Lembranças e paisagens

Cícero Dias, "Canavial" (dec. 1970)

Maria José Leite Pereira

Meus olhos têm sede de paisagem, queria atravessar o mundo em alta velocidade, pinheiros, espigueiros, casas empilhadas, telhados envelhecidos, uma porta entre duas janelas, a barra do céu alaranjado pintado pelo sol nascente atrás do Caramulo. Paragens, muitas paragens, trilho de ferro entre paredões rochosos, um fio d’água brotando das pedras para escorrer até o mar. Deslizo sobre o alcatrão, empurrada pelos ventos que uivam debaixo da ponte e varrem o chão húmido dos campos de olivais; através da estreita janela contemplo as videiras cobertas de folhas novas aguardando o momento de serem polinizadas, oiço zumbidos e batidas suaves de asas, e, enquanto o comboio avança, começo a assistir o espectáculo primaveril, vento gélido de saudades do inverno, pássaros, abelhas e flores.

O rio transborda, rente aos trilhos sinuosos seguindo silenciosamente as curvas da estrada para formar um Lago Negro entre o nevoeiro; ao longe vêm-se os montes reluzentes, formação rochosa de onde se espreita o infinito. Troncos cinzentos e um pássaro azulado equilibrando-se sobre um galho seco. Imagens que saltam da tela fixada na parede amarelada da antiga estação, luz e cor alteram os sentidos, almas saídas do purgatório para apreciar as cores da primavera, um calafrio nervoso provocado pelo vento gelado que percorre as nossas costas e acaricia o dorso do escorpião camuflado na pedra. Seguimos em frente, arrastando os nossos corpos pesados de cansaço que contrastam com a leveza do pavão aprisionado na fotografia; minúsculas flores cor-de-rosa salpicadas na rocha amarelada, pequenos mundos perpetuados pelos cliques de um fotógrafo profissional.

Cenários dispostos nas paredes do corredor. Quando nascemos, somos encaixados no cenário da vida pelo grupo que nos recebe, algumas vezes, descolamo-nos dele; outras permanecemos, confortáveis ou totalmente desconfortáveis, como a menina desengonçada tentando acertar os paços do lago dos cisnes, ao som de Tchaikovsky. No primeiro ato quebra uma sequência e desarticula o ritmo das colegas sincronizadas; todos sustêm a respiração enquanto integram outros personagens na dança: rainha, feiticeiro, cavaleiros, príncipes e princesas calcam o velho soalho envernizado. Na imaginação da menina, os cisnes brancos, banhados pela luz da lua, flutuavam sobre o lago negro, enquanto ela afundava, puxada pelo peso das brumas molhadas de lágrimas sob o olhar atento do cisne negro, consciência obscura que girava em torno de si.

Oscilando entre o lago imaginário e o palco envernizado, desequilibra-se e cai. Ergue-se rapidamente, reencontra os passos e ocupa o seu espaço no cenário pintando por outros. “Sabes quantas meninas podem pagar uma aula de balé?” “Sabes quantas meninas gostariam de andar aqui?” “Tu irás conseguir” Tinha saído de casa às sete da manhã, seguida por uma lua nova quase apagada no céu, pequena luz de presença que ilumina as manhãs escuras dos dias mais curtos. Na estação procuro saber as horas. A fita adesiva que impedia o vidro do relógio de cair também tapava o doze e o seis em algarismos romanos, provocando pequenos lapsos de tempo aos desavisados que por ali passam quando os ponteiros se encontram nesses pontos, sobrancelhas erguidas, testas franzidas, tic-tac, o relógio está a funcionar, sete e quinze, saio do mundo turvo das memórias para seguir viagem.

Boneca electrónica, ligada ao cabo de USB encaixado no teto do autocarro, com movimentos limitados para não perder a carga. Quase não dou conta de nada; olhos sempre inquietos à procura de alguém que não veio nesta viagem, coração aprisionado num silêncio profundo de morte. Fixei os olhos no ecrã do computador de um homem sem rosto, sentado ao meu lado; um conjunto de células pulsantes, frequência cardíaca, cordão umbilical, placenta, o som do início de uma vida penetra os ouvidos daquele companheiro de viagem através de auscultadores sem fio. Nas outras poltronas, separadas da minha pelo corredor, um casal dialoga baixinho em crioulo, duas mãos pequenas amparam uma vida saltitante num ventre saliente, e sobre o ombro ossudo da grávida repousa o braço forte de um homem com rastas no cabelo. O condutor anuncia a próxima paragem. O casal levanta-se discretamente e desparece ao longo dos degraus inclinados.

O cortinado entreaberto deixa à amostra mais um pedaço de rio. Estávamos a passar por baixo do arco-íris a 90 km por hora, o passageiro ao lado fechou o computador e adormeceu. Pensei naquelas células que se movem e juntam-se para gerar tecidos que darão origem a órgãos, formarão sistemas, e, em consonância como um balé onde ninguém erra o movimento, formarão organismos. No meu pequeno ecrã previsões catastróficas de cunho religioso afirmavam categoricamente que este seria o dia do juízo final, mas ao meu redor a vida pulsa, estica-se em pequenos úteros, mostrando a sua força e anunciando um dia de infinitos recomeços regados pela chuva torrencial, interrompida por um extenso arco-íris. Raios de sol cortando densas nuvens de recordações, más atuações no balé, o peso de um abandono paternal que atravessa gerações e a falta de braços pesados sobre corpos esguios que carregaram crianças sozinhos.

Sem ouvidos atentos para ouvir os meus relatos de alegria e de medo, busquei a felicidade na teimosia do espírito que ficou retido num não-lugar de sonhos confusos que fundem a casa da infância com todos os cantos do mundo; dentro de mim mora um lago de choro retido onde flutuam as dores dos desencontros. Retornei à estação do passado, subi as escadas e encontrei um cais vazio, flores de cimento entalhadas na parede; o relógio que nunca pára marcava sete e quarenta cinco. Lá estava eu, de capa preta e chapéu de abas largas cobrindo o rosto sem marcas do tempo, pálida e esguia, sem cheiro como uma rosa no livro das rosas, olheiras vincadas pelas noites insones de viagens no tempo. Dois olhos luminosos deslizam sobre os trilhos; o comboio entra na estação, abrem-se as portas, entro rapidamente para ter tempo de circular por todos os vagões. Não reencontro ninguém.

Houve um tempo em que a vida corria ao ritmo lento e viscoso dos caracóis que devoram jardins. O som de campainha escolar, o colégio das freiras, a antiga construção colonial encostada à Igreja de São Francisco de Assis; do outro lado da rua, forrada por pedras em desalinho, ficava a escola de balé. Nos meus sonhos ainda percorro ofegante os velhos labirintos, tetos e pisos emadeirados cheirando a verniz, escadas enceradas, portas e janelas coloniais. A minha casa, santuário imaculado da cidade, herança dos meus avós paternos construída no início do século XX, com rosáceas talhadas ao cimo da fachada e janelas cumpridas pelas quais se espreitava a torre da igreja, titubeando entre a neblina que cobria a cidade no inverno. Recordações agridoces: um puxão de orelhas por utilizar colchetes para encurtar as saias do uniforme escolar, fitas de cetim no cabelo e no calçado do balé.

Cortei a estrada através do vasto canavial, redemoinhos de fumaça que subiam até aos céus, usinas vivas, engenhos mortos e lençóis brancos azulados de anil. Encontrei árvores caducas com longos braços descarnados que não conseguem fazer sombra à geada matinal; cerejeiras coroadas por minúsculos pontos em tons de rosa; um vale coberto por um tapete de flores silvestres amarelas e giestas debruçadas na encosta para admirar a névoa dourada que atravessa o pinhal. Tornei-me estrangeira. Café fumegante na minúscula chávena branca, acompanhado por um pastel de nata crocante, com canela em pó por cima; aprendi a aspirar o cheiro de especiaria sobre doce conventual. Movimento-me confortavelmente nesse quadro, escuto diálogos em crioulo e esforço-me para entender línguas desconhecidas. Talvez, em algum lugar, sejamos todos estrangeiros em relação a algo, ou a alguém.

“Cheira a tília”, chegou a primavera, e num piscar d’olhos o sol estava até às vinte horas no céu, verão de fumo e fogos criminosos; crianças banhadas pelas folhas do freixo que se despe no outono; trovoadas anunciam o inverno. No pátio da escola, uma menina de cabelo dourado procura poças para estrear as suas galochas, enquanto outra, com um rosto escuro encaixilhado por duas tranças e orelhas de gato ao cimo da cabeça, persegue a própria sombra até vê-la dissipar-se por baixo do carvalho francês no instante em que se noticiava a morte de centenas de crianças, desfeitas por mísseis num país em guerra; estas nunca mais brincarão. Olhos rasos d’água, sem paisagens, um manto negro estende-se sobre a terra; acato o silêncio do mundo, afundo no lago dos cisnes para emergir no último ato iluminada pela lua que se levantava no céu. Dezanove horas, horas de voltar para casa, sem dança, nem infância. Somente lembranças e paisagens.

Compartilhe:

Translate