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Tempo absoluto (II): o jardim do tempo

Frame do filme "Morangos Silvestres", de Ingmar Bergman

Jocê Rodrigues

Leia a primeira parte do ensaio aqui.

Pelo livro de pedra aprendo uma língua fora do tempo,
entre duas mós eu giro feito um grão,
já a entrar no plano bidimensional.
O moinho de vento da vida, da morte,
já moeu a minha espinha. 

Arseny Tarkovsky*

O século XX viu surgir e arrancar verdadeiras revoluções proporcionadas pelos avanços técnicos e científicos. A necessidade de medir o tempo acompanha a humanidade desde os seus primórdios. Para seguir os passos de tal necessidade, técnicas e dispositivos cada vez mais arrojados e complexos foram construídos. Desde os primeiros relógios de sol, passando pelos relógios d’água (clepsidras), das ampulhetas até as revoluções do pêndulo, do cronômetro e do relógio atômico, o homem parece ter sempre corrido com pés ligeiros para tentar alcançar o tempo que lhe escapa das mãos.

Como bem apontou Lewis Mumford, em seu livro Technics and civilization (1934), “o relógio, não a máquina a vapor, foi a máquina-chave para a idade industrial moderna”. Com ele, a humanidade passou a experienciar uma forma de existência que se coloca como guiada pelo correr dos ponteiros, das estações, dos anos. Algo que parece especialmente verdadeiro em relação à vida monástica, que tem períodos bem demarcados por orações e devoções, sempre com horários específicos para as atividades espirituais do cotidiano.

Apesar de toda a sua funcionalidade, o relógio artificial, contraposto aos ciclos naturais de plantio e colheita que norteavam a vida de povos antigos, também já foi visto como um intruso, uma ameaça. Os antigos romanos viam nessa tecnologia um mal que trazia como consequência o afastamento da ordem natural e divina dos acontecimentos, uma interferência, um ruído entre o sagrado e o terreno.

Como é possível notar, tempo e tecnologia estiveram entrelaçados desde os primórdios da sociedade, influenciando-se mutuamente. Quanto mais exata a medição, mais fácil se torna a compartimentação da vida para se medir sua qualidade e também sua quantidade. Em contrapartida, a cada passo novo, a cada nova descoberta tecnológica, mais os sabores e aromas do jardim do tempo parecem se afastar dos sentidos humanos.

No âmbito cultural, para além dos aspectos puramente técnicos e científicos, formas de medir e de classificar o tempo viraram sensação. Um dos exemplos de como as técnicas de mensuração do tempo impactaram a vida cotidiana pode ser encontrado no enorme sucesso das linhas do tempo no século XVIII.

A criação da primeira timeline é creditada ao polímata inglês Joseph Priestley, que, em seu livro A Description of a Chart Biography (1764), incluiu em anexo uma linha do tempo com a data de nascimento e morte de reis, filósofos e artistas. Do fim do século XVIII até meados do século XIX, a população em geral se colocava a pensar sobre o tempo, se não de maneira demorada e profunda, pelo menos de modo lúdico. Nesse período, as timelines estavam por todas as partes, acompanhando desde a construção e queda de impérios até o período de progressão de doenças.

Timeline presente no livro de Priestley

É preciso lembrar que, nesse período, nem tudo era apenas entretenimento quando o assunto era tempo. Havia também uma preocupação genuína com questões mais práticas e concretas, como a unificação do tempo. Afinal, estamos falando de um período em que duas cidades, mesmo vizinhas uma da outra, podiam ter horários diferentes entre si (que podiam variar entre cinco e dez minutos), impactando negativamente a vida dos seus cidadãos – os horários de partida e chegada dos trens ou as rotas marítimas, por exemplo. Um cenário que começou a ser alterado com a invenção de um relógio por John Harrison, que funcionava sem a ajuda de pêndulos, utilizado primeiramente para navegação mas logo incorporado em todo o mundo. Assim, é possível dizer que a invenção de Harrison foi responsável por coordenar e globalizar o tempo.

Na entrada do século XX, quando Albert Einstein propôs a sua teoria da relatividade, indo em uma direção inovadora em relação àquelas exploradas por More, Kant, Newton e seus asseclas, novas áreas no jardim do tempo foram construídas, reformadas ou descobertas, permitindo que novos aromas ganhassem os ares. Foi como se ele houvesse construído um canteiro inteiramente novo, feito para receber plantas recém-descobertas ou criadas, com flores exóticas e frutos de gosto até então desconhecidos, de aparências e anatomias complexas. Um convite para que novos jardineiros se juntassem à labuta de plantar novas sementes em solo fértil e renovado.

Não demorou para que outras mentes se juntassem ao trabalho, contribuindo com novas espécimes cuidadosamente cultivadas no campo selvagem do intelecto para serem domesticadas em seguida.

O astrofísico britânico Arthur Eddington, responsável por apresentar a teoria da relatividade nas terras da rainha, propôs uma ideia sobre o tempo que levava em consideração as descobertas de Einstein mas que contrariava a ideia vigente de que o tempo não teria uma direção privilegiada (o avançar do tempo nem sempre significa que tudo sempre irá melhorar ou evoluir a longo prazo). Para Eddington, o mundo seguia em direção à evolução e ao progresso mas sem as implicações puramente positivistas do século anterior, baseadas em uma crença absoluta no conhecimento científico. Para ele, ao contrário, a vivência e a percepção do tempo estariam ligadas a uma essência quase mística, muito além do que os aparelhos científicos podem ver e medir.

Arthur Eddington (à esquerda) foi um dos grandes responsáveis por popularizar as ideias de Albert Einstein (à direita) na Inglaterra

Junto a Arthur Eddington, outras mentes se mostravam igualmente dedicadas e interessadas nos estudos do fenômeno do tempo em relação aos avanços tecnológicos e científicos. Nomes como Ellis McTaggart, C. D. Broad, Samuel Alexander e, mais notoriamente, Henri Bergson, que, assim como Eddington, trouxe nova luz à experiência interna do tempo, dessa vez valorizando a memória e a intuição frente ao discurso puramente científico que então imperava.

Mesmo amparado nas mais recentes descobertas e avanços científicos daquela época, Bergson vai adiante. Para ele, como demonstram suas aulas proferidas no Collège de France entre 1901 e 1902, “todas as expressões usadas para falarmos de tempo são metáforas retiradas da língua do espaço. Mas se trata também de representação interior”. Todo ser vive e atua no tempo, que se expressa no espaço. “Na vida interior, não se pode separar um ato, um estado, da duração em que ele se realiza”. Assim, de acordo com o filósofo francês, mesmo que a experiência do tempo interior não seja indiferente ao tempo das coisas, ela apresenta particularidades que se mostram mais verdadeiras do que o tempo como entendido pelos físicos.

Seguindo os passos de Bergson, de quem foi aluno e depois sucessor como presidente do Collège de France, Louis Lavelle volta o seu olhar para o interior do ser, investigando seus aspectos mais negligenciados pela rigidez do cientificismo imperante. Segundo ele, “o tempo é-nos necessário para nos permitir constituir a nossa essência intemporal”. Uma abordagem que aproxima ser e tempo de modo profundo, sem se deixar corromper pela tecnicidade, ainda que ela seja considerada em certo nível. Lavelle se preocupa em postular o ser como uno e intemporal, mas que necessita do tempo (igualmente responsável pelas misérias humanas), do qual depende a vida espiritual e a individualidade: “o tempo é o instrumento sem o qual a interioridade mesma do ser, inseparável da existência das consciências individuais, quer dizer da distinção entre o ato e o estado, não se poderia realizar”.

Esforços como os de Eddington, Bergson e Lavelle sobre o tempo, empreendidos em uma época tão conturbada e repleta de reviravoltas e descobertas que transformaram a História, servem para ilustrar como mesmo em meio às enormes e importantes mudanças trazidas pela tecnologia e por novas maneiras de pensar a realidade, apartadas de uma aposta de viés mais transcendente, a defesa de um tempo diferente daquele que se esvai no tiquetaquear dos relógios aparece como uma barricada necessária para impedir o completo soterramento do jardim do tempo em defesa da sobrevivência das diferentes espécies nela contidas, como as ideias de More e Newton.

O que eles não podiam imaginar é que, em um período relativamente curto, a ascensão do pensamento fundamentado na tecnicidade iria entrar em ciclos cada vez mais acelerados, alterando irremediavelmente a percepção não apenas do tempo, mas da realidade como um todo.


* Tradução a partir do inglês em Philip Metres e Dimitri Psurtsev, I burned at the Feast: Selected Poems of Arseny Tarkovsky.

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