Luiz Eduardo de Carvalho
Numa conversa antiga com o querido e saudoso mestre Ricardo Ramos (filho do Graciliano e pai do estimado amigo Ricardo Ramos Filho), deixamos um pouco de lado a publicidade (fui seu aluno na ESPM) para falarmos de nosso assunto preferido: a literatura. Perguntei ao exímio contista o que era preciso para escrever um bom conto.
A resposta rendeu deliciosa prosa acompanhada de alguns scotchs (ou era uma boa caninha?) e vários cigarros long size lá no ateliê do Aldemir Martins (cujo centenário comemoramos agora em 2022), que acabara de lançar o livro Desenhos de Roma. Ainda lembro da resposta entre baforadas esfumaçadas do professor que fumava em intervalos regulares, medidos por metódicas consultas ao relógio, pois, segundo ele, estava tentando diminuir!
De tudo quanto considerou acerca da produção de grandes contistas, lembro, em suma, de ele dizer que o bom conto traz um único acontecimento, quanto mais universal, mesmo que banal ou corriqueiro, melhor; desde que contado de forma instigante, com linguagem precisa e sem argumentações verborrágicas, porém com um modo de narrar capaz de provocar na mente dos leitores interpretações potentes que vão além de quaisquer digressões que o autor pudesse apresentar. O conto é uma provocação que se conclui na interpretação de quem o lê, resumia a lição. Fui à cata de vários autores por ele sugeridos: de Guy de Maupassant a Machado de Assis, de Jorge Luis Borges a Murilo Rubião, de Franz Kafka a Guimarães Rosa.
Em síntese, após a eleita lista de leituras, acrescida de muitos outros nomes, conclui que fazer um bom conto depende de dominar a linguagem com as rédeas da concisão e as esporas da sugestão. E é exatamente assim que cavalgamos, em vertigem tão ou mais grandiosa, no dorso de Quem tá vivo levanta a mão (Patuá, 2021), da brilhante escritora Maria Fernanda Elias Maglio, que já ganhou o Jabuti e o Prêmio Biblioteca Nacional por, respectivamente, Enfim imperatriz (contos) e 179. Resistência (poesia).
Na nova obra, a autora retorna revigorada de temas e de vozes narrativas surpreendentes e vence com larga vantagem a corrida contra a paralisante perspectiva de superar a qualidade de uma estreia tão laureada e tão bem acolhida pela crítica e público. É como se estreasse novamente e, mais uma vez, trouxesse o melhor de uma produção refinada pela longa espera de uma escrita acumulada por anos de dedicação. Nada disso, os temas e situações delatam: tudo feito agora, com cheiro de tinta fresca a exalar urgente contemporaneidade.
Ratificar, assim, a qualidade de sua escrita com um novo conjunto de contos surpreendentes pareceu processo natural, espontâneo, sem afetação ou pretensão, o que é apenas mais uma evidência de estarmos diante de um nome que o registro literário elencará na galeria dos ímpares, dos grandes, dos mestres.
É impressionante o poder simbólico que Maria Fernanda empresta a objetos e fatos banais, como um toco de giz, uma inscrição numa lápide, a consciência de uma cadeira elétrica, um beijo de língua, uma galinha morta, uma caça à onça, uma rã, um cheiro de cloro, um polvo ferido, uma massa de pão sovado… Tudo artifício e engenho para transpor, como se fosse civilidade, a ignorância, a brutalidade, a violência e a bestialidade humanas manifestas por uma diversificada galeria de tipos que testam e atestam, a todo instante, a tensão entre Eros e Thanatos, no limite entre viver e morrer, como numa chamada que inquire a cada novo conto: “Quem Tá Vivo Levanta a Mão”.
Mais contundente é a narrativa que ela constrói para nos aprisionar no pasmo do que é contado, não pelo inusitado circunstancial, muito presente decerto, mas sobremaneira pelo esmero na forma de contar. Fluxos intensos de pensamentos, livres associações de ideias, recorrências de imagens, linguagem fluída, diversificada e multidirecional, coesão, concisão, alternância de tipos de discursos e dicção de personagens. Um arsenal de recursos muito bem postos em vinte e três histórias que, dispares entre si, guardam a unidade de uma potente obra, pois assemelhadas na múltipla urdidura da investigação acerca do tênue limiar entre vida e morte.
Se Maria Fernanda Elias Maglio já era imperatriz, teremos que inventar novo e superlativo título nobiliárquico com que condecorar essa imperdível leitura que nos espera em Quem tá vivo levanta a mão, um livro talhado para a superação de todo o sucesso de antanho.