Fim do caminho

G. Cannon (Texas, EUA)

Valéria Martins

A cabeça do búfalo mirava-o, como se ainda tivesse os olhos, no centro dum encharcado de sangue e moscas. Órbitas vazias, boca semiaberta, uma ponta de língua roxa para fora, como se agonizasse. O cheiro de sangue e linfa preenche o ar e o alcança, impacto potente. Mais uma vez pergunta a si mesmo o que está fazendo ali, por que não vai embora.

Quando chegou, havia um simulacro de paz, redenção. O plano era viver só, junto da natureza. Nada nem ninguém para lhe amolar ou ter que dar satisfação. Criar galinhas, fazer horta. Cuidar de si. Já que era um desastre nas relações com os outros, melhor isolar-se. Agora, sim, teria sossego. Será? É um dos poucos estrangeiros na ilha. Os nativos o rejeitam, fazem tudo para enxotá-lo. Já lhe roubaram a roupa do varal, espalharam lixo em seu quintal.

Diz um palavrão, entra na casa. A lixeira num canto da cozinha transborda, mas falta ânimo para manipular os restos que ele mesmo produz, provas de sua rotina miserável. A roupa de cama é a mesma desde que chegou, há meses. A toalha no varal já tem a cor do chão. Pergunta-se, também, como chegou a esse estado. Antes que se abra a cratera sem respostas, move o pensamento para outras bandas.

Vai até a bica, enche de água as mãos em concha, joga na cara e na cabeça. Imagina como anda a própria aparência, uma vez que não tem espelho. Um riso espontâneo rompe o silêncio, alto relevo da solidão. Não há ninguém ao redor, nem num raio de quilômetros. Penteia às cegas, com os dedos, a cabeleira armada que já lhe chega aos ombros. A barba cerrada tem um dedo de altura, acaricia-a como a um bicho de estimação.

A fome corrói o estômago; na falta de comida, vai enchê-lo de fumaça. Ajeita o fumo numa página de caderno – diamba não falta ali, mas seda para enrolar, sim. Dá a primeira tragada, o papel queimado atinge a glote, faz o corpo estrebuchar de tosse. Um torpor suave começa no cocuruto e esparrama-se sobre os sentidos. As pernas amolecem. Caminha a esmo pelos cômodos, evita o alpendre e o búfalo, adia a tarefa medonha de expurgá-lo. Senta-se nos degraus da porta dos fundos.

A paisagem alivia os sintomas do mal. Pássaros voam em diferentes rotas, seus cantos vibram no ar. O imenso lagarto preto e branco, conhecido seu, surge da mata e se expõe ao sol, atento ao menor movimento, para tornar a se esconder. Os ilhéus dizem que sua carne é saborosa, melhor que frango. Formigas marcham céleres na eterna tarefa de amealhar migalhas, alheias a qualquer distração. Coqueiros chacoalham desprendendo um aroma quente e verde.

A beleza traz o rosto dela. Pestanas louras e espessas como diminutas escovas sobre os olhos verdes, o jeito de rir sem mostrar os dentes, os grandes mamilos róseos de pele tão fina que ele temia que se rompessem sob a força de seus lábios. Ela está a chamá-lo, escondida atrás de uma bananeira. Mas quando se levanta para alcançá-la, era apenas o vento sacudindo a folha.

Abre a porta da rua, dá de cara com o búfalo sob o sol do meio-dia, plasma e podridão. Circunda o macabro altar e parte em direção à casa de Dona Carminda, a senhoria. Vinte minutos a pé, a fome atiçando os instintos. Mosquitos, atraídos pelo fartum de suor, dão suas bocadas aqui e ali. Avista o quintal cheio de caixotes quebrados, garrafas vazias, latas de cerveja amassadas, à espera de serem levadas para reciclagem, o que nunca acontece. O marido e os filhos passam o tempo na birosca à beira rio, gastando o dinheiro que ele paga de aluguel.

A velha está no tanque areando panelas. Olha-o por cima do ombro, volta a concentrar-se na tarefa. Ele conta da cabeça de búfalo, pergunta quem poderia ter sido. Diz que não adianta, não vai embora, não tem medo (é mentira). Ela busca punhados de areia do chão, esfrega no fundo das panelas, rumor irritante e sem fim. Finalmente diz:

“Ocê não ouve não, é?”

“O quê, Dona Carminda?”

“O silvo da Matinta”.

Olha-o com ar acusatório. Cabelos brancos mal presos num coque, fios voando ao redor da cabeça, medusa encarquilhada.

“Ocê vem morar no Marajó e nunca ouviu falar da Matinta Perera?”

“Só na música, Dona Carminda”, apalpa nervosamente os bolsos dos shorts em busca de cigarros. “A senhora me explica o que é?”

Ela se afasta do tanque, senta-se em uma pedra sob a paineira no quintal.

“A Matinta anda rondando sua casa faz tempo. A gente escuta daqui. Não podemos fazer nada senão ela se vira contra nós”.

“O que é? Um bicho?”

“Ela voa por aí assobiando e, quando encrenca com alguém, a pessoa tá ferrada. Vira escravo, tem que fazer tudo pra agradar, senão a vida vira um inferno”.

Ele não sabe o que dizer. Anda em círculos, ruminando palavras e pensamentos. Chuta uma lata, esbraveja:

“Tô ferrado, então. Daqui a pouco vem a mula sem cabeça, o Saci Pererê, o boto, me visitar. Vá pro diabo!”, volta rápido pelo mato.

Diante da cabeça do búfalo, um vira-lata franzino estica o pescoço, cheira de longe, ressabiado. Espanta-o com gritos e pontapés, tenta erguer a carcaça pelos chifres, pesa uma tonelada. Consegue arrastar com dificuldade uns 100 metros mato adentro, cobre com terra e folhas, bizarro funeral. Joga areia sobre a poça de sangue que restou, espanta as moscas. Quando termina está tonto como um animal bêbado. E faminto.

O sol começa a descer. Um vento fresco vem da baía. Talvez consiga descansar um pouco. É então que chega aos seus ouvidos um assobio distante, intermitente, crescente como um uivo. É ela. Finalmente vão se conhecer. Que venha.

Compartilhe:

Poemas

“estás exiliado a penas solitarias” (em espanhol)

Translate