A arte no divã (II): bastidores da criação da psicanálise. Parte 2 – Um herói oculto

Retrato de Sigmund Freud por Marcel Sternberger (1938)

Jocê Rodrigues

O connoisseur

Depois da Idade Média, quando o eixo da existência se deslocou de Deus para o homem, a autoria, e por consequência a autenticidade, passaram a ser elementos importantes para o discurso da arte. A partir daí, passou ser primordial saber de onde e de que mãos vinham um trabalho artístico (Conrado, 2013, p. 38).

Hoje, o fator autenticidade pode ser a diferença entre centenas e milhões em dinheiro, como bem elucida Raymonde Moulin: “toda troca de atribuição se converte em um acontecimento monetário e, eventualmente, pode ser o ponto de partida para uma ação judicial” (Moulin, 2012, p. 21). Por isso, o desenvolvimento de métodos que possam garantir a procedência de uma obra (seja uma tela, desenho, escultura e assim por diante) continua a ser construído até hoje, tijolo a tijolo.

Graças às novas circunstâncias e possibilidades que a tecnologia proporciona, autenticar uma obra muitas vezes faz lembrar um episódio de CSI. A diferença está no fato de que o objetivo não é descobrir o assassino, mas sim o autor. Reflectografia com infravermelho, luz rasante, radiografia, mapas bidimensionais e raio X, tudo isso e mais um pouco faz parte de qualquer trabalho sério de peritagem (Craddock, 2009). Mas nem sempre foi assim.

Antes, era comum que as avaliações fossem feitas por um connoisseur que gozasse de grande respeito. Suas ferramentas de investigação se limitavam aos seus conhecimentos históricos e subjetivos (Gibson-Wood, 1998, p. 42). No entanto, com o avanço das técnicas de falsificação, apenas o olho nu há muito passou a não ser mais capaz de responder sozinho pela autenticação de obras. É preciso agora um esforço em conjunto de diversas áreas na direção de uma expertise multidisciplinar que faz com que a responsabilidade não recaia mais sobre a figura de uma única pessoa.

Mais do que uma linha temporal, a divisão que fazemos entre nova e antiga escola de perícia em avaliação de obras de arte se baseia muito mais no método e na mentalidade dominante durante as análises. No século XVII se usava a palavra conoscitore (Gibson-Wood, 1998, p. 11) para falar do sujeito que sabia tudo ou quase tudo de determinado assunto, mas que não necessariamente pertencia ao mundo acadêmico.

No século XVII, o médico italiano Giulio Mancini foi um dos primeiros a escrever um livro dedicado inteiramente ao problema de observar e identificar cópias e originais em obras de arte (Sutton, 2004, p. 31). Considerazioni sulla pittura [Considerações sobre a pintura], livro que circulou largamente na sociedade italiana em forma de manuscrito depois de 1621 mas que foi publicado integralmente somente nos meados do século XX, dava dicas, ou melhor, mandamentos de como comprar, pendurar e preservar pinturas. Também ensinava a distinguir obras originais de cópias e falsificações.

Frontispício do livro de Giulio Mancini, considerado o pai da connoisseurship

Abraham Bosse, importante artista francês, também do século XVII, defendia a opinião de que apenas outros artistas tinham o conhecimento necessário para julgar questões de autenticidade e autoria (Sutton, 2004, p. 31). Naquela época, era comum que outros artistas fossem chamados para resolver disputas sobre o assunto. Com seu conhecimento, lábia e força de vontade, Mancini havia chegado para dinamitar o paradigma vigente, transformando-se em um verdadeiro estranho no ninho.

O historiador italiano Carlo Ginzburg se dedicou a estudar a fundo as fontes e mudanças ocorridas no paradigma indiciário com o passar dos séculos. Depois de muita pesquisa e muito questionamento, ele achou justo dar a Mancini o título de pai da connoisseurship (Ginzburg, 1989, p. 159).

A figura do connoisseur fora do círculo dos artistas, aquele que tecnicamente não pinta mas opina como se pintasse, só terá surgimento efetivo a partir do século XVIII, com nomes como Jonathan Richardson e Francesco Milizia.

Caminhando a passos lentos na direção da construção de um saber que fosse reconhecido e crível, a figura do connoisseur era constantemente ridicularizada em jornais, contos e desenhos, cercado de chacota e de piadinhas por todos os lados. Eram descritos como pomposos, pretensiosos e fingidos, a sustentar conhecimentos que tiravam de suas cabeças como um mágico tira um coelho da cartola (Sutton, 2004, p. 31). Para mudar essa condição, seria preciso bem mais que um comentário florido e um olhar estático. E é aqui que entra outro obscuro herói de Sigmund Freud.

Um novo método

Entre 1874 e 1876, o médico e historiador de arte italiano Giovanni Morelli publicou uma série de artigos, sob o pseudônimo de Ivan Lermolieff, na revista alemã Zeitschrift für bildende Kunst [Jornal de belas-artes], sobre uma técnica inovadora de identificar e atribuir autoria a obras não assinadas de grandes mestres da pintura. Tal técnica se baseava em prestar atenção redobrada a certas minúcias que eram geralmente ignoradas pelos experts do período, como aponta Ginzburg:

Ora, Morelli propusera-se buscar, no interior de um sistema de signos culturalmente condicionados como o pictórico, os signos que tinham a involuntariedade dos sintomas (e da maior parte dos indícios). Não só: nesses signos involuntários […] Morelli reconhecia o sinal mais certo da individualidade do artista (Ginzburg, 1989, p. 171).

Segundo o método moreliano, o modo como determinado pintor executa partes como unhas, dedos, orelhas e nariz diz muito sobre a particularidade da sua produção. Sendo assim, pela correta análise desses simples elementos, seria possível identificar com maior acuidade um trabalho de Michelangelo ou de Botticelli (Ginzburg, 1989, p. 144).

O que Morelli propunha era um duro golpe contra a pura subjetividade do connoisseur até então aplicada nesse tipo de análise. Em sua época, Morelli já afirmava que os museus estavam cheios de obras com autorias mal atribuídas e causou rebuliço ao reavaliar atribuições de obras de grandes museus (Sutton, 2004, p. 34). Hoje, sabemos que o problema não se estende apenas à questão da autoria, mas também à originalidade. Em 2015, Colette Loll, fundadora e diretora da Art Fraud Insights, afirmou que cerca de 40% das obras vendidas no mundo são na verdade falsificações (Abril, 2016). Cenário triste, mas que toma novas direções graças à interação entre arte, direito e ciência, iniciada pelos esforços de Morelli.

O método moreliano foi a primeira tentativa real de dar seriedade científica à prática da avaliação de obras de arte, antes feita apenas com critérios não técnicos. Uma tentativa de dar objetividade para uma prática dominada pela subjetividade do indivíduo avaliador. Para ele, arte e ciência eram patrimônios de toda a humanidade e não tinham nacionalidade (Morelli, 1892, p. 24).

Retrato de Giovanni Morelli por Franz von Lenbach (1886)

O papel do connoisseur ainda hoje é essencial para uma perícia, mas agora precisa estar aliado a outras práticas e saberes, como os exames técnicos e científicos, por meio dos quais se consegue contar a história de determinada obra e situá-la corretamente em seu devido tempo e contexto e com a devida autoria reconhecida.

Sem o primeiro passo dado por Morelli a caminho de uma análise mais crítica e criteriosa, é provável que o mercado de arte ainda estivesse à mercê dos caprichos e desmandos da figura quase ditadora do connoisseur e que ainda mais erros continuariam a ser cometidos nos processos de avaliação e atribuição de obras de arte.

O (des)encontro

Infelizmente, Freud nunca se encontrou pessoalmente com Morelli. Com certeza os dois teriam muito o que discutir e poderiam até colaborar um com o outro (pelo menos até o doutor Morelli pisar em algum dos muitos calos do doutor Freud, coisa que a história prova ter sido muito fácil de acontecer).

A leitura posterior dos escritos do médico italiano sobre pintura foi suficiente para deixar marcas profundas no pai da psicanálise. Essa leitura provavelmente se deu em duas ocasiões distintas (Ginzburg, 1989, p. 148). A primeira entre 1895 e 1896, portanto já depois do falecimento de Morelli, mas em uma edição que ainda contava com a assinatura de Ivan Lermolieff. A segunda, alguns anos depois, em 1889, quando Freud por acaso descobriu que a verdadeira identidade do obscuro crítico de arte russo Ivan Lermolieff era, na verdade, o médico e político italiano (Ginzburg, 1989, p. 149).

De acordo com a trajetória intelectual de Freud, é possível depreender uma mudança do seu ponto de vista em relação às obras de arte após conhecer o trabalho inovador de Morelli. Em carta ao amigo Wilhelm Fliess, no ano de 1900, Freud reclama do tédio que o domina naquele período e faz rápida referência a alguns dos seus passatempos, entre eles a história da arte e pré-história (Masson, 1986, p. 416).

A influência dos textos de Morelli pode ser claramente notada nos textos que Freud escreveu voltados à arte – principalmente em “O Moisés de Michelangelo” (1914), no qual faz questão de descrever o primeiro contato com a obra do médico italiano:

Muito antes de iniciar qualquer atividade psicanalítica, soube que um crítico de arte russo, Ivan Lermolieff, cujos primeiros trabalhos em alemão datam de 1874 a 1876, tinha provocado uma revolução nas galerias de pintura da Europa, revisando a atribuição de muitos quadros a diversos pintores, ajudando a distinguir com segurança as cópias dos originais, e estabelecendo, com as obras assim libertadas de sua classificação anterior, novas individualidades artísticas. Chegou a êstes resultados prescindindo da impressão do conjunto e acentuando a importância característica dos detalhes secundários, de minúcias tais como a estrutura das unhas dos dedos, o pavilhão da orelha, o nimbo das figuras de santos e outros elementos que o copista descuida de imitar e que todo artista executa numa forma que lhe é característica. Despertou-me ainda maior interêsse verificar que sob o pseudônimo russo ocultava-se um médico italiano, chamado Morelli, morto em 1981, quando ocupava uma cadeira no Senado da sua pátria. Na minha opinião, seu procedimento mostra grandes afinidades com a psicanálise; também a psicanálise costuma deduzir de traços pouco estimados ou inobservados, do resíduo ― o “refuse ― da observação, coisas secretas ou encobertas (Freud, 1958, p. 158).

Fica, então, evidente que Freud até mesmo acreditava que o método criado por Morelli era parente da psicanálise, já que também partia da premissa de que seria necessário investigar pontos insuspeitos para se chegar a uma causa ou a um “culpado”. Tanto no método moreliano quanto na análise psicanalítica, cada pequeno detalhe pode ser considerado como uma chave para acessar os segredos mais íntimos.

É possível supor que, assim como Schliemann, Morelli também tenha sido verdadeiramente uma espécie de herói para Freud, como ele mesmo fez questão de demonstrar em alguns de seus escritos, mas um herói que permanece oculto aos olhos do grande público e que ainda permanece sem o devido reconhecimento e divulgação.


Referências

ABRIL, Ana (2016). Verdade ou mentira?  Select, São Paulo, 10.10.2016. Disponível em <https://www.select.art.br/verdade-ou-mentira/>. Acessado em 25.04.2020.

CONRADO, Marcelo (2013). A arte nas armadilhas dos direitos autorais: uma leitura dos conceitos de autoria, obra e originalidade.  321 f. Tese (Doutorado em Direito). Setor de Ciências Jurídicas da UFPR – Faculdade de Direito. Universidade Federal do Paraná, Curitiba.

CRADDOCK, Paul (2009). Scientific Investigation of Copies, Fakes and Forgeries. Oxford: Butterworth-Heinemann.

FREUD, Sigmund (1958). “O Moisés de Michelangelo”. In Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A.

GIBSON-WOOD, Carol (1988). Studies in the Theory of Connoisseurship from Vasari to Morelli. New York: Taylor & Francis.

GINZBURG, Carlo (1989). Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras.

MASSON, Jeffrey Moussaieff (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess ― 1887-1904. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago.

MORELLI, Giovanni (1892). Critical Studies of Italian Painters: critical studies of their works. Londres: John Murray.

MOULIN, Raymond (2012). El Mercado del Arte. Buenos Aires: la marca editora.

SUTTON, Peter (2004). “Rembrandt and a Brief History of Connoisseurship”. In SPENCER, Donald (org.) The Expert versus the Object: Judging Fakes and False Attributions in the Visual Arts. New York: Oxford University Press.

Compartilhe:

100

Uma comemoração!

Poemas de Rabo de pipa

Seleção de poemas do novo livro de Maitê Alegretti, Rabo de pipa (Laranja Original, 2023)

Três poemas de amor

“Porque amar é viver em mentira um desejo verdadeiro”, três poemas de Pedro Rocha Souza.

Translate