A arte no divã (I): bastidores da criação da psicanálise. Parte 1 – O gosto tardio de Freud

Freud

Jocê Rodrigues

Influências duradouras

Muito se fala sobre a força que a psicanálise exerceu sobre diversas áreas do conhecimento humano, incluindo a arte, a antropologia e, em especial, a arqueologia, que era ciência particularmente apreciada por Sigmund Freud (Loewenberg, 1996, p. 36). De fato, o pai da psicanálise considerava que o trabalho do psicanalista era igual ao de um arqueólogo, pois ambos escavam o mais fundo que podem para trazer à superfície grandes tesouros que de outro modo permaneceriam enterrados.

Ainda na juventude, Freud era leitor ávido de tudo o que fosse relacionado às descobertas arqueológicas feitas em sua época, principalmente nas localidades de Cairo e de Atenas (Gamwell, 1989b, p. 22). O trabalho do arqueólogo Heinrich Schliemann, que tinha alcançado fama e fortuna ao descobrir os restos do que deveria ser a cidade de Tróia, era de grande interesse para ele (em sua coleção pessoal, Freud tinha objetos do período micênico, o mesmo tipo encontrado nas escavações feitas por Schiliemann). Foi por meio de Ilios, livro de Schliemann sobre a escavação da cidade imortalizada por Homero, que o médico austríaco começou uma vasta e variada coleção de livros sobre o tema (Gamwell, 1989b, p. 22).

Em seu trabalho teórico, é comum encontrar referências à arqueologia, como no trecho a seguir, retirado de “Estudos Sobre a Histeria”:

A princípio, portanto, pude dispensar a hipnose, porém com a ressalva de que poderia fazer uso dela posteriormente, se no curso de sua confissão surgisse algum material cuja elucidação não estivesse ao alcance de sua memória. Ocorreu assim que nesta, que foi a primeira análise integral de uma histeria empreendida por mim, cheguei a um processo que mais tarde transformei num método regular e empreguei deliberadamente. Esse processo consistia em remover o material psíquico patogênico camada por camada e gostávamos de compará-lo à técnica de escavar uma cidade soterrada (Freud, 1996b p. 105).

Bastante interessado nas descobertas arqueológicas que ganhavam os jornais e revistas, Freud bebia da fonte da arqueologia para enriquecer o seu trabalho teórico. Totem e tabu (Freud, 1957, p. 457), espécie de estudo antropológico pioneiro publicado em 1913, traz fortes referências ao trabalho do arqueólogo francês Salomon Reinach e de seu famoso artigo “L’art et la Magie” [A arte e a magia] (Reinach, 1905, p. 125).

Depois de investigar a fundo as imagens milenares pintadas em cavernas pelos nossos ancestrais, Reinach chegou à conclusão de que aquelas imagens tinham intuitos mágicos e não puramente estéticos. De acordo com ele, elas eram parte de ritos simpatéticos, que visavam ao sucesso durante a caçada e que também estavam ligadas a outras atividades do cotidiano de nossos antepassados caçadores e coletores. Uma visão que é hoje amplamente aceita e com a qual Freud concordava.

André Leroi-Gourhan em seu escritório na Faculdade de Letras da Universidade de Lyon, 1951. Foto de Hélène Balfet.

Quando Freud morreu, em 1939, a psicanálise encontrou uma via de mão dupla e passou a não apenas a ser indiretamente influenciada pela arqueologia, mas também a influenciar as interpretações dos achados arqueológicos. Nas décadas de 1950 e 1960, por exemplo, o arqueólogo e paleontólogo francês André Leroi-Gourhan desenvolveu um método de análise com base estruturalista que trazia muitos dos aspectos teóricos freudianos.

Gourhan resolveu investigar as artes do alto paleolítico em cavernas europeias e analisou quais eram os animais mais frequentemente retratados pelos homens pré-históricos e o motivo de serem os mais retratados, sempre baseado em uma teoria interpretativa que em muito se aproximava à teoria dos símbolos freudiana, reconhecidamente carregada de valores ligados à sexualidade (Leroi-Gourhan, 1958, pp. 515-528).

Baseado nesse esquema, Leroi-Gourhan separou e definiu alguns grupos desses animais de acordo com o sexo de cada um e catalogou os símbolos que estariam ligados às qualidades masculinas e femininas. Hoje, essa dicotomia já não encontra o mesmo apoio entre os acadêmicos, mas representou, naquela época, um grande avanço no modo de se estudar a arte e a mentalidade pré-histórica.

Freud colecionador

No início da sua vida intelectual, o jovem Freud não se sentia de maneira alguma atraído pelo mundo da arte, como ele mesmo reforçou em correspondência remetida ao amigo de infância Emil Fluss, num trecho em que comenta brevemente sobre sua visita à Exposição Mundial de Viena de 1873 (um dos eventos de maior importância para a arte até os dias atuais): “eu visitei a exposição por duas vezes. É interessante, mas não me surpreendeu. Muitas coisas que pareciam agradar às outras pessoas não me atraíam” (Freud, E. L., 1960, p. 4).

Antes desinteressado pelo mundo da arte, após se deparar com os escritos de um misterioso connoisseur russo, Freud acabou por se tornar um grande colecionador de artefatos. Uma coleção composta principalmente por miniaturas egípcias, gregas, chinesas e romanas (Gay, 1989, p. 16). As pequenas estatuetas eram suas companheiras de vigília enquanto costurava as teorias que iriam mudar a forma de o “ocidente” enxergar e interpretar o inconsciente e o mundo.

Na época em que começou a sua coleção, por volta de 1896, o mercado de antiguidades quase não era regulado e podia-se obter ótimas peças retiradas diretamente de sítios arqueológicos por uma verdadeira pechincha. Como todo bom colecionador, Freud também se preocupava com a autenticidade das obras que adquiria e prontamente se livrava das falsificações que vez ou outra surgiam (Gamwell, 1989b, p. 23).

Para garantir a autenticidade de seus artefatos, ele costumava consultar alguns especialistas, incluindo pessoas que trabalhavam em museus. Por conta dessa preocupação, apenas algumas falsificações restaram na coleção original, mas em número muito pequeno se comparado ao volume total de mais de duas mil peças (Gamwell, 1989b, p. 23).

Fotografia de parte da coleção de estatuetas de Sigmund Freud

É fato conhecido que, quando teve que fugir de Viena em 1938, quando a cidade estava sob ocupação nazista, ele precisou abandonar praticamente tudo. Entretanto, fez questão de levar consigo uma cópia de bronze de uma estátua do século II da deusa grega Atena (curiosamente, deusa da sabedoria e da batalha) (Gamwell, 1989a, p. 11). O restante da sua coleção só pôde sobreviver ao exílio graças à intervenção da princesa Marie Bonaparte, que pagou uma taxa para que os oficiais nazistas liberassem os bens de Freud que ficaram em Viena (Gay, 1989, p. 11).

Sob o viés psicanalítico, alguns autores atribuem esse impulso colecionista à morte do pai de Sigmund, que faleceu apenas alguns meses antes de ele começar o seu acervo pessoal. Ao avaliar a situação sob um viés lacaniano, Juliet Flower MacCannell vê no colecionismo de Freud um hábito que teria sido adquirido para uma ressignificação do desejo e para a criação de um link com a “função paternal” (MacCannell, 1996, p. 36). Já Stephen Barker enxerga as estatuetas como figuras sublimadas do pai recentemente falecido (Barker, 1996, p. 84). Seja como for, é fato que, após tal incidente familiar, as aquisições tornaram-se cada vez mais frequentes.

Antes da primeira aquisição, Freud já comprava impressões de algumas pinturas famosas a custos muito mais baixos, devido à sua baixa renda de estudante. É provável que, em 1885, quando visitou Paris pela primeira vez e conheceu a casa de Jean Martin Charcot, seu mentor (Charcot nutria um interesse especial pela arte e, juntamente com Paul Richer, escreveu dois livros em que analisam representações demoníacas em obras de arte, com o intuito de identificar a histeria como um mal muito anterior ao século XIX), o jovem médico tenha se impressionado com a coleção de antiguidades chinesas e indianas do mestre e com as visitas ao Louvre que acabou por fazer.

Entretanto, ainda hoje pouco ou quase nada se fala da influência que a arte pode ter exercido sobre a psicanálise, principalmente na sua formação.


Referências

BARKER, Stephen (1996). “Father Figures in Freud’s Autoaesthetics”. In Excavations and Their Objects. New York: State University of New York Press.

FREUD, Ernst Ludwig (1960). The Letters of Sigmund Freud. New York: Basic Books (tradução minha).

FREUD, Sigmund (1996a). “Estudos Sobre a Histeria”. In Obras completas psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 02. Rio de Janeiro: Imago.

FREUD, Sigmund (1996b). “Fragmento da Análise de Uma Histeria”. In Obras completas psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, vol. 12. Rio de Janeiro: Imago.

FREUD, Sigmund (1958). “Totem e Tabu”. In Obras Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Delta S.A.

GAMWELL, Lynn (1989a). “Preface”. In GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc.

GAMWELL, Lynn (1989b). “The Origins of Freud’s Antiquities Collection”. In GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc.

GAY, Peter (1989). “Introduction”. In:  GAMWELL, Lynn; WELLS, Richard (org.) Sigmund Freud and Art. New York: Harry N. Abrams Inc.

LEROI-GOURHAN, André (1958). “Répartition et groupement des animaux dans l’art pariétal paléolithique”. Bulletin de la Société préhistorique de France, Paris, vol. 55, nº 9.

LOEWENBERG, Peter (1996). “The Pagan Freud”. In BARKER, Stephen (org.) Excavations and Their Objects. New York: State University of New York Press.

MACCANNELL, Juliet Flower (1996). “Signs of the Fathers: Freud’s Collection of Antiquities”. In BARKER, Stephen (org.). Excavations and Their Objects. New York: State University of New York Press. REINACH, Salomon (1905). Cults, Mythes et Religions. Paris: Ernest Leroux, Éditeur.

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