Uma caça

Corbin Rainbolt, "Lobos caçando bisões na neve" (2020)
© pessoal do pintor

Emerson do Couto B. Vieira

Que amor ou moral, em mortais adversários
resiste à verdade, se a mente se lanha,
se atendem ao rito cruel, necessário,
da voz violenta de suas entranhas?

Num campo tão branco, num dia tão claro,
um grupo de enormes, pacatos bisontes,
que um bando de lobos pressente com faro,
pontilha de preto o gelado horizonte.

O branco assassino no campo se espalha,
uivando, rosnando, com fome entre os dentes;
convoca a alcateia à sangrenta batalha
que encetam no inverno do chão canadense.

Com passos calados, rapaces e leves,
os lobos conseguem chegar muito perto:
de pelo tão branco, eles somem na neve;
contudo, os bisontes também são espertos.

De pelos castanhos e pretos, hirsutos,
devido à paleta de lúgubres cores,
confundem-se em meio aos arbustos desnudos,
a fim de esconder-se de seus predadores.

Embora os bisontes se escondam nas moitas,
os lobos encontram seu rastro pesado,
que indica uma fuga dispersa e afoita,
contudo, o rebanho mantém-se agrupado.

Os búfalos formam um grupo compacto,
que corre e rechaça um ataque ferino:
um coice consegue, ao menor dos contatos,
quebrar a mandíbula atroz do assassino.

Nenhum animal uma trégua consente.
Persiste por horas, sem dar resultado,
a luta na neve, que é lenta, pungente,
e exige cautela de todos os lados.

Os búfalos bufam de angústia e de esforço,
abrindo caminho na neve tão alta.
Com músculos tensos e um sólido dorso,
difícil distância mantêm sobre a malta.

Os lobos avançam na crua caçada
e espreitam as presas, que atolam na neve,
bisontes errantes em bruta manada,
cansados da fuga, nenhum já prossegue.

Na forma de dupla, grosseira muralha,
os grandes mamíferos fazem defesa.
Os lobos esperam que surja uma falha
na grade de guampas, potentes, ilesas.

Enquanto avaliam a bovídea falange,
tal como pastores em súcia maldita,
por meio do medo e poder eles tangem
e cercam os montes de carne com vida.

Os búfalos acham a brecha propícia
e correm velozes na nívea campina.
O macho mais forte, com garra e perícia,
defende a traseira da fome lupina.

As fêmeas lideram a frente do estouro,
porém um novilho contempla e aguarda
e espera atingir a estatura do touro
que sabe ocupar tão hostil retaguarda.

De súbito, avultam os lobos vorazes.
Então, o novilho, acorrendo à fileira,
confuso, consegue alcançar seus sequazes;
porém, há perigo na parte traseira.

Um lobo consegue mordê-lo no lado;
mais sete o perseguem ferozes no encalço.
Conforme se agarram aos membros cansados,
é certo morrer com qualquer passo em falso.

O macho mais forte retorna à corrida
a fim de ajudar os bisões na escapada.
Com fúria, atropela a alcateia bandida,
e o jovem bisão também cai na cilada.

Por força maior, sacrifica o mais jovem,
o ingênuo bisonte que tomba imprudente.
A fim de salvar os melhores, que correm,
concede um tributo em favor do oponente.

O olhar em silêncio inocente que indaga,
o horror natural, decisivo, que chama
seu sangue, seu corpo rasgado por chagas,
a ser inefável e rude ideograma.

Palavras são como a manada que passa
e entrega primícias às feras em bando.
O bardo, portanto, termina uma caça
e volta à pacífica página em branco.

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Dois contos de Ana Vargas

“Iluminar cantos devastados é uma necessidade desse nosso mundo”. Dois contos de Ana Vargas.

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