Revista de Cultura

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Cinco sonetos

Caspar David Friedrich, "Paisagem de inverno" (1811)
Staatliches Museum Schwerin

Ivanes Freitas

A propósito do seu aniversário

O tempo passa e não repara os dias.
Nós somos uma sombra que conserva
o adágio das primeiras invernias,
caudal de pirilampos que ele enterra. 

Nos bonecos da infância, desmembrados,
a criança que busca não encontra.
Descortinou os ontens devassados:
o tempo passa, sim; depois, assombra. 

É muito breve, o ontem (se explosivo,
se tranquilo, você o traz consigo),
assim que corta o rubro céu, se esfuma. 

Se explosivo ou tranquilo, dá no mesmo:
no fim, o que perdura são os erros
com os quais aprendemos coisa alguma. 

Em 24 de dezembro de 2022.


Soneto dos quase trinta anos

                    São minhas todas as horas vividas, 
                    que empilho como espólio sem herdeiros;
                                          (João Filho, Um Sol de Bolso)
O fim do calendário se avizinha,
e percebo que tudo é perda e falha;
desperdicei a vida, culpa minha.
O tempo rasga os anos qual navalha. 

Manhãs perdidas entre verso e rima
e noite não fodidas por preguiça;
desperto sono que talvez se imprima
em romance que não enreda ou viça.

Engulo a seco todo o desperdício,
aceito o não remunerado ofício
que enruga minha cara, como o tempo.

Até aceito, embora puto, a vida
e sua sempre adiada despedida
em todos os festejos de Dezembro.

Em 22 de outubro de 2021


Espelho

                       los espejos y la cópula son abominables,
                         porque multiplican el número de los hombres.
                            (Jorge Luis Borges, "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius") 
Espelho, nós jamais compreenderemos 
o mundo exato que você reflete, 
o que se perde quando não olhamos 
para o seu incomunicável vidro. 

Se repete os menores movimentos 
(ou nós que somos a repetição?), 
multiplica a miséria de nosso íntimo, 
e uma cara, que não a nossa, mostra.   

Nunca atravessaremos este umbral 
que nos revela o mundo que ignoramos. 
Jamais derrubaremos este muro   
que separa o que somos do que vemos. 

Espelho, os homens nunca saberão 
o segredo que seu silêncio guarda!

Em 28 de agosto de 2018


Autossugestão

A Wladimir Saldanha

Esse reflexo, que no espelho some
se o fito, sempre muda de tormenta.
Luz capturada, transcendência, fome,
desapareço no outro, que se ausenta.

E qual a sua forma, qual o nome
que não entendo quando se apresenta?
Esse reflexo a minha forma come
e usa meus restos como vestimenta. 

Se olho o reflexo nesse poço fundo,
o finito se funde com o infinito;
com essa imagem baça me confundo.

Reflexo que retorna com a doença:
se toco sua forma, me dissipo;
se não a toco, seu corpo se adensa.

Em 25 de agosto de 2018


Sur le vide papier que la blancheur défend
                                            (Stéphane Mallarmé, "Brise Marine")
O verso penso; dele nada arranco.  
Eu, quando não escrevo, fico ausente,  
e nesta folha muda, só o tranco 
de quem a angústia desta lida sente.  

A noite toda encaro a folha em branco, 
e me encara esta forma inexistente.  
Na folha, nada surge; e o susto é tanto,
que me contorço todo, horrivelmente.  

Perco-me em labirinto abstrato. Penso 
o verso, e o verso quer me emudecer.  
O poema não escrevo. Estou suspenso. 

Neste odioso papel tudo se esfuma.
Entre o nada de não dizer e o ser,  
não existe Pasárgada nenhuma!

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