Milena Martins Moura
evangelho segundo o pecador
me quero aberta em cálice e vinho e pão fenda rasgada de ritos hábito deitado à fogueira onde abrasam as peles recém-expostas a carne viva pulsa porque viva porque crua porque fera e primeira mulher serpente e desfrute me quero imersa corpo inteiro no indevido lambendo o caminho desviado com a mesma língua dos cânticos o sacro e o santo molhados da espera com a sede dos abstêmios e dos crédulos em desgraça e eu graal sacrílego estou nua e disso não me envergonho
cinturão
tenho uma dobra vermelha na pele do rosto como um corte entranha você viu a marca vermelha da cama no meu corpo branco onde dói o sol você viu os meus sinais em coleção imitando a pose ereta de órion ombro em rigel pé em betelgeuse as partes proibidas à mostra faz calor e eu tenho sede todos os tabus desnudados constelações e eu ariadne corpo celeste vindo jantar nos escombros as pontas dos seus dedos mastigando os meus contornos entranha todos os lábios mordendo a fraqueza da carne
έρημος
acabei de ser minha própria caravana de bichos pálidos passando sede acabei de ser a sede o sino da igreja às três da tarde quando é quente e uma brisa pouca e velha arrasta o cheiro dos soluços e entalha feições ao pé da boca para marcar as horas acabei de meter os pés no deserto tardio que se deita ao sol onde vêm os pássaros procurar em vão o de beber porque têm pés feitos para o fogo e eu que lhes sou grande e tenho mãos com poder de morte acabei de ser minha própria caravana de bichos pálidos passando sede com bocas abertas para o céu minha própria matilha de bustos de areia se debatendo pelo formato dos olhos pelo nariz de ossatura protuberante os lábios o de baixo maior herdado do pai rosto desenhado com ângulos orelhas desiguais tudo isso que é meu e precisa ser mantido longe da chuva para que não se desfaça e de mim sobre apenas um deserto que não sabe que tem sede