Matheus Lima Borges
“O bicho, meu Deus, era um homem”
Manuel Bandeira
O sol derradeiro abria a noite e Bia sentia-se cansada da viagem de ônibus que fizera até ali. Mas era um cansaço de felicidade por estar vendo a paisagem lá fora, olhava com a mesma maravilha e atenção de uma criança que pensa ser dona da rua. Era uma felicidade que vinha do fato de poder ser humano e de exercer essa função como ninguém mais sabia. Era uma felicidade em ter ciência de seus atos. Observando o cachorro de rua, pensava como ele não tinha consciência do que estava acontecendo com ela. Ele era limitado por ser quem era, assim como seu pai. Outro dia pediu para filha ajudar-lhe a ligar a tv, como alguém pode não saber ligar uma tv? O que falta para ele ser capaz de entender o controle remoto deve ser o mesmo que falta no cachorro de rua para entender poesia. O que separa a mim e meu pai é linguagem tal qual sou separada pelo bicho de quatro patas; papai tem origem na pré-linguagem. Mal sabe ele que é um dos poucos livres dessa coisa chamada palavra que, quando a digo, espero dizê-la; quando meu pai diz, ele a perde, enquanto nós, bichos de linguagem, seguramos firme até o último minuto. “Eu dou minha palavra”, disse a amiga da minha mãe ontem ao fazer uma promessa.
Junto dos cachorros de rua, papai é bicho pré-linguagem. Eles não dizem nada, a palavra é adorno de poetas que vivem a falsificar a vida. Os bichos pré-linguagem seguem seus instintos; a biologia, que é a pouca certeza assim como a morte, lhes permite algo que não o que digo ou julgam ser; eles se camuflam quando dizem ou latem. A palavra é disfarce da coisa real e por isso os filósofos e poetas existem. Se meu pai não conseguiu compreender ou sentir “Boi morto” de Manuel Bandeira a culpa é da palavra, é de Manuel, é dos poetas que fingem em palavra. A culpa é minha que sinto através do dito. Ele nunca falou “eu te amo” para mim, mas parece que ele sempre amou sem dizer. Não, não demonstrou amor em ato também. De alguma forma, os bichos pré-linguagem nunca precisam dizer nem agir, simplesmente são; estão embutidos em algum lugar que não consigo nomear porque eles não usam palavras; em algum lugar que não consigo atuar porque eles não usam atos. Pensar sobre eles é renunciá-los; a partir do momento que penso no sentimento de alguém se não o meu, renuncio-o. Dizer é sempre renunciar a algo. E pensar é dizer. Assim, nunca se há de ouvir que os bichos pré-linguagem renunciaram a algo ou alguém.
Mamãe reclamava ontem que meu pai nunca a ajudou a levar a mim e a meus irmãos ao médico quando éramos crianças, mas é que ela não entende de pré-linguagem. Ela é pura linguagem. De uma linguagem afetada e primitiva, mas ainda assim linguagem. Para ela, se ele levasse os filhos ao médico, estaria demonstrando amor e carinho pela família. Porém, o que ela não sabe, e talvez nem mesmo eu saiba, é que bichos pré-linguagem não amam e não agem da nossa maneira patética. Chamamo-los de burros, moleirões ou mesmo de jeca-tatus porque nós enquanto seres de pura linguagem jamais seremos capazes de acessá-los. E o que eu penso e digo não passa daquilo pensado e dito. Os bichos pré-linguagem foram além da borda daquilo que se pode dizer e pensar. Subjugados pela pretensa humanidade, superaram a mim e a você.
As palavras são adornos presos a uma redoma chamada consciência. Eu e você estamos presos, sem chance de escapismo. Meu pai e os cachorros de rua estão livres, extrapolaram os limites da consciência e por isso eles nunca dizem o que querem dizer. Meu pai nunca foi me buscar na escola e agora que sou menina que lê um pouco de poesia e outras coisas falsas entendo que aquilo foi necessário. Do contrário, a escola toda descobriria o bicho que meu pai é. Não há aula ou psicologia para sentir o que tem que se sentir. Meu Deus! Que ofensa a linguagem é. Dizer para quê?, bicho nunca diz. Por que insistimos na palavra?
Ela, de uma singeleza perversa, aparece-nos enquanto pretensa promessa no café da manhã de pães enrugados com pássaros de emaranhados sons. Nele, a ausência. Sentou-se à mesa pai, mãe e filhos, todos deram a benção. “Bença, pai”, disse Bia e os seus irmãos ao que receberam de resposta “Deus te abençoe”. Alí velada a palavra que nada revela dos bichos pré-linguagem. Por isso, após as poucas palavras proferidas pelo pai, Bia pensava por que Deus existia e, para os bichos pré-linguagem, ele sempre existe. Ente infinito e eterno, Deus é pré-linguagem e assim fez os cachorros de rua e Roberto, mas não fez Bia. Ela veio do útero de sua mãe, Aline, que a teve de parto normal num dia de São Longuinho.