Sumaya Lima
Entro no carro e engato a ré antes de pôr a chave no contato. Ao primeiro ronco do motor, sinto o abalo da estufa de calor na pele e relaxo. O carro soluça e morre. Vocalizo expulsando o ar condensado no peito. As formigas me fremindo o buço, pilhando as narinas, inchando os olhos. Bem, então é assim que começa.
*
Explico ao Rogério o que é um carcinoma papilífero intracístico mamário bilateral. Ele não entende como um tipo de tumor raro e mais associado a mulheres na pós-menopausa possa me acometer já aos 37 anos.
“Tampouco eu, mas é tranquilo. O médico falou do ‘padrão-ouro’ de tratamento”.
“Como é?”
“Vê aqui, na imagem, como a lesão é bem delimitada? Fica dentro de uma cápsula, como diz esse nome grosso aí”.
“Entendo, mas isso facilita exatamente o quê?”
“Sabe quando as coisas, as ideias, as relações começam a tomar forma e você vai e frupt!, desce o facão nelas? É isso”.
“Não sei como você é capaz de uma comparação absurda assim, e numa hora dessas. Anda, me conta o que vai ser feito”.
“Quanta rispidez, chefe, calma. Falei só para dar uma soltada. Quer um cigarro?”
“Três centímetros? O outro tem dois… É pequeno, é grande? Me fala, qual o tratamento?”
“Cirurgia conservadora da mama com excisão local ampla, lê aqui”.
“Sei. Significa que…”
“Finalmente vou cortar todo o mal instalado neste peito meu!”
“Para com esses tapinhas na minha perna e esse sorrisinho medonho. Que você pensa que está fazendo, Ana?”
“Ih, Rogério, nem tenta, vai. Só vejo você sentimental assim diante de uma caneca de chope”.
“Sério que você vai se esconder atrás do deboche numa situação tão grave?”
“Grave coisa nenhuma, tudo segue normal. Três dias e já estou de volta”.
“Nem pensar! Tudo bem descrito aqui, olha, início da radioterapia seis semanas após a cirurgia, tem a quimio ainda e… Já ligou para a sua mãe?”
“Sem chance. E pode esquecer a ideia de me mandar ficar em casa”.
“Ingestão diária de tamoxifeno, que porra é essa?”
“Serve para bloquear a recepção de estrogênio, é dele que se alimenta o meu tipo. Ah é, e menstruação, no more, baby“.
“Proliferação neoplásica invasiva, margens comprometidas em…”
“Vou saltar pelo menos 20 anos, mergulhar direto no caldo da menopausa e, em poucos meses, se tudo sair como deve, vou me transformar num figo rami”.
“Aqui nesse envelope tem os encaminhamentos para endocrinologista, hemato, onco…”
“Sei de tudo, já chega. Agora me passe os papéis de volta, vai. E olhe pra mim: em casa eu não fico!”
“Ana, vamos repensar seus horários e comunicar o RH”.
“Não seja histérico, Rogério. Qual a necessidade disso? Fica entre nós, a coisa toda. Não será a primeira vez”.
“Ana, é impossível!”
“Por mim você pode pôr as mãos na cabeça e continuar girando aí à vontade, nem ligo. Vai me ver aqui todos os dias”.
“Ela realmente não se dá conta do que vai enfrentar, meu Deus!”
“Com essa camisa então, você parece um pião sonoro. Cafoníssimo”.
“Calmo, eu vou ficar calmo, falar baixo, me aquietar. Agora deixa eu me sentar aqui, bem perto, grudado em você. Ana, me diz: que impacto você acha que causa na sua vida e na vida das outras pessoas agindo assim?”
“Que impacto eu causo?”
“Por favor, Ana”.
“Estamos ainda falando do meu câncer ou já partimos para uma questão ambiental, Rogério?”
“Chega, volto depois. Não adianta”.
“Não vou me ausentar do trabalho, você entendeu? Continuo na agência, meu dia a dia intacto, vai dar tudo certo. Deixa a porta aberta. Tchau”.
“Ligue para a sua mãe ou ligo eu. Tchau”.
*
Rogério sabe das minhas formas de domesticar a desordem, apenas se esquece de vez em quando. Por um ano, passamos ao menos duas noites da semana nos encontrando no pós-expediente, quase sempre na minha casa. Se saía da agência antes de mim, o que não era raro, já ficava no sofá à minha espera, impávido, nu, já de filme escolhido, taças na mesa e banho tomado. Era toda a visão de um formoso desapontamento. De uma hora para outra, não apareceu mais, também não se justificou. Nunca perguntei seus motivos, nem ele os meus para jamais tê-lo questionado. Seguimos. Depois nos tornamos mais amigos. Eu me casei e descasei duas vezes, ele teve mais um filho e até hoje diz que está se divorciando. Assim, lá se vão mais de cinco anos de um como-se-nada na minha vida”.
*
Sonho comer um pudim de leite com calda de sêmen. O telefone vibra frenético na mesa e acordo urrando, a boca empapada de fel.
“Fala, mãe”.
“Ligação perdida sua aqui, é isso mesmo?”
“Deve ser de anteontem, é”.
“Ainda na cama a uma hora dessas?”
“Preciso saber se a senhora teria um tempo para me acompanhar depois de um procedimento esta semana”.
“Dentista de novo?”
“Não, um pouco mais complexo”.
“Tenho andado louca aqui planejando outro viveiro para as galinhas, toda hora alguma foge. Vou ver”.
“Volto para casa na quinta-feira. Talvez a senhora não precise ficar muitos dias, somente…”
“Na quinta vou para Jales e sexta tenho carteado na casa da Irma, então só no sábado”.
“Pode ser sábado então. Se der”.
“Confirmo depois, agora vou saindo para a feira”.
A voz da minha mãe é de um pigmento que me tinge profundamente. Abafo a orelha no travesseiro e parece que nunca mais voltarei a dormir.
*
Quando amanheceu, o sol raiou na tristeza do meu olhar, ouvi bem? Um desastre essa música do vizinho, só pode ser um maníaco. Melhor eu cair no sono de vez.
*
“Ana, você não se ama? Não quer viver?”
*
Tudo que eu quero é me armar e me deixar como uma bomba dentro de uma jaula sobre rodas. Arrasto a jaula pelos corredores da agência, isso deve levar quanto, uns dois minutos? Paro diante da porta da sala do chefe, começo a tirar a roupa. Convoco as mulheres, somente elas se aproximam com seus olhos ferozes para o show de strip da mulher barbada enquanto os homens, ah, os homens virão correndo em seu natural apreço pelo grotesco. Aqui está o Dalai Lama, ele toca os meus peitos enormes, que balançam ao som de Ode à Alegria. Faço uma coreografia vacilante, espiralada, entro e saio de dentro da jaula como se vagasse entre a autopiedade e a vingança. Estou a ponto de explodir quando a porta da sala se abre e Sílvio Santos chega anunciando O homem-cobra, daqui a pouco, na sessão das dez! (Todos os répteis mostrados no filme são reais, eles foram importados de Bangkok e de Singapura.) Enquanto ajusto o tracking com os olhos, minha mãe surge e desliga a tevê.
*
Pego o celular, aciono a câmera frontal, estou inoculada de uma energia muito nova. Me dispo inteira e ligo para o Rogério, o que ele faz às duas da manhã? Quem dera a mulher dele atendesse deliciosamente pelada e me atacasse pela tela num bote. Puta merda, errei de Rogério, esse aqui é o cara que trepa citando Nietzsche. Não, tudo bem. A essa altura, qualquer porcaria que me cair nas coxas eu lambo.