Camila Anllelini
Mãe,
Estou há mais de uma semana tentando começar essa carta que terminei antes de saber o início. A verdade é que entre ligações curtas e apressadas, sou pega de assalto com frequência por memórias que me tomam minutos consideráveis. Entre os registros de uma cena e outra, paro nos modos que cada uma inventou para atravessar o tempo, no cheiro de bergamota queimando dentro da latinha com álcool, no inverno, que ainda sinto quando cai o frio.
Tenho me divertido com o modo como odiava os móveis da sala estofados em cores primárias. As cores, os formatos e todo aquele ar de juventude que pairava na luz chegada no fim da tarde, dando notícias que ali, pouco tempo antes, era uma casa compartilhada por estudantes. A rede atravessada no canto da janela, a samambaia no teto e a mesa alta de desenho arquitetônico exposta em meio à decoração, eu afirmava que não haveriam de entrar na minha futura vida adulta. Faltava formalidade de casa de mãe por todo canto. Em casa de estudante não tem horário certo para tomar banho, nem alguém para assegurar que os fantasmas não durmam embaixo da cama. Casa de mãe de verdade tem de ter bibelôs na estante e cortina de voil. Clássica, sem inovações, de modo a comportar o clichê da família margarina.
Minha inquietação disparava ainda mais quando, na volta da escola, a disposição do ambiente era outra. Estava escrito na minha lei que casa de mãe garante a ordem estável das coisas para além do tempo que corre lá fora. Foi ali que meu senso de rigidez começou a se avolumar. Eu sei que foi.
Olhava em tom de censura para aquelas manias subversivas de usar perfume masculino e sair por aí com o blazer maior do que a largura dos ombros. Não existia outro modelo de mãe ao meu redor que se assemelhasse a tamanha revolução. Eu queria um exemplar normal, daquele tipo que servia o almoço seguido de sobremesa e aplicava um castigo vez ou outra, à menor necessidade se fazer presente. Sonhava com o gosto de ter menos liberdade.
Fiz de tudo para ser calada, mãe, eu me esforcei jogando da boca para fora todos aqueles insultos de adolescente com lança em punho, mas não teve jeito, o direito à revolução foi garantido a mim desde que cheguei.
Perdoa atropelar com mais brutalidade do que gentileza teu jeito de criança infinita, mãe. Conseguir enxergar beleza, quando a realidade se desfaz de sentido é a herança mais valiosa que carrego. É o cordão umbilical que me acompanha por aí afora. Se toda vez que me espanto com o mundo não corro de volta para casa é porque sei que aprendi contigo a sustentar o peso do corpo. É teu o meu amor atravessado para fora do osso, desculpa se às vezes espeta.
Vem fazer uma visita na terça, prometo botar menos sal no feijão. Aproveita e me ajuda a podar samambaia?