Benjamim Costallat, “A luz vermelha” (1919)

Henri Gervex, "Rolla" (1878)
Museu de Belas Artes de Bordeaux

Benjamim Costallat

A atmosfera era pesada.

No recanto escuro e mal-encarado dir-se-ia se terem acumulado um século de prostituição, gerações de prostitutas. Sentia-se o ambiente carregado de beijos de todos os preços, formas e dimensões. Rua de barregãs. Cenário do amor taximétrico.

Ela chamava-se Maria. Brasileira, não tinha pensado em mudar seu nome para um mais complicado e sensual ao exemplo de suas colegas francesas. Desconhecia a utilidade atrativa das Loulous, das Ninons, das Georgettes… Chamava-se pura e simplesmente Maria. Várias vezes já a tinha visto na mesma posição, com a mesma fisionomia, na mesma expectativa. Nada de interessante. Nem bonita nem feia, [nem elegante nem deselegante.

Fisionomia caracteristicamente comum a uma classe, e a um mesmo romance. Os mesmos estigmas das outras, os mesmos vícios estampados na face, a mesma clássica atitude, as mesmas clássicas palavras. Respeitava, como as outras suas colegas, em todos os seus mandamentos e detalhes a pragmática e a jurisprudência da prostituição. Era semelhante às outras. A mesma vida tinha formado a mesma criatura.

Passava eu ali diariamente. Conhecia Maria de vista. Depois da insistência de algumas propostas de sua profissão, aliás por mim sempre docemente repelidas, tornamo-nos velhos camaradas.

Todos os dias, era de parte a parte um boa-noite afetuoso e desinteressado. Passava. Sentia seu olhar que me seguia. E era tudo.

Às vezes, não a via. Não estava na porta. Olhava sua janela acesa e sofria uma sensação estranha. Era uma mistura de pena, de nojo e de ciúme.

Entristecia-me ante a vida de minha camaradinha, e, ao mesmo tempo, tinha-lhe raiva. Repugnava-me.

Outras vezes ao entrar na rua deserta percebia um vulto conversando com Maria, e bruscamente compreendia que o casal se tinha emaranhado para dentro de casa. Mal chegava em frente à sua porta e a luz que me irritava achava-se acesa. Era uma luz bizarra. Docemente vermelha fazia um estranho contraste com um mobiliário amarelo que, em frações desconjuntadas, de quando em quando me era dado ver…


Passaram-se semanas, meses. A impressão de repugnância, de asco, desse mal-estar que prende a garganta e perturba o estômago, já havia por completo desaparecido. Agitava-me naquele recanto podre e prostituído como em um cenário amigo. Não podia passar um dia sem dar aquele boa-noite à Maria. Já fazia parte da minha vida. Sem parentes, sem amigos, depois de um trabalho embrutecedor, em uma embrutecedora casa de comércio, era um alívio, era deliciosa aquela rápida convivência com um ser que me compreendia e que me tolerava. Do meu trabalho para o meu quarto, do meu quarto para o meu trabalho, aqueles instantes eram na minha vida minha única distração, meu único consolo, meu único romance. Cada vez atardava mais demoradamente a ligeira permanência na soleira daquela porta. O guarda civil já me conhecia. E tolevara o mais possível as minhas delongas. Em todo o caso Maria e eu nos divertíamos em burlar a vigilância do guarda. Quando ele passava no seu passo cadenciadamente autoritário, ela me empurrava violentamente para dentro de casa. E atrás da porta eram deliciosas as nossas palestras. Parecíamos namorados. Escondidos conversávamos baixinho. Eram na sombra protetora da grande porta como que momentos roubados, de consolo, de carinho, à tristeza geral da vida. Ela, que nos primeiros tempos ainda me falava em um timbre antipático, canalha, em uma voz arrastada, com períodos e conceitos avazelinados, ficou simples, espontânea, sincera e natural. Não parecia a mesma. Suas frases tornaram-se pequenas e nobres. Sua voz pura. Seus gestos sóbrios… O objeto de nossas palestras? A vida. A vida como deveria ser vivida. A vida do mais forte, do mais belo, do mais talentoso. A vida da inteligência, da vontade e da coragem. Criticávamos o século. Dissecávamos impiedosamente os homenzinhos quintessenciadamente cintados e empomadados que são os filhos-famílias da época. Ridicularizávamos o burguês e seus preconceitos. Revoltávamo-nos ante o comerciante analfabeto, o comerciante dos tempos coloniais que ainda hoje entre nós impera, esmagando na sua inconsciente brutalidade todas as aspirações estéticas de sua família, de seus empregados… Contava-lhe as minhas misérias, na casa onde trabalhava. Meu patrão, depois que soubera que eu gostava de música e de quando em quando esboçava alguns desenhos, começara uma perseguição tenaz. Chamava-me do canto da boca e com desprezo – artista! Artista, isto é sinônimo de vagabundo, de pobre diabo, de bastardo… Começou a ridicularizar todos os meus mais sagrados hábitos, a gravata que usava, o corte de meu cabelo, as abas do meu chapéu. De tudo tirava partido. A música não alimenta, não é? Os versos não dão saúde, não é? A literatura não mata a fome, não é? Teus desenhos não te vestem, não é? Então para que tudo isso, seu idiota? – dizia diariamente o gordo português. Era o desprezo do homem mais barrigudo e com corrente mais grossa no colete, sobre os que só tem essas protuberâncias no cérebro. Era o terrível domínio do gordo sobre o magro. A horrível superioridade da banha sobre o talento. Do homem que almoçou condignamente sobre o outro que só tem no estômago uma “média”… Era o objeto diário de minhas palestras com Maria. Evervávamo-nos de pensamentos, embriagávamo-nos de nossas próprias palavras com as nossas próprias revoltas. Esquecíamos o tempo. Um vulto às vezes passava. Escondido atrás da porta, parando o meu entusiasmo, olhava… Não conhecia mais minha companheira. Um gesto. Um olhar. Uma interpelação. E a metamorfose se produzia. Não era mais a mesma. Dizia-lhe apressadamente adeus, e desaparecia furtivamente, com o coração apertado, enquanto o vulto subia os degraus escuros da escada…


No dia seguinte, a mesma cena se reproduzia. De camaradas ficamos amigos. Éramos confidentes um do outro. Não havia uma dúvida, uma tristeza por mais passageira que fosse que o outro não soubesse. Sobre sua triste profissão ela tinha entretanto a delicadeza de nunca me tocar.

Às vezes, na loja, meu patrão era ainda mais analfabeticamente brutal do que de costume: aparecia-me mais gordo e sua corrente de relógio ainda mais ameaçadora. Tudo suportava porque sabia que à noite teria o consolo de minha pobre amiga. Era sempre um consolo de mulher!…

Esperava ansiosamente a hora da saída. Corria e tudo lhe contava.

Na sua triste experiência da vida, ela sempre encontrava uma fórmula de consolo.

Foi dessa época que comecei a compreender que só nas infelicidades passadas é que se podem arranjar consolos para o presente, e encontrar coragem para o futuro…


Um dia ela não estava na porta. Uma sua companheira me mandou subir – Maria achava-se seriamente doente. Subi. Pela primeira vez via seu quarto. Estranhei. Não era semelhante aos outros. Não era um quarto de prostituta. Parecia mais o quarto de uma artista. Quadros sóbrios e de gosto dominavam as paredes. Em todos os cantos, sobre a mesa, em bibliotecas pequenas e bem arrumadas, livros em grande quantidade, todos cuidadosamente encadernados e escolhidos. Os melhores e mais profundos autores.

Aproximei-me. Recurvada na cama ela me estendeu a mão. Apertei-a comovidamente.

“Então o que é isso?”

“Nada. Um começo de decadência. Já tardava. Sabes Renato que a natureza é lógica e bondosa. Um ser que muito sofreu é rapidamente imunizado pela sua própria dor ao sofrimento. Tenho sofrido. Bastante mesmo. Horrorosamente… Mas isso pouco importa. E tu? Como vai teu horríbel e pançudo patrão?”

“Peuh! Mas tu Maria o que sentes?”

“Quase nada e ao mesmo tempo muito. Sinto o desfecho de uma vida de agitação. Sabes, é interessante, tenho a sensação de ter chegado ao momento em que nessas fitas americanas, depois de muitas peripécias, tiros e perseguições, o espectador compreende que chegou o momento inevitável da legenda de fogo no seu quadro escuro anunciar em grandes e definitivas letras – FIM”.

“Ora que bobagem, Maria…”

“Quem como eu é uma calejada da vida, forçosamente tem um poder de intuição que a todos não é dado ter. Sei que o fim se aproxima. A doença? Não sei qual delas. Um acúmulo de doenças. Um acúmulo de horrores…”

“Mas tu ainda és moça, Maria, mesmo bela…”

“Talvez! Ah! Mas tu não podes imaginar o que sofre uma mulher nas minhas condições. O nojo diário e constante que se tem da vida, de si própria. Acorda-se. Olha-se em torno de si, que se vê? Nada. Olhamos para o dia da véspera. Encontramos a cada de um homem, e algum dinheiro na mesa. E mais nada. É terrível este vácuo. É pavoroso este isolamente entre tantas caras que entram e que saem… É o terrível spleen das que não têm um ideal, um marido, um noivo, um amanete, o futuro de um filho, a felicidade de uma filha, um pai de quem se cuide, uma mãe que nos console… É toda a medonha vida das que não vivem… Não podes compreender Renato o que seja o suplício das mulheres que levam a minha vida e têm a infelicidade de se não acharem irremediavelmente perdidas, de se não acharem integralmente embrutecidas, que ainda infelizmente pensam, que ainda infelizmente sentem…

“Os dias se seguem terrivelmente idênticos entre si. O dia que hoje surge é o mesmo que ontem terminou. É a mesma cara de homem, cara que não gravamos no espírito; é o anônimo que ontem vimos, que hoje estamos vendo e que amanhã veremos; é o mesmo dinheiro na mesa… São as mesmas frases repetidas. Os mesmos carinhos. Os mesmos horrorosos carinhos… Depois, é a decadência fatal e inevitável. Sentimos esse nosso corpo vendido e prostituído entrar em um terrível período… Deforma-se. Perde as suas linhas. Decompõe-se. Transforma-se em uma mesma massa incoerente e confusa… É a carne prostituída que está cansada… que está vencida… que está podre…”

“Sim… Mas…”

“Já sei o que vais dizer. É que a prostituição é uma profissão como qualquer outra, e quem não quer ser prostituta que não o seja. Não é? Isso é o que ias me dizer? É o que erroneamente a sociedade pensa. Existem certas situações, certos romances, que só têm um desfecho possível – a morte ou a prostituição. Sim, a prostituição está no fim de muita história bonita, de muito ideal cor de rosa de menina, exigindo implacavelmente a sua vítima. Ela é em certos casos irremediável. Ninguém nasce com os instintos de mulher vendida… Todas as mulheres têm seu sonho; um sonho muito doce, muito agradável – o de um homem bonito, inteligente e corajoso… É o chevalier de todas as Manons. Achamos, todas, tão natural o nosso sonho que não podemos conceber um só instante que por marido nos seja dado um idiota, um covarde, ou um homem feio. Era como as outras. Tinha também meu ideal. Era um artista. Tinha fé em seu talento, em seu futuro. A ele me entreguei. Poucos meses depois, vítima de sua vida agitada, do eterno esforço em que vivia, uma tuberculose e… Descoberta a minha falta pela minha família era expulsa de casa. Fui fraca. Acedi a um velho que me prometia proteção. Mas, era moça. Queria viver. Fui de outros… E pouco a pouco sem sentir escorreguei até a horrível situação em que me encontras. Acredita Renato que a prostituição – é uma terrível ironia! – quase sempre está no fim dos mais belos sentimentos, das maiores dedicações, dos mais puros amores. Tenham pena das infelizes mulheres perdidas que só pecaram porque foram muito humanas…”


Ia ver diariamente Maria. Cada vez parecia-me mais exaltada e mais fraca. O fim se proximava rapidamente. No dia de sua morte ela ainda voltou a me falar do horror de sua vida. Apontava-me a criada velha e escalavrada e dizia-me o seu prazer de nunca chegar àquela condição. Então me contou que a empregada tinha sido uma beleza em seu tempo, tendo provocado três ruínas e um suicídio.

Sua morte foi calma. Ao entardecer, sem um protesto, a pobre cortesã extinguiu-se. Tendo obtido de meu patrão licensa para sair mais cedo, corria a vê-la. Sob a luz docemente vermelha de seu quarto, ainda ouvi o último suspiro de minha querida amiga.

Os olhos cheios de lágrimas, comecei a rememorar todas as suas palavras. O desespero que tinha de seu estado. Tivera sido “muito humana”!

Pobre mulher!… Já era tarde. No beco o movimento se fazia grande. Pela janela adentro subia um terrível bafo de rua de meretrizes. Aquela que ali estava, estendida e imóvel, dela já se tinha felizmente desvencilhado… Ouvi um grito. Estremeci. Uma voz grossa de homem na soleira da porta chamava autoritariamente – Maria! Maria!… Onde está essa mulher?!….

A velha criada correu. Explicou. O homem resmungou. Cuspiu. Enterrou o chapéu. Deu dois passos. Atravessou a rua. Na casa da frente o vi parlamentando com alguém e entrar…

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Entrevista de emprego

“[…] deu por si flutuando no mar depois de ter mergulhado nas águas escuras da morte. Renasceu”.

Bicho

“não consigo nomear porque eles não usam palavras”

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