Revista de Cultura

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10 reais & 01 maço de cigarros

Peter LaRubia

1 —

No canto inferior da capa, um selo dourado avisava: Totalmente Livre de Robôs. E abaixo, como se a mensagem precisasse ser reforçada: Escrito por Humano. Apalpei a solidez do livro enquanto encarava a foto do autor na contracapa, pensei em úlcera e em câncer de estômago: se inveja tinha um gosto, definitivamente era o de bile. Toni tinha conseguido o selo de ouro. Acima do selo, em fonte bem maior do que o próprio título – por sinal longo, apelativo e cafona – eu tinha que aturar o nome do autor: Toni Brandão. Em lugar nenhum você encontraria a alcunha de José García da Silva, o qual, não por acaso, vem a ser minha pessoa, euzinho, o responsável por escrever praticamente todo o texto que compunha aquele romance.

2 —

Se ninguém leu meu livro, ele existe? Mas vejam bem, não é verdade que ninguém leu, eu li. Eu sou alguém. Mas isso vale ou é trapacear no jogo? Um romance escondido na gaveta da escrivaninha ou em subpastas do computador ainda é um romance? Se você disser que sim, eu posso alegar que aquele livro todinho elaborado em minha mente e guardado no fundo da minha cabeça redonda também é um livro? Se eu continuar eternamente com medo de que ninguém leia meu livro e isso me paralise de modo que eu nunca efetivamente o escreva, pelo menos serei poupado de terminá-lo e efetivamente ninguém o ler. A consciência antecipada de ser um fracasso te poupa da descoberta por parte dos outros de que você efetivamente é um fracasso. São essas relações escravizantes com o outro que me perturbam cada dia mais, de modo que eu venha a preferir uma sutil dormência a qualquer tipo de prazer, surpresa ou agitação. O inferno são os outros.

A verdade é, mais uma vez, que eu odeio escrever. Se eu pudesse ser uma dessas pessoas que se sentam na frente da tv ou que passam o domingo na mesa da praça e nisso se dão por satisfeitas, nem por um segundo desejaria ser um escritor. Isso não é um sonho, é uma maldição; não é desejo, é uma obsessão pura. Do tipo que se assemelha à tortura medieval. Eu não devia estar às três da tarde de um domingo quente pra caralho tentando criar um mundo fantasioso onde eu sou uma espécie de deus incompetente que tenta dar sentido a cada acontecimento e cada vírgula, inventando mentiras para contar uma verdade maior. A verdade maior é o mundo lá fora, é a relação toda escangalhada com o meu pai que eu fui incapaz de ao menos tentar me aproximar. Isso sim, algo real e necessário. Algo que, se eu tivesse coragem para remexer, talvez até me ajudasse a escrever melhor, já que essa minha trava eterna é fruto sem dúvida alguma do amontoado de poeira que fui jogando e acumulando embaixo do tapete da minha vida afetiva. Se não isso, eu poderia estar pelo menos me banhando sob o sol, e não preso num quarto mal iluminado. Quem sabe esse meu eterno mal-estar, esse cansaço perene da alma, essa vontade de desistência constante não seja apenas falta de vitamina D? Pois é, muito a minha cara um dia ir num médico e descobrir que mais de trinta anos de flerte com a depressão poderia ter sido resolvido com banho de sol e exercícios regulares. Às vezes tudo que eu quero é uma pílula que resolva minha indolência, mas morro de medo de tomar remédios. Até para me destruir sou preguiçoso. Prefiro arrastar-me como lesma em lixa de ferro por décadas até um precipício imaginário do que jogar um punhado de sal sobre o meu corpo molenga.

3 —

– Responder o que é humano não só é vago, mas principalmente, é histórico. A pergunta certa seria: o que é um ser humano hoje? O que te permite atuar em sociedade e ser reconhecido como entidade senciente, ou seja, o que te chancela a condição de ser existente? Não importa se uma IA desenha, pinta ou escreve. Não importa se ela possui corpo material e capacidade de interagir. Não importa nem mesmo se ela possui autoconsciência. Enquanto ela não puder comprar, enquanto ela não puder consumir ela não será, hoje, tratada como igual.

Se o que define o ser humano neste momento histórico é sua capacidade de consumir, logo, uma máquina vai ser tratada como gente no momento em que ela for capaz de comprar alguma coisa. Simples assim. Não precisa de propósito nem de desejos independentes, só precisa ser consumidora. Até porque, sejamos sinceros, um dos pré-requisitos básicos do bom consumidor é a incapacidade de pensar por si. Descartes morreu, o mote do pós-humanismo é “Consumo, logo existo”.

Não consegui esconder o sorriso orgulhoso daquele que resume o mundo numa frase.

Então, percebi que a mulher no canto do balcão estava saindo às pressas, deixando pela metade a refeição que tinha acabado de chegar. Havia tirado os óculos escuros, seus olhos miravam o chão e, de forma intranquila, me procuravam ao mesmo tempo. Esperei encontrar um sorriso de despedida, porém, por mais que eu tentasse me convencer do contrário, estava claro demais que a expressão da mulher era uma mistura de pena e medo. Passou por mim com a bolsa apertada contra o peito. Pela primeira vez, percebi o silêncio na lanchonete, os casais e as famílias nas mesas tinham parado de comer e me olhavam com rostos curiosos. Uma criança de tranças e óculos fundo de garrafa apontava para mim. Saí de casa buscando relaxar apenas para descobrir que aquilo só me exauria mais. Apenas para me relembrar como as pessoas reais só me causam pânico e desgosto. O cheiro de carne podre ressurgiu, parecia vir do pastel que tinha deixado pela metade, mas eu sabia que ele só existia dentro da minha cabeça.

4 —

Na segunda vez que encontrei Toni Brandão, ele tinha uma arma apontada para minha cara. Todas as lendas clichês sobre o escritor ermitão que expulsava fãs e jornalistas na base do chumbo se concretizavam bem na minha frente. Mas eu não era jornalista. Muito menos fã. E Toni certamente não se lembrava do nosso primeiro encontro. Embora eu fosse a razão de sua existência, ele não tomava consciência da minha, incapaz de se dar conta da simbiose parasitária que fazia de nós dois, um só. Eu, a alma; ele, o corpo. Eu, o fantasma; ele, a casca. Eu, aquele que anima; ele, aquele que é visto. Em sua ignorância, não percebia que me matando podia acabar com a própria vida.

Quase dava para sentir o cheiro metálico do cano de aço perto do meu nariz e essa imagem            de total submissão      de certa forma resumia a minha vida.           Eu, que vim até aqui em busca de algum tipo mal-ajambrado e patético de vingança, agora lutava para não sentir urina escorrer pela calça jeans. Por um instante, me perdi tentando catar os cacos de memória para encontrar o motivo exato de ter invadido a casa de Antoni:

A) Abraçá-lo com força, deixando seu cardigã azul safira empapado de lágrimas e catarro enquanto confessava minha inveja? B) Roubar até o último centavo da dinheirama que ele certamente escondia em casa? C) Esmagar aquela cabeça privilegiada de onde escorrem tantas histórias usando uma de suas máquinas de escrever da coleção de peças retrô? Ou D) Todas as opções acima?

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