Os inquilinos

Werner Haberkorn, "Vista parcial do viaduto Martinho Prado e a avenida 9 de julho"
Museu Paulista da USP

Luiz Eduardo de Carvalho

Prólogo

Às vezes, os fatos são tão intrincados e repletos de variantes que a voz do contador multiplica-se entre as dos personagens envolvidos e ávidos por apresentar-se. Noutras, o tom monódico assume o coro a depor o desenrolar dos acontecimentos. Em algumas, há apenas uma centralizada e solitária voz, terceirizada e alheia à experimentação dos acontecimentos, incapaz de alcançar os íntimos detalhes das possíveis versões a traduzir os mais recônditos sentimentos dos envolvidos! Por isso, seria inútil escolher antecipadamente quem teria a primazia de conduzir a trama deste enredo, pois a própria história encontraria as vozes com as quais se narrar.

No apartamento 43 do Edifício Maria Isabel, um dos septuagenários prédios do centro de São Paulo, os candidatos a narradores de si mesmos já se encontravam despertos para o testemunho de suas sinas. Depois de um longo silêncio de escuridão, o primeiro dia podia, enfim, raiar para iluminar todos os receios dos que antecipam seu próprio tempo e compartilham a narrativa de seu curso com a coragem de libertar o passado, a fim de seguirem adiante ou, ao contrário, prisioneiros da imobilidade de destinos detidos a manter-lhes encarcerados no escuro de suas existências.

Perfilados em expectante ânsia de retomarem as próprias narrativas, o pequeno grupo de personagens aguardava a chegada do novo anfitrião, Dante Alegretti, o sujeito que reintroduziria vida e movimento ao apartamento há tanto fechado à espera de um novo morador. Ambiente desgastado pelo uso de sucessivos inquilinos que dele usufruíram sem lhe oferecer a mínima contrapartida das manutenções que um imóvel demanda. O proprietário, por seu turno, não pisava ali há décadas e os prepostos da imobiliária apenas mal maquiavam os desgastes estruturais e estéticos a fim de assegurar novos aluguéis cada vez mais depreciados.

Dante, sujeito introspectivo, negociava as condições para o aluguel de sua nova morada. Sabia que sorrir talvez diluísse na face de ferro da corretora a dureza dos dias e trouxesse mais alguma vantagem inesperada. O dono da imobiliária determinou de antemão o valor reduzido no aluguel em troca dos serviços que ele prestaria enquanto habitasse a unidade 43 do antigo edifício. Qualquer desconto seria vantajoso naqueles dias de contas contadas. Mas sorrir tão cedo, antes do primeiro café não tomado por causa do atraso? Nenhum desconto valia isso. Sorrir atrasado seria hipocrisia. Desculpar-se com sinceridade bastava e o atraso não fora superior a meia hora creditada na conta do confuso trânsito da metrópole! Ademais, não precisava de sincera simpatia da mulher, cujo ofício incluía a obrigatoriedade de simpatia postiça. Eram apenas negócios. Fechado! Trinta meses de aluguel, contrato, fiador, coisas de praxe. Burocracia e caixas de papelão entulhadas de tralhas para toda uma semana de arrumações. Os pensamentos comprimidos pela densidade das emoções. Ninguém gosta de mudanças impostas e Dante, que se sabia péssimo nos improvisos, estava rendido diante de um futuro que o sequestrava para uma ruptura não ensaiada.

O apartamento era sobremaneira iluminado e ventilado. Raro isso, nas ruas do velho centro de edifícios geminados. Mas esse era diferente desde sua inusitada geografia: dava para a confluência de uma via onde estava o térreo com a recepção desativada e um viaduto a partir do qual se entrava e saía pelo primeiro andar. Uma esquina, sem sê-lo, com uma via em cada prumo, ligadas pelas entranhas do edifício.

O andar do novo endereço ficava acima desse estranho entroncamento e descortinava uma ampla varanda diretamente para a visão de belos exemplares da velha arquitetura vertical ainda bem conservada e de edifícios recentes, erguidos onde antes havia sobrados e comércios que um dia fizeram a riqueza do decadente centro de São Paulo. No hiato entre as construções e os viadutos que saltavam sobre a avenida Nove de Julho, espalhavam-se minúsculas praças com nódoas de vegetação, uma delas, sobremaneira especial, fazia da vista do futuro quarto uma tela verde repleta de pássaros canoros. Um requadro exilado de natureza no coração da megalópole, eis o consolo para aquela decadência que as circunstâncias impunham. Ao menos, passarinhos; canto sem cachê! Dante contabilizava as perdas e os poucos dividendos com essas e outras matemáticas de compensações.

Malas postas pelos cantos, caixas empilhadas, mobília desmontada. Amontoados de afazeres a serem procrastinados para além do cansaço reposto por alguma disposição física, acometida, porém, de apatia da vontade. Mesmo depois de horas de sono profundo, o corpo reivindicava uma teimosa inércia que negava o dia. A depressão rondava como uma predadora pronta a desferir seu golpe letal de apatia. Os detalhes do início de uma nova etapa de vida, assim condicionados à falta de ânimo, poderiam esperar nas caixas por semanas, meses… Relíquias e desutilidades empoeiradas. O primeiro inventário dos quesitos pendentes dava conta do desânimo: a fim de riscar um simples item da lista, onde se lia o título mudança encabeçando outros três ou quatro apontamentos de igual amplitude e abrangência, era necessário ticar incontáveis outros tópicos de uma lista não grafada de afazeres subjacentes que ainda aguardavam encaixotados! Desalentador… Melhor pensar nisso depois. Depois do quê? De quando? Depois! Depois! Decerto naquele tempo que ainda não há e, não havendo, ameaça menos a resistência ao novo.

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