Walter Benjamin
Tradução e notas: Gustavo de Carvalho
O livro é caracterizado por uma contradição fundamental em que predomina, por um lado, a tese do autor, e, por outro, seu posicionamento. Com isso, o posicionamento foi expresso de tal forma que, mais ou menos, descredita a tese, silenciando-se diante das objeções que se erguem contra ela. Essa tese é: Kafka encontrava-se numa jornada de santificação (p. 65).1 A atitude do biógrafo, por sua vez, é a de uma total complacência. A falta de distanciamento é sua propriedade mais marcante.
O fato de tal posicionamento ter se coadunado com essa forma de enxergar seu tema mina, de antemão, a autoridade do livro. Como isso acontece? Podemos ilustrá-lo, por exemplo, pela expressão com a qual “o nosso Franz” (p. 127) é apresentado ao leitor em uma fotografia. A intimidade com os santos deixa uma marca clara de história da religião, a saber, do pietismo. O posicionamento de Brod enquanto biógrafo é um posicionamento pietista de intimidade ostensiva. Em outras palavras: é o mais impiedoso que se possa imaginar.
Tal impureza na economia da obra pode muito bem se dever aos hábitos que o autor provavelmente adquiriu em sua atividade profissional.2 Em todo caso, é quase impossível não reparar os rastros de desleixo jornalístico, e isso até mesmo na formulação de sua tese: “A categoria da santidade […] é, de certa forma, a única categoria correta sob a qual a vida e a obra de Kafka podem ser contempladas” (p. 65). Será necessário observarmos que a santidade é um ordenamento reservado à vida, o qual não se aplica a obras em qualquer circunstância? E será preciso mencionar, ainda, que o predicado de santidade, ao ser aplicado fora de uma constituição religiosa tradicionalmente fundamentada, não passa de um Noreio beletrístico vazio?
Falta a Brod todo senso de rigor pragmático, algo imprescindível a uma biografia inaugural de Kafka. “De hotéis de luxo não sabíamos nada, e mesmo assim, eram tranquilamente divertidíssimos” (p. 128). Em função de uma evidente falta de ritmo, de senso de limite e distanciamento, os padrões do jornalismo de folhetim permeiam todo um texto que, em função de seu tema, deveria ter sido resguardado de tal e tal postura. Isso é menos uma justificativa e mais um atestado de como qualquer concepção original sobre a vida de Kafka passou longe de Brod. Essa incapacidade de fazer jus ao seu objeto torna-se especialmente chocante quando Brod fala do famoso ordenamento testamentário, segundo o qual Kafka lhe imputa a destruição de seu espólio. Esse teria sido o momento apropriado para desenvolver aspectos fundamentais da existência de Kafka. (Claramente, ele não estava disposto a assumir a responsabilidade pela obra de Kafka diante da posteridade, de cuja grandeza estava bem ciente.)
Esse tópico foi discutido repetidamente desde a morte de Kafka; seria natural deter-se nele uma vez mais. Porém, para o biógrafo isso teria significado ter de contemplar a si mesmo. Kafka teve de confiar sua obra a alguém que, de fato, não estaria disposto a realizar seu último pedido.3 Aqui, nem o executor testamentário nem o biógrafo teriam sofrido quaisquer danos nas dadas circunstâncias. Isso, porém, requer uma capacidade de avaliar as tensões que permeavam a vida de Kafka.
Que tal capacidade falta a Brod é algo que se confirma em trechos nos quais ele se põe a explicar a obra de Kafka ou seu estilo de escrita. A esse respeito, ele se demora em abordagens diletantes. A excentricidade da essência de Kafka e da sua escrita certamente não é, como expressa Brod, “aparente”; tampouco se pode abordar as representações de Kafka sob o pressuposto de que elas são “nada além de verdadeiras” (p. 68). Esse tipo de digressão acerca da obra de Kafka tende a tornar problemática a interpretação que Brod teve sobre sua visão de mundo desde o início. Quando Brod afirma que Kafka teria seguido mais ou menos a linha de Buber4 (p. 241), isso significa o mesmo que capturar a borboleta dentro da rede, através da qual ela projeta sua sombra ao bater as asas. A “interpretação judaica-realista, digamos” (p. 229) de O castelo subtrai os traços repulsivos e horríveis com os quais a esfera superior de Kafka é equipada em favor de uma interpretação edificante que teria de ser suspeita, sobretudo para um sionista.5
Ocasionalmente, essa conveniência, tão inadequada ao seu tema, denuncia-se até mesmo a um leitor pouco atento. Coube a Brod ilustrar a complexa problemática do símbolo e da alegoria, algo que lhe parece importante para a interpretação de Kafka, mediante o exemplo do “inabalável soldadinho de chumbo”, o qual apresenta um símbolo plenamente válido, pois não apenas “expressa muito daquilo que se perde no infinito”, como também se aproxima “de nós com seu destino de soldadinho de chumbo em todos seus pormenores” (p. 237). Queríamos saber como a Estrela de Davi pareceria à luz de tal teoria dos símbolos.
A percepção da fraqueza de sua própria interpretação deixa Brod sensível diante das interpretações alheias. O fato de ele, num só gesto, excluir o interesse nem tão disparatado dos surrealistas em Kafka, assim como as interpretações dos contos, em parte significantes, de Werner Kraft, não fica muito bem. Além disso, vemos também Brod se esforçar para desvalorizar a futura literatura sobre Kafka. “E assim poderíamos explicar e explicar (como ainda muito se fará) sem, necessariamente, encontrarmos um fim” (p. 69). A ênfase colocada entre parênteses fere os ouvidos. O fato de as “muitas imperfeições e sofrimentos particulares e acidentais” de Kafka contribuírem mais para a compreensão de sua obra do que “construções teológicas” (p. 213) não é algo que alguém goste de ouvir de uma pessoa suficientemente determinada a usar sua própria representação do amigo em prol de um conceito de santidade vindoura. O mesmo gesto desdenhoso vale para tudo aquilo que diz respeito a Kafka e parece perturbador a Brod: isso vale para a psicanálise, assim como para a teologia dialética. Isso lhe permite confrontar o estilo da escrita de Kafka com a “exatidão fingida” balzaquiana (p. 69) – (embora aqui não tenha outra coisa em mente senão aquelas fanfarronices evidentes que não podem ser separadas da obra de Balzac e de sua grandeza).
Nada disso provém do espírito do próprio Kafka. Brod muitas vezes deixa passar despercebida sua grandeza, além da serenidade que lhe era característica. Não há ser humano, diz Joseph de Maistre,6 incapaz de ser conquistado com uma opinião comedida. O livro de Brod, porém, não dá conta de fazê-lo. Ele se excede tanto na forma como homenageia Kafka quanto na familiaridade com que o trata. Tanto uma quanto outra certamente foi precedida pelo romance Zauberreich der Liebe [O reino encantado do amor],7 para o qual amizade com Kafka serviu de molde. O fato de tirar citações dele não é de forma alguma o menor dos erros da biografia em questão. O autor admite lhe surpreender nesse romance que leitores não familiarizados puderam notar certa violação da piedade para com o falecido. “Assim como tudo é alvo de má compreensão, também é o presente caso […]. Ninguém se lembrou que Platão ao longo de toda a sua vida, de modo semelhante, embora bem mais abrangente, confrontou seu tutor e amigo Sócrates tal qual se faz com um companheiro vivo e atuante, fazendo dele o herói de quase todos os diálogos que escreveu após sua morte” (p. 82).
É pouco provável que o Kafka de Brod poderá ser um dia mencionado entre as grandes biografias de poetas, ao menos na linha do Hölderlin de Schwab,8 do Büchner de Franzos9 e do Keller de Bächtold.10 Ela é, antes, um tanto mais memorável como testemunho de uma amizade que não deveria ser um dos menores mistérios da vida de Kafka.
1 Optamos por manter o número das páginas citadas por Benjamin a partir da edição original da biografia pela editora Heinrich Mercy Sohn, de 1937. [N. do E.]
2 Nessa época Brod era jornalista do Prager Tagblatt [Folha Diária de Praga], trabalhando como redator do caderno de cultura.
3 Tal argumentação já aparecera na crítica de Walter Benjamin a Ehm Welk, intitulada “A moral cavalheiresca”.
4 Martin Buber (1878-1965) foi um filósofo e escritor austroisraelita de origem judia. Dedicou-se ao estudo da religião judaica e sua tradição literária mística, além da causa sionista.
5 Leia-se: “para um sionista [como Brod]”. O sionismo de Theodor Herzl (1860-1904) até a geração de Brod era, de forma geral, socialista e ateu, muito diferente da renovação do misticismo judaico de algumas alas do governo atual de Israel. Apesar das afinidades de Benjamin com as origens da causa, ele e Brod estavam em lados diferentes da discussão acerca da migração para a Palestina, e como isso afetava a concepção de socialismo que defendiam: Brod, em artigo de 1917 chamado Der Zionismus und der Sozialismus [O Sionismo e o Socialismo. Viena, Berlim: R. Löwit Verlag, 1920, p. 11], nega ao marxismo a capacidade de prover um plano objetivo para o povo judeu na fase mais funesta de sua perseguição. A “cientificidade do marxismo é seu ingrediente alemão, não judaico” (ibid., p. 13). O gesto expressa uma cisão generalizada na esquerda judaica europeia, após a qual Benjamin e Brod se encontram em frontes diferentes: Max Brod, Felix Weltsch, Gershom Scholem e tantos outros amigos de Kafka se voltarão a um socialismo não marxista, focado em teorias de autores hoje pouco expressivos como Pohlmann-Hohenaspe e Popper-Lynkeus.
6 Joseph Marie, Comte de Maistre (1753-1821), foi um estadista e filósofo francês, defensor do Ancien Régime e contrarrevolucionário.
7 Referência ao romance de Max Brod publicado em 1928, em Berlim.
8 Christoph Theodor Schwab (1821-1883), editor e biógrafo do poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843), pertencente ora ao Romantismo, ora ao Classicismo, e conhecido com um dos autores mais clássicos de toda a poesia lírica de língua alemã. Sua obra mais famosa, além de toda sua obra lírica, é o romance Hipérion ou o eremita na Grécia de 1797-1799. Hölderlin era o poeta romântico favorito de Walter Benjamin.
9 Karl Emil Franzos (1848-1904), editor e biógrafo do autor alemão Georg Büchner (1813-1837), autor clássico, e de morte precoce, da época conhecida como Vormärz, ou seja, a época denominada de “Pré-março”, em referência à tentativa de Revolução de março de 1848, tendo seu início por volta de 1830. Büchner, autor de tendência revolucionária, publicou um drama em 1835 chamado Dantons Tod, através do qual ele tematiza a Revolução Francesa.
10 Jacob Bächtold (1848- 1897), editor e biógrafo do autor suíço germanófono Gottfried Keller (1819-1890), o qual é tido como um dos autores centrais do realismo de língua alemã. A obra mais conhecida de Keller é o romance de formação Der grüne Heinrich [Henrique, o Verde], publicado em 1854-1855.