David Lynch (1946-∞)

© Marcelo Ximenez / Estadão

Miguel Forlin

Como toda história de Amor, minha relação com o Cinema teve três estágios. O primeiro, ocorrido durante a infância, deu-se por meio da descoberta de comédias do cinema mudo, principalmente aquelas realizadas e protagonizadas por Charlie Chaplin e Buster Keaton. Meu pai, que fora cinéfilo na juventude, costumava projetá-las para mim, para meu total deslumbre e maravilhamento.

Eu havia me apaixonado.

No entanto, paixões têm data de validade; ou elas terminam, ou se transformam em algo a mais. A minha transformou-se em Amor, e o ponto de inflexão fora Cidade dos sonhos (Mulholland Drive, 2001), de David Lynch. Quando assisti a esse filme pela primeira vez, aos 12 anos de idade, tive certeza de que meu destino seria o Cinema.

Silencio…” Minha história tinha acabado de começar.

E, assim, os anos se passaram, e meu Amor se manifestou através de dedicação, sacrifício e carinho contínuos. Li tudo o que podia ler, ouvi tudo o que podia ouvir e, acima de tudo, vi tudo o que podia ver, e não só em relação ao cinema de modo geral, mas, também, em relação à obra de David Lynch como um todo, uma vez que, se meu pai pavimentara o caminho, Lynch havia dado início ao trajeto.

Porém, viver de Amor/Cinema nunca se mostrou fácil, ainda mais em um país como o Brasil, e, durante aquele período, vi-me marcado por dúvidas e temores. Encontrava-me angustiado, e amava com a mesma intensidade com que me perdia. Foram, em suma, anos de arrebatamento e perturbações. Mas isso estava prestes a mudar, e o catalisador seria, mais uma vez, Lynch.

Em 2008, ele veio ao Brasil, e, em sua agenda de compromissos, constava uma palestra e uma sessão de autógrafos em São Paulo, na saudosa Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Obviamente, acampei do lado de fora com um dia de antecedência, e fui o primeiro da gigantesca fila que não parava de se formar. Meu objetivo era simplesmente vê-lo e ouvi-lo de perto e obter seu autógrafo. Contudo, ao perceber que seria possível conversar com ele por alguns minutos, minha missão passou a ser outra.

Missão, devo dizer, plenamente cumprida. Por mais de meia-hora, em total estado de estupefação, conversei com meu ídolo. Ou melhor, expus, como em um fluxo de consciência ininterrupto, toda a minha admiração por ele e suas obras, meu sonho de me tornar cineasta e os medos que acompanhavam esse desejo. Ele me ouviu pacientemente e, após poucos segundos de silêncio, disse-me, em uma longa fala, as palavras mais belas que já ouvi. Saí desse encontro decidido, e, desde então, nunca mais olhei para trás. Minha angústia se foi para sempre, e meus temores, se apareceram novamente, não duraram mais do que um dia.

Por causa de David Lynch, meu Amor pelo Cinema converteu-se em Matrimônio.

Em 15 de janeiro de 2025, Lynch faleceu. Senti sua morte profundamente, tanto que só pude escrever estas palavras dias depois. É-me impossível contar tudo o que aprendi com ele ou definir sua importância em minha vida. Devo-lhe mais do que posso dizer. Talvez, isto seja suficiente: ele vive por meio de mim.

E a União que aquelas suas palavras selaram, nem a morte pode separar.

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