A pequena Galícia. Ato I: a cidade

Catedral de Santo Antônio

Jocê Rodrigues

Conexões improváveis entre uma pequena cidade do interior da Bahia e um antigo reino ibérico

A cidade grande moderna é um fenômeno da clausura e seu signo é o da utilidade. Ela mantém dentro de si apenas o que é considerado digno das conquistas humanas. Carros, prédios, pontes, ferro e concreto. Nada a penetra a não ser que tenha algo a oferecer ao modo de vida frenético imposto aos seus habitantes pelo vício do tempo e dos costumes.

Enquanto isso, a cidade do interior é como um espaço tribal. Ela tem sua vida pautada pelo ritmo da terra, não pelo tempo artificial do relógio. Nela, todo mundo se reconhece primeiro pela força do parentesco.

Antes de sermos alguém, somos filhos de alguém. O respeito por quem veio antes, por quem pisou o chão que agora pisamos, continua marca característica desse fenômeno chamado cidade do interior ou cidade interiorana.

Para mim, a infância tem os cheiros e os sons inconfundíveis de cidade pequena. Elementos que se amalgamaram para formar a pessoa que me tornei na vida adulta. Minha vida interior é reflexo de uma vida no interior.

As experiências adquiridas na cidade natal tornaram-se as lentes pelas quais aprendi a observar a realidade ao redor. Assim, o meu modo de ser no mundo é semelhante ao modo de estar no mundo de uma cidade pequena específica, a qual, muito mais tarde, descobri ser espécie de irmã espiritual de um lugar distante, do outro lado do Oceano Atlântico.

Mas, calma. Nós chegaremos lá.

Primeiro, é preciso passar pela cidade em questão. A cidade em que nasci.

Fundada em 1958, Itagibá (palavra que vem da língua tupi e significa “pedra forte-pedra dura”, antes batizada de Distampina) não é apenas um município. Situada no Sudoeste da Bahia, com 818 km² de extensão, a cerca de 380 quilômetros de Salvador, ela é uma experiência metafísica formadora, com suas ruas, praças e pontes repletas de mitologias particulares e de almas inconstantes.

Dentro dessa extensão, o município inclui ainda dois povoados: Acaraci e Tapiragi, e um distrito chamado Japomirim. E apesar de todo o tamanho territorial, o seu “centro”, até poucos anos atrás, não passava de um pequeno conjunto de ruas e bairros interligados, além de inúmeros sítios e pequenas chácaras e fazendas espelhadas aqui e acolá.

Antigo lar de indígenas, cangaceiros e coronéis, esculpida entre florestas e rios do ambiente rural, ela é formada como um microcosmo dividido em espaços bastante singulares, como a pequena rua Castro Alves (conhecida popularmente como Rua do Cachorro).

Uma das mais importantes e tradicionais ruas da cidade, lá foram montados os primeiros comércios, as primeiras paradas de viajantes e, consequentemente, os primeiros bordéis. No comando deles, três mulheres de pulso firme: Doralice, Valdeci e Valmira. Sob suas ordens, cada uma com seu próprio espaço, a vida noturna ganhou cor e movimento.

Quando tudo ainda era mato, donos de fazendas e empresários de cacau das redondezas se despiam do orgulho cotidiano para bajular as coquetes que atendiam, dançavam e riam sob a supervisão dessas mulheres severas, que apartavam brigas, riscavam facas e espantavam arruaceiros na base da espingarda. Naquelas bandas, a palavra delas era lei. E não tinha polícia ou bandido capaz de levantar topete para elas.

Depois delas, outras vieram, mas sem o mesmo carisma. Pelo menos é o que os mais velhos dizem. Em seus primórdios, Itagibá pode até ter sido desbravada por um homem ― um tal de sr. Martins Ribeiro, lá pelos anos de 1900. Mas, quem a criou, quem a colocou no colo e lhe deu de mamar para que crescesse forte, pouco depois da sua fundação oficial, foram essas três mulheres.

A feira

Na década de 1990, não havia lugar mais diverso do que a feira. Feita em local aberto, na Praça Duque de Caxias, sempre aos sábados, feirantes de todo canto se reuniam para vender e trocar o fruto do trabalho suado. Apinhada de barracas com todo tipo de badulaques e especiarias, era lugar de comunhão. Uma missa solene, celebrada entre vendedores e compradores não sob a cruz, mas sob o sinal da necessidade.

De mãos dadas com minha mãe, ia eu de pernas e calças curtas entre laranjas, bananas e melancias recém-colhidas, a descobrir aos poucos as cores e os cheiros que o mundo tinha a oferecer fora das paredes de casa. Rostos conhecidos e anônimos se misturavam no calor do meio-dia. Vozes graves e estridentes em sinfonia dodecafônica.

Para crianças de nervos frágeis como os meus, um dia de feira era como um dia de mergulho. E era fácil se deixar afogar.

Na parte dos fundos, entre gaiolas e carrocerias, animais eram vendidos vivos. Cabras, bodes, pássaros, porcos e galinhas. A dor, minúsculos mundos de dor. E uma confusão de sentimentos no peito pequeno de quem olhava de fora. O lugar mais triste, em meio a tantas risadas, gritos e discussões sobre preços e notícias vindas de longe sobre quem faleceu, enricou e empobreceu ou sobre quem casou com quem.

Na primeira e única vez em que fui até as fronteiras da feira, longe da passividade dos temperos e das frutas, mas perto dos olhos nervosos dos caprinos, suínos e galináceos, voltei para casa apressado para rezar para São Francisco, com as mãos mirradas e sujas de doce e de poeira: “meu São Francisco, livra eles daquelas cordas e gaiolas, São Francisco, por favor. Protege eles, São Francisquinho”. A mãe me flagrou chorando e eu desconversei. Afinal, era coisa pessoal, íntima, entre o santo e eu.

Eu tinha mergulhado fundo demais. Muito além da minha capacidade de nadador raso. Daquele dia em diante, evitei a todo custo ir aos fundos da feira. Como que treinando para a vida adulta, fingia não saber a dor alheia. Mas, sempre ao chegar em casa, entre a pitangueira e a romãzeira no largo quintal de terra batida, ia ter com São Francisco em segredo: “e deles, dos bichinhos… O que será deles, meu São Francisco?”

A paróquia

Um pouco mais acima da Praça Duque de Caxias (subindo pela rua Chile ou pela Simões Neto), na rua Dom Pedro II, de fachada sóbria e solene, a Paróquia Santa Maria Goretti ainda acolhe as almas de toda a cidade. Dentro de suas paredes, o peso sagrado das confissões absolvidas, colhidas de lábios devotos e cansados.

Nos bancos de madeira maciça, marcas de joelhos e lágrimas; das dores choradas baixinho nos suspiros da oração. Missas, batizados e novenas perfumadas sob a piedade celeste que pende com semblante triste do crucifixo envernizado entre colunas brancas, povoadas de santos intercessores.

Desde que foi fundada, em 1986, a paróquia recebe a marcha do povo necessitado de milagres, grandes e pequenos. Mais chuva, mais plantio, mais colheita, mais saúde, mais amor, menos saudade… A lista de pedidos fora sempre enorme.

Na Hora do Angelus, bastava olhar para o campanário contra o poente para sentir parte das aflições de homens e mulheres em marcha serena na direção dos seus pórticos, com rosários pendurados entre os dedos, a esperar o fim do mundo.

A ponte

Outro marco da cidade era a Ponte Velha, não por beleza peculiar ou projeto arquitetônico arrojado. O que fazia a sua fama não era coisa deste mundo. À noite, os viventes dos bairros da parte baixa a evitavam como quem evita o perigo desnecessário.

Vultos, luzes, figuras de branco a fazer travessia de um beiral ao outro: verdadeiro desfile etéreo, que fazia da modesta passagem palco de desconcertantes assombros às margens do rio do Peixe.

Dizem que muita gente morreu naquele trecho em épocas passadas. Mortes vis, acidentais e apaixonadas. Personagens de dramas pessoais e que se tornaram sombras que vagam, talvez com o único desejo de não serem esquecidas. É que esquecer é condição inerente à existência humana.

Em árabe, a palavra usada para designar o ser humano é insan – aquele que esquece. Esquecer é mais fácil que agradecer. Disso todo mundo sabe. Os vivos esquecem seus mortos e os mortos choram o esquecimento. As aparições de seus corpos transparentes e etéreos nada mais são do que um farol, que não tem como intenção guiar embarcações. Antes, essas luzes, assim como as velas acesas no dia dos finados, buscam somente atrair as lembranças daqueles que por aqui ficaram.

Para quem passa por ela em noite de lua alta, a ponte velha é como uma fotografia desgastada de tempos que não voltam mais. Não há pessoas, só estrada pequena acima de um rio e a impressão de um coral de vozes do passado a cantar baixinho o apelo feito pelos condenados, há séculos trazido à superfície por Dante Alighieri: “lembrai de nós”.

O Corte

O Corte era um pedaço de estrada na costela da cidade. Pouco menos de 300 metros que se estendiam pelo meio do que sobrou de uma colina que dá acesso a Ipiaú, cidade vizinha. 

De dia não fazia medo. De noite só se passava em bando. Não era por medo de assalto, nem de sequestro. Era por puro medo de assombração mesmo. O trecho em si era curtinho, mas o receio era grande.

Seu Valdomiro, homem de fibra e que ganhava a vida com uma barraca de verduras que plantava no quintal de casa, já viu muito marmanjo dar marcha à ré e contornar a cidade para poder chegar do outro lado sem passar por aquele pedaço de chão que parecia riscado pelo casco do tinhoso em pessoa. 

“Aparece de tudo lá”, dizia o verdureiro. “É lugar abandonado por Deus, passagem de tudo o que é de ruim”, falava, antes de se benzer e beijar a imagem santa no peito magro.

Acidentes de carro, de moto e de carreta. Muitas vidas perdidas em tão pouco achado. Um corte na terra mais profundo e significativo do que aquilo que a gente pode ver.

A chácara

Em frente à ponte velha, na margem mais mansa do rio que corta a cidade, uma chácara mora nos meus sonhos desde a infância.

Do terreno baldio do outro lado da rua da residência em que passei a primeira infância (quando eu ainda quase não tinha idade para separar o real do imaginário), lá ia eu sob o manto da noite espiar o que acontecia por detrás da cerca que separava a propriedade do resto do mundo.  

O que restava do rio do Peixe em período de estiagem corria ao lado da casa da chácara – não tão grande para ser um casarão, não tão pequena para ser chamada de casebre. 

Do meu mirante particular, localizado quase na entrada do Corte, com seus fantasmas e pantomimas, paralelo à descida do rio, meus olhos só podiam ver a parte esquerda do terreno.

Nos fundos, uma pequena área, de onde uma lâmpada acesa emanava um brilho fosco que atraía minha atenção feito lamparina atraindo uma mariposa.

Sempre me imaginei morando nela. Mesmo vindo de família sem condições materiais para tanto, sonhava em como seria acender e apagar aquela lâmpada ao lado do rio.

Felizmente, sonhar sempre foi um bem imaterial, adquirido a custo zero.

O Fontourão

O estádio José Fontoura, feito gente viva ou falecida, tem apelido: Fontourão. De um lado, as casas de alvenaria que espiam por cima dos muros a grama verde castigada aos finais de semana por centenas de passe, botes e dribles. Do outro lado, as colinas e árvores que dão sombra ao gado que pasta de coração puro, livres de preocupação com o resultado da partida acirrada entre Ipiaú e Itagibá.

Nada de estacionamento ou cobertura. A entrada de grades finas e hall de teto baixo denunciavam um projeto humilde, mas de boa intenção. Na arquibancada de concreto, a torcida vibrava com lances de qualidade duvidosa, em meio aos gritos dos vendedores de cerveja e geladinhos.

Coladas à grade, as crianças, sempre as crianças, alternavam entre gritos de incentivo para os pais, parentes e conhecidos em campo e as brincadeiras de pique. Não era sobre o jogo dentro de campo, mas sobre os laços fora dele.

Ao lado do gramado, sentados e atentos, radialistas com equipamentos analógicos transmitiam cada jogada com a emoção de uma final de Copa do Mundo. Quem os ouvia, não sei dizer. Talvez os rádios de pilha colados ao ouvido de habitantes das áreas rurais vizinhas.

Para quem vive no mato, a notícia de um gol, dada aos berros entre um ruído de estática e outro na frequência AM, pode assumir a aparência de uma profunda alegria.

Uma alegria tão simples, mas tão plena, que causa inveja e vergonha em quem não sabe pisar o mato orvalhado descalço para encontrar com Deus no barro do qual Ele nos fez vir a ser.

A biblioteca

Na praça Hélio Quadros, em frente ao Colégio Municipal Raimundo Santiago de Souza, ficava a primeira biblioteca que frequentei. A primeira de muitas, é verdade. A mais humilde, sem dúvidas, mas a mais transformadora.

A estrutura era pequena. Uma sala de leitura grande, com pisos de azulejo e janelas baixas e amplas que davam para minúsculos beirais com flores e um único balcão de empréstimo, retirada e devolução.

Cadastro, nome, comprovante de endereço e assinatura: mesmo para alunos pequenos. A burocracia tinha chegado para ficar. Da variedade de títulos disponíveis não sei dizer.

Ia até lá a contragosto, por conta de algum trabalho de escola valendo nota e passagem de ano. Entre a biblioteca e eu existia uma distância de futuros enamorados: eu a observava de longe, com olhos brilhando, mas com medo de me aproximar.

Sim, medo. É a palavra certa. É que, na época, ter uma biblioteca era coisa nova na cidade. Ninguém sabia como usar direito. Antes dela, só aquelas das escolas, com suas estantes de ferro apinhadas de livros didáticos usados e reusados.

Ficava ali, solitária. Com duas funcionárias à espera de alma viva que lhes fosse fazer companhia. Antes de meu exílio forçado pelas forças de dois destinos entrelaçados ao meu (a separação de pai e mãe), e já mordido por uma solidão incômoda, perdi a timidez e passei a frequentá-la de livre e espontânea vontade para tomar livros emprestados.

O único exemplar que me lembro de ter lido, além dos gibis e livros infantis, falava de coisas fantásticas. De lendas e causos do interior profundo, como a galinha endiabrada, o saci, o boitatá e mais alguns seres que não me pareciam assustadores, mas sim tristonhos.

Que dura deve ser a vida de assombração. Vagar por aí sem rumo, botando medo em transeuntes desavisados, impedidos, pelo terror da incompreensão, de dispor de um dedo de prosa.

Esqueci de o devolver ao balcão, pois, dias depois, iria embora para sempre. Deixei-o aos cuidados de um primo. Se foi lido ou manuseado alguma vez, não sei dizer. Deve ter permanecido triste, assim como as criaturas em suas páginas. Do mesmo modo que o encontrei antes de deixar meu nome, comprovante de endereço e assinatura no balcão.

A funerária

Era uma casa com muitas portas. Pelo menos cinco portas holandesas na fachada, sempre abertas. Sem nome ou placa indicando o tipo de serviço prestado. Coisa desnecessária, já que era a única casa de serviço funerário da região.

Dentro delas, coroas de flores, velas, candelabros e caixões. Muitos caixões. Abertos, fechados, de pé, deitados, mais claros, mais escuros, com ou sem crucifixos…

À frente do negócio, um casal. O homem, espalhafatoso e bonachão. A mulher, caridosa e de aparência frágil. De dia, um lugar como outro qualquer. Gente indo e vindo pela calçada e entrando pelas portas não só para tratar de morte, mas também para comprar os deliciosos geladinhos à base de leite feitos pela mulher.

Mas a noite tem o dom de transformar tudo. Ela inverte os opostos com a mesma facilidade que o passarinho tem de habitar ar e terra. 

O que à luz diurna parecia simples comércio de madeira a ser plantada debaixo da terra, no breu das horas mortas, quando molhada pelo orvalho da imaginação febril, se transformava em capela para almas inquietas.

Como conseguiam dormir lá?, perguntavam-se as crianças de olhos arregalados ao passar em frente à funerária, a caminho da quitanda de Dona Zé, pouco depois do crepúsculo.

“A gente tem que ter medo é dos vivos”, respondia tranquila a mulher aos adultos que replicavam cara a cara a questão proposta em segredo pelos menores. Ladainha antiga, mas eficaz. Repetida à exaustão por quem há muito aprendeu a viver cercado pelo espantoso silêncio de quem já partiu.

O cemitério

O cemitério de Itagibá era modesto. Pequeno como vontade de gente desiludida. De muros baixos e portões incapazes de impedir a entrada de qualquer criatura que lá quisesse entrar, era espaço temido pelos pequenos e respeitado pelos mais velhos.

Localizado na parte alta da cidade, em noite de lua cheia o muro branco brilhava fantasmagórico, como que lembrando a todos os moradores o destino de tudo o que é vivo.

“A gente tem que ter medo é dos vivos, meu filho”, aconselhava o velho Josualdo, vizinho da construção mais silenciosa da cidade há mais de trinta anos.

Assombração nunca viu. Não por ali. “Ali”, costumava dizer, apontando o dedo fino, “é lugar de descanso”. Segundo ele, as almas penadas gostam mesmo é dos lugares onde podem se sentir vivas, não do lugar para onde a carne vai apodrecer.

“Nessa vida, a gente se apega ao que é bom. Por que na morte ia ser diferente?”, questionava com riso faceiro.

Faz sentido, seu Josualdo. Faz sentido…

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Poemas

“estás exiliado a penas solitarias” (em espanhol)

Fantasma

“E assim, silenciosamente, me disperso”

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