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Tempo absoluto (I)

O Triunfo do tempo, Escola Florentina, Século XV. Museu Bandini, Fiesole, Itália.

Jocê Rodrigues

Contra a foice do tempo é vão combate,
Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.

William Shakespeare
(Tradução de Ivo Barroso)

O fenômeno do tempo permeia todas as veredas da existência. Está presente em todos os aspectos da vida, envolvendo a tudo e a todos como uma malha fina, que se estende tão delicadamente, que por vezes se torna imperceptível até para os olhos mais atentos e treinados.

Na literatura, milhares, talvez milhões, de páginas são dedicadas ao tempo e aos seus dilemas. Por vezes de modo bastante explícito; em outras, de maneira sutil e vertiginosamente profunda. Logo nas primeiras linhas da Divina Comédia, Dante Alighieri aborda o signo do tempo de um jeito muito refinado. Teodolinda Barolini, uma das principais dantistas contemporâneas, aponta que, ao iniciar o primeiro canto do seu poema com o famoso verso “No meio do caminho da nossa vida” (“Nel mezzo del cammin di nostra vita“), o poeta chama a atenção para o fato de que nós existimos no tempo e na história, ou seja, no meio de um caminho – nunca no início ou no fim dele. Toda vida se inicia no meio da junção formada entre tempo e história.

No cinema, Andrei Tarkovsky via o seu trabalho como o de um escultor. Mas, ao invés do mármore, o material a ser trabalhado é o próprio tempo. Seus filmes são resultado, antes de tudo, de uma mente convicta de que o tempo, como ele mesmo descreveu em Esculpir o Tempo, “é um estado: a chama em que vive a salamandra da alma humana”, entendido como “uma categoria espiritual e subjetiva”. Dessa forma, o “tempo por nós vivido fixa-se em nossa alma como uma experiência situada no interior do tempo”.

Questionar a natureza do tempo e o que ele representa é um dos exercícios metafísicos mais antigos e está presente em muitos mitos fundadores, responsáveis por dar o tom ao desenvolvimento e às regras da vida em sociedade. Naquele que talvez seja o mais conhecido deles, Kronos, filho de Geia e Urano, tinha o péssimo hábito de devorar os próprios filhos (ato que serve como metáfora para a passagem do tempo sobre a vida dos pobres mortais).

No diálogo Timeu, de Platão, Sócrates conversa com um astrônomo que conta sobre a criação e o funcionamento do mundo num sistema onde os corpos celestes, descritos como andarilhos, aparecem como responsáveis por montar guarda sobre o tempo. Uma afirmação que nos leva a crer que Timeu está a dizer que usamos dos astros para mensurar o tempo. No sistema cosmológico criado por Aristóteles, a Terra é representada como uma esfera posicionada em um universo finito no centro de outras esferas (às quais os corpos celestes estariam conectadas) e em movimento constante, legando aos filósofos futuros a ideia de que o tempo está ligado ao movimento dessas esferas. Uma construção cosmológica que irá reverberar por séculos adiante, inspirando discussões sobre a relação entre os astros, o tempo e a divindade, presente no pensamento de filósofos importantes como Tomás de Aquino, Averrois e Nicolau Copérnico.

A partir do século XV, tendo como premissa ainda o sistema aristotélico, outras questões importantes começam a surgir: e se as esferas parassem de se movimentar? Nesse caso, o tempo também pararia? É possível pensar em um universo sem tempo? Para muitos pensadores, o tempo continuaria normalmente sua marcha caso as esferas celestes parassem a delas. Essa via acabou por levar à ideia de um tempo absoluto. Um tempo, segundo Isaac Newton em seu Principia, “verdadeiro e matemático, por si mesmo e da sua própria natureza”, que “flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa e é também chamado de duração”.

Gravura de Henry More feita por David Loggan em 1679.
Gravura de Henry More feita por David Loggan em 1679.

No século XVII, a University of Cambridge foi palco e abrigo de um movimento intelectual que ficou conhecido como Cambridge Platonists, e tinha como premissa unir diversos conhecimentos, como o platonismo renascentista, a cabala judaica e a exegese cristã. Ao lado de Ralph Cudworth, o filósofo inglês Henry More foi figura central do grupo. Atento aos principais temas da sua época, More dedicou-se aos grandes debates filosóficos, principalmente àqueles que giravam em torno da metafísica e do impacto da doutrina de Spinoza e, posteriormente, do cartesianismo. Escreveu ensaios, tratados e poemas em defesa de um sistema que colocava o mundo mental e o mundo físico como frutos de uma atividade espiritual diretamente ligada à onipresença e à duração eterna de Deus.

Com isso em mente, More propôs uma outra teoria sobre um tempo absoluto, rejeitando as ideias de que o tempo seria apenas um produto da mente humana ou o simples resultado do movimento dos astros e das esferas celestes. Na busca por uma resposta sobre a natureza do tempo, More se colocou as seguintes questões (que já rondavam outras mentes do período):

1 – Se Deus destruísse o mundo para depois recriá-lo, nesse meio-tempo entre destruição e reconstrução o tempo continuaria a existir?

2 – Se imaginarmos a remoção de todos os objetos materiais do mundo, é possível imaginar também a remoção de todo o espaço?

Guiado pela necessidade de posicionar Deus novamente no centro das discussões sobre o funcionamento do mundo, principalmente após o dualismo de Renè Descartes (que via o mundo físico como uma máquina e que, para More, poderia, em última instância, levar ao ateísmo), a resposta a que ele chega é que sim: mesmo que todo espaço fosse removido e que o mundo fosse destruído e novamente criado, o tempo (duração) continuaria a existir, já que tempo e espaço estariam relacionados com a duração eterna de Deus e sua onipresença. Dessa forma, tempo e espaço seriam como repositórios infinitos que não precisam de seu conteúdo (a matéria, os entes) para existir, pois derivam diretamente de Deus, que é, a uma só vez, tempo e espaço.

Uma solução sofisticada e ousada para a época, já que ia na direção contrária à ideia de que o tempo não passa de um mero produto criado pelos mecanismos da mente humana, assim como também desafiava a visão de que aquilo que entendemos como tempo é fruto unicamente dos movimentos celestes. Embora as ideias de Henry More acerca do tempo tenham passado batido por muitos estudiosos do tema, aos poucos elas vão sendo redescobertas e desenterradas na obra tardia do filósofo graças ao esforço e à atenção de pesquisadores como Emily Thomas, que se debruça sobre o trabalho de More com entusiasmo e rigor.

Para além de Henry More, outros pensadores de peso se dedicaram a perscrutar a natureza do tempo, entre eles Leibniz, Samuel Clarke, John Locke e Immanuel Kant. A correspondência entre Leibniz e Clarke, por exemplo, nos oferece um relance do intenso debate acerca das origens e propriedades do tempo. Enquanto o primeiro mantinha uma posição a favor de um tempo relativo, dependente das coisas materiais para poder existir, o segundo se colocaria em defesa de um entendimento absolutista do tempo usando como referência os trabalhos e as descobertas de Isaac Newton (que foi possivelmente influenciado pelas ideias de More), chegando à conclusão de que o espaço não é em si uma substância, mas a propriedade de uma substância e, assim como o tempo (ou duração), seria consequência direta da existência de Deus.

Immanuel Kant (1724-1804)

Em sua Crítica da Razão Pura, Kant ataca diretamente a noção de tempo absoluto ao unificar empirismo e idealismo e argumentar que o tempo em si mesmo é produto de nossas percepções, uma forma de pensar vinda de nossas mentes, nada mais do que “a forma do sentido interno, isto é, da intuição de nós mesmos e do nosso estado interior”. Para ele, então, o exercício proposto pelos absolutistas de “desimaginar” o tempo não diz mais sobre o próprio tempo do que sobre nossas mentes. Essa é uma maneira de pensar que irá ditar o tom das discussões posteriores sobre o tempo, abrindo caminhos para novos argumentos e exercendo enorme influência em novas ideias e teorias contra e a favor da concepção de um tempo absoluto.

A partir do surgimento e da exaltação em torno de novas tecnologias e com o avanço proporcionado pelas descobertas científicas do século XIX, o tempo voltaria a ser investigado com rigor ainda maior. Não seria só mais uma questão de falar de suas proposições abstratas, mas também das implicações concretas provocadas pela progressão tecnológica e científica na vida prática e cotidiana.


Leia a segunda parte do ensaio aqui.

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