motivo recorrente dentro do Gênesis é o que faz de sua leitura algo inovadora. Considerando o corpo artístico da própria autora, Reading Genesis é bastante consistente com suas composições. A bondade de Deus, a bondade humana, a bondade latente da criação — essas são preocupações centrais da autora. Considerando o próprio Gênesis, objeto desse livro, essas afirmações são um desafio tão antigo quanto os primeiros versos bíblicos. As polêmicas que cercam esse primeiro e colossal documento bíblico são diversas. Robinson enfrenta, ao longo de seu novo livro, cada uma dessas controvérsias com uma fidelidade irredutível à sua tese principal: se o Deus do Gênesis é bom, então assim são todas as obras das mãos dele.
Marilynne Robinson é uma das mais importantes escritoras da atualidade. O seu romance Gilead, publicado em 2004, já foi traduzido para diversas línguas e venceu importantes prêmios literários, como o Pulitzer. Gilead é um longo diário ficcional escrito por um pastor protestante com uma doença terminal a seu filho mais novo, que crescerá sem a presença paterna. John Ames, o narrador e protagonista do livro, reflete sobre questões teológicas e existenciais em seu diário numa prosa carregada de lirismo e linguagem poética. É possivelmente o romance mais importante e conhecido publicado por um autor cristão no século XXI, ao menos até agora. Com o sucesso desse livro, a autora publicou uma série de romances ambientados no mesmo universo ficcional: Home (2008), Lila (2015) e Jack (2019). Além de ficcionista, ela também é uma ensaísta arguta. Em seus ensaios, Robinson explora temas como a história da religião nos Estados Unidos, o puritanismo americano, teologia calvinista, a recepção de João Calvino em língua inglesa, o trabalho de teólogos como Dietrich Bonhoeffer, humanismo, cosmologia, entre outros temas usualmente associados à fé cristã. Como se percebe, cristianismo e teologia são preocupações constantes dos trabalhos da autora.

Por essa razão, chega a ser surpreendente a completa ausência de referências teológicas ao longo de Reading Genesis. Não há citações a teólogos, críticos textuais ou estudiosos da Bíblia. Há pouquíssimas referências literárias, a maioria a textos mitológicos babilônicos, que ela compara com a cosmogonia bíblica nas primeiras páginas de sua obra. Depois disso, ela praticamente não faz referência a nenhum outro texto a não ser a própria Bíblia. Com isso, há outra camada instigante na obra: Robinson usa seus talentos como contadora de histórias para transformar Reading Genesis em algo muito parecido com uma ficção, em alguns momentos, do que apenas um texto de natureza analítica. Há momentos analíticos, mas há momentos em que a autora se dedica a simplesmente recontar, acrescentando novos significados e perspectivas, as mesmas histórias do livro antigo — da criação do universo em uma única semana, passando pelo relato catastrófico do dilúvio, chegando até os dramas familiares de Abraão e Sarah, Isaque e Ismael, Jacó e Esaú, José e seus irmãos.
Ela começa com uma primeira sentença bastante contundente: “a Bíblia é uma teodiceia”, o que implica dizer que “a Bíblia é um trabalho de teologia, e não apenas um texto primário no qual a teologia é baseada”. Para Robinson, os autores bíblicos não apenas contam histórias antigas (uma reunião de narrativas advindas da tradição oral), mas buscam articular uma visão bastante consistente da realidade. Assim sendo, a Bíblia não é apenas um texto que fundamenta toda a teologia cristã, mas é também um documento teológico, pois, por meio de seus diversos gêneros e tipos literários, lida com o principal problema teológico da humanidade: a teodiceia, o problema do mal. O texto bíblico precisa conciliar as afirmações do primeiro capítulo do Gênesis — a bondade de Deus, a bondade de toda a criação — com a realidade da história humana, carregada de perversidades, tragédias e sofrimentos. Para a autora, o primeiro livro bíblico lida com essas questões na forma de narrativas.
Robinson fala de vários “autores” para o Gênesis, mas não no sentido da crítica textual bíblica, em que vários textos dispersos, de autorias anônimas, foram unidos e conciliados num processo de editoração posterior, mas porque esses “textos parecem produtos de reflexão e refinamento que tomaram o curso de séculos ou gerações”. Não se trata, portanto, de primitivismo literário, mas de um processo consciente e geracional de sofisticação e aperfeiçoamento — literário e conceitual. Num primeiro movimento, ela rejeita a tradição que atribui a Moisés a autoria dos primeiros livros da Bíblia hebraica. Ao mesmo tempo, ela também rejeita a visão da crítica textual de que os textos bíblicos são produtos de autores tão diversos que dificilmente poderiam ser conciliados num único documento coerente. O próprio Gênesis desconcerta essa segunda visão. Para ela, os autores do Gênesis são pessoas de diferentes épocas mas de uma mesma tradição que, ao longo dos anos, receberam como herança esses relatos, em grande medida por meio de transmissão oral, até organizarem esse rico arsenal histórico num único documento harmônico. Segundo a autora,
Eu imagino um círculo de estudiosos piedosos, mestres antes de a palavra existir, relembrando juntos o que as suas avós diziam para eles, encontrando a doçura de uma memória antiga numa estranha virada de frase e percebendo juntos que essas estranhas histórias sustentam o senso da presença de Deus que era ricamente renovada para eles em suas deliberações reverentes. É assim que religião sobrevive no mundo.
Reading Genesis está recheado de momentos assim, em que a autora usa seus talentos literários para produzir reflexões poéticas, imaginativas, mas comprometidas com a verdade de seu objeto e com a sua própria concepção pessoal a respeito dele. Ao afirmar que a própria Bíblia é um produto teológico, Robinson também desarma qualquer fundamentalismo que busque negar a importância da interpretação bíblica — teologia, portanto, não é somente um discurso interpretativo sobre a Bíblia, mas uma continuidade daquilo que os próprios autores bíblicos, desde o Antigo Testamento, já realizavam. Robinson permanece fiel, de maneira bastante inusitada, ao princípio protestante de “Somente a Escritura” (sola scriptura). Ela afirma que toda a Escritura é divinamente inspirada, mas que a autoridade humana, reconhecida pela própria autoria humana desses livros, não é de forma alguma uma negação da sacralidade bíblica. Para ela, a Bíblia nunca demonstrou ansiedade alguma em ser associada com “mentes, palavras, vidas e paixões humanas”. A sacralidade do texto bíblico é também um reconhecimento da sacralidade do próprio ser humano.
Após essas afirmações, Robinson passa a uma análise comparativa entre a cosmogonia bíblica com as mitologias mesopotâmicas — mais especificamente, o Enuma Elish e a Epopeia de Gilgamesh. Nessa parte, a autora faz um exercício encorpado de crítica literária. Em comparação com o mito babilônico, que muitos críticos afirmam ter sido a base para composição do Gênesis, ela comenta que a afirmação recorrente de que Deus é bom não é trivial. A insistência da cosmogonia bíblica nesse ponto a distingue fortemente de qualquer antecessora. Enquanto o Enuma Elish mostra o cosmos sendo organizado por meio da violência numa teogonia sangrenta em que as partes do universo são formadas pelo esquartejamento da deusa Tiamat e a humanidade é forjada pelo sangue de outro deus sentenciado à morte, o Gênesis apresenta um Deus bom que, de forma boa e serena, por meio da poesia e não de ações coléricas e destrutivas, cria todas as coisas de maneira ordenada — e todas essas coisas são afirmadas, numa sequência de repetições, como boas.

De onde veio a relativa benignidade do cosmos hebraico? Certamente não depende de uma negação da realidade do mal, entendendo que essa palavra abrange coisas como perda ou dano bem como transgressão ou malícia. Na verdade, parece vir com o reconhecimento do mal. A Queda e as suas consequências, o assassinato do seu irmão por Caim, o Dilúvio – esses acontecimentos estão no primeiro plano da história bíblica. (…) De toda forma, afirmar a existência do mal no sentido amplo, tal como é entendido nas histórias primordiais, Gênesis 2:4 a 11:32, é essencial para toda a narrativa das Escrituras. O épico babilônico descreve guerras entre exércitos rivais de deuses. Para eles, “bom” parece ser a ordem que acompanha o triunfo de Marduk. No Gênesis, desde o início, o bem é intrínseco a toda a Criação. Portanto, nesse aspecto muito importante, as literaturas são conceitualmente diferentes. Os escritores hebreus não estavam simplesmente se apropriando dos mitos prevalecentes. Eles tinham preocupações próprias de peso centradas no ser humano, preocupações inteiramente exclusivas deles.
O tema central de Reading Genesis é o de que o Deus do Gênesis é bom, irredutivelmente generoso. Ao contrário de divindades pagãs, ele não criou o homem para usá-lo, mas sim de forma completamente livre, apenas como expressão de sua bondade — e para “realizar um misterioso propósito nele”. Essa bondade é manifesta nos versos que mostram um Deus atencioso formando todas as coisas por meio de suas palavras. No restante do livro, sobretudo após o relato da queda de Adão, essa bondade é expressa na fidelidade de Deus em continuar acompanhando uma humanidade que insistentemente comete todas as formas de atrocidades e violências. A fidelidade do Deus do Gênesis é imune às depredações humanas. Ao mesmo tempo, essa fidelidade se manifesta justamente nesse relacionamento com os homens. Robinson observa que os seres humanos estão ao centro do relato criacional bíblico, desde o princípio, com a sua elevada posição entre as outras criaturas, até em sua terrível responsabilidade pelas tragédias e infortúnios que se seguem à expulsão do Éden. O mito do Gênesis coloca o homem ao centro — tanto da vontade e sacralidade divina, quanto da responsabilidade pela tragédia corruptora da criação.
“Somos desastrosamente rebeldes e errantes, mas irredutivelmente sagrados. E Deus está atento a nós”. Reading Genesis segue acompanhando as histórias de diversas figuras bíblicas — Esaú e Jacó, Raquel e Leia, José e seus irmãos — sempre seguindo um compromisso com a sua tese basilar. Questionamentos podem ser levantados em torno da consistência da teologia de Robinson, de seus métodos e exegese, mas a beleza de seu texto — a paixão com que faz a defesa de suas ideias — é incontestável. Em uma época em que parte dos esforços teológicos se perderam em perspectivas politicamente empenhadas ou em interpretações insossas e obsoletas, a diligência genuína de Robinson em apresentar uma leitura bíblica compromissada com os dogmas basilares da fé cristã, mas não limitada por eles, e embebida de lirismo e poesia, deve ser louvada.
Ela percebe, ainda no começo de seu texto, num comentário a Gênesis 2:9, que Deus fez “germinar do solo toda árvore atraente e boa para comer”. Ela apreende que o texto antecipa o “prazer humano” de que Deus deve compartilhar. O detalhe da beleza das árvores é mencionado no texto bíblico antes do fato de elas produzirem alimentos. Conforme mencionamos, Reading Genesis é movido pelas mesmas preocupações dos ensaios anteriores de Robinson. Em Além da mente, um dos trabalhos mais consistentes da autora, Robinson faz uma crítica severa a todas as ideologias modernas — mais especificamente darwinismo, marxismo e psicanálise — que deploram a riqueza do mistério que é a existência humana por meio de explicações que limitam a subjetividade humana a instâncias específicas e limitadas: um primata egoísta ou um homem preso somente a circunstâncias históricas ou um escravo de pulsões inconscientes. Para a autora, essas correntes têm em comum “além da alegação de suficiência, uma exclusão dos testemunhos da cultura e da história”. Para Robinson, qualquer pessoa que deseje investigar, com honestidade e rigor, a natureza humana precisa se atentar primariamente aos textos que testemunham as profundidades da criatura adâmica. E os textos de natureza religiosa — o Gênesis, os salmos e cânticos atribuídos a Davi, as Confissões de Santo Agostinho, os sermões de John Donne — são o maior testamento desse testemunho.
Robinson acredita que escavar em busca de contemplar ou compreender a natureza humana — o mistério da natureza humana — é um dos caminhos da teologia. Teologia não é antropologia, um estudo do homem na história, mas, em sua busca em conhecer a Deus, o ser humano é desvelado. Não apenas o que o ser humano faz, mas também o que ele é, o que poderia ser e o que será — a sua natureza e o seu propósito. E quando alguém tenta contemplar profundamente o mistério da existência — de sua própria, do outro, do mundo, da natureza — o próprio Deus é revelado:
Duas coisas são significativas [em Gênesis 2:9]: que Deus, como o criador da beleza, pretende que a vejamos e dela desfrutemos e que Ele nos dá os dons de apreensão que esse prazer exige, o que é nada menos do que uma partilha de Sua mente conosco nesse tema importante. O fato de o próprio Deus, em algum sentido celestial, desfrutar desse tipo de percepção nos dá uma visão do significado de termos sido feitos à imagem dele. O mundo está imbuído desses lembretes de que existem uma bela intenção e segurança expressa em cada percepção que temos da beleza do mundo natural.
O reformador francês João Calvino é uma influência importante para os escritos de Robinson, sobretudo em Reading Genesis. Ela tem uma interpretação bastante singular da obra de Calvino. O teólogo francês pode ter ficado conhecido pela sua ênfase na doutrina da predestinação — pela qual Robinson demonstra grande interesse em seus romances —, mas os seus escritos têm outras camadas instigantes. Particularmente, a autora demonstra interesse na visão de Calvino a respeito da natureza humana e da finalidade de toda a criação. Calvino concebe todo o universo como uma espécie de sacramento — ou seja, todo o universo é um teatro que manifesta a glória de Deus. Em seu Comentário ao Gênesis, ele afirma que há poder, sabedoria e bondade divina em todas as coisas criadas — na terra que tocamos, no céu que vemos, nas fragrâncias que inalamos. O mundo natural revela o poder, a bondade e a glória divina. A teologia de Calvino não está preocupada apenas como hipóteses a respeito da salvação humana, mas também com a própria natureza do universo. Por essa razão, o fato de Gênesis afirmar que Deus criou as árvores em primeiro lugar para a contemplação não é uma informação trivial. A beleza é colocada em primeiro plano. O mundo foi feito em primeiro lugar para testificar a bondade de Deus — para que os homens se maravilhem com os encantos de um universo feito para encher os seus olhos, não somente para suprimi-los materialmente. A finalidade primeira do universo é deleitar e maravilhar e não apenas suprir e alimentar. A capacidade de apreender essas maravilhas, o senso de apreciação estética em cada indivíduo, é uma pequena centelha divina que cada um carrega.
O homem está ao centro desse espetáculo. Essa informação é essencial em tempos que costumam relativizar esse fato — épocas que tentam deplorar a criatividade humana, que tentam reduzir a dignidade de certas pessoas em meio a conflitos bélicos. Não há inteligência comparável à inteligência humana. Não existe vida que não seja dotada de valor inerente. Calvino defende a tese de que todos os seres humanos, sem exceção, são imago Dei — todos compartilham a imagem de Deus, que não foi obliterada pelo poder do pecado nem pelas inúmeras depredações ao longo da história. Em sua Institutas da religião cristã, o reformador francês sustenta uma ética bastante radical e religiosamente ordenada: no tratamento de qualquer pessoa, não importa quem seja, devemos nos lembrar da imagem de Deus, conservada independente das ações daquela pessoa. Quando devolvemos o mal que recebemos com o bem, a imagem de Deus brilha mais cristalinamente em nós. Se o mundo natural foi feito, em primeiro lugar, para contemplação e deleite, o que diríamos da própria humanidade, ato final da criação divina? Os humanos foram feitos também para contemplação e amor e não para serem usados e instrumentalizados uns pelos outros.
Em todas as páginas de Reading Genesis Robinson retorna a esta verdade fundamental: Deus está intensamente presente em todas as partes da Sua criação. Os homens — com suas histórias pequenas, banais, carregadas de luz e sombras — revelam essa glória. Todas as coisas são sagradas. Para alguns críticos, afirmar que tudo é sagrado seria o mesmo que dizer que nada o é. Robinson dificilmente reconheceria essa afirmação. A extensão de algo não diminui a sua força e poder. De toda forma, Deus não pode ser encapsulado pela lógica e perspectiva humanas. “A crença cristã de vida após a morte — na qual creio e celebro — pode nos distrair da vida nesta terra, que é, em última instância, o nosso bem último nesta vida e na próxima”. Robinson não concebe nenhuma forma de transcendência que deplore ou diminua a vida nesta terra. As implicações dessa crença é não somente uma forma de fé cristã mais ampla e solidária, mas também um movimento contracultural: uma valorização da vida, da natureza e da humanidade ao centro desse espetáculo num tempo de cinismo e indiferença.