Natália Marques
1. A família
O cheiro de arroz queimado anunciou o árduo trabalho de restauração da panela, que teria de ser raspada com palha de aço, talvez ficar de molho com limão, para o metal carbonizado voltar a brilhar como antes. Aquele forte odor inundou o apartamento e as áreas comuns do prédio. Se não fosse recuperada, sua vida útil teria chegado ao fim e a panela iria para o lixo. Afobada, Marcia abriu a porta do banheiro e saiu sem nem mesmo lavar as mãos, já enrugadas por marcas da meia-idade.
Balançando o braço direito frente ao rosto, na tentativa de dissipar a fumaça que começava a enevoar a sala e a cozinha, Marcia girou o botão do fogão com a mão esquerda, apagando o fogo. Suspirou ao ver os grãos de arroz de cor laranja e pretos, os mesmos grãos que deveriam ter um tom branco amarelado, por conta do alho.
Não havia alternativa, teria que recomeçar o cozimento e torcer para dar tempo de almoçar antes de partir para a escola. Naquele dia, daria aula para os sextos anos. Gostava dos conteúdos que ensinava para essa série: pré-história, Grécia, Roma, mundos e realidades tão distantes, cujas consequências estavam presentes até hoje. Sentia falta de aprofundar o ensino das civilizações antigas da África e da América, mas não podia mudar o plano de aula estabelecido pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
Lavou as mãos na própria pia da cozinha, usando detergente de coco, o preferido de sua mãe, Amélia. Jogou o arroz queimado no lixo e colocou uma nova água para ferver. Esperava que Natanael chegasse quanto antes da faculdade, assim ele poderia ficar de olho no almoço enquanto ela se arrumava para o trabalho. Amélia havia saído há mais de uma hora para ir se confessar.
Quem realizava as confissões na igreja do bairro às terças-feiras era o padre Luciano, e Amélia adorava as palavras dele, um homem tão correto, centrado nas palavras de Deus, que se afastava dos pensamentos e hábitos mundanos, que só traziam dor e sofrimento. A mãe só se confessava com ele. Marcia não tinha preferência de padre para se confessar: o perdão vinha de Deus, não do homem.
Amélia, matriarca da família, havia completado 80 anos há menos de uma semana, um aniversário com comemorações em dobro, afinal, ela havia terminado as sessões de radioterapia e o tumor na pele sumiu. Aos 80 anos, dona Amélia havia nascido novamente.
Marcia deixou a panela queimada dentro da pia, colocou o novo arroz no fogo, em uma nova panela, e se dirigiu ao quarto para se arrumar. O ambiente ainda estava enevoado e o cheiro forte permeava o corredor. Assim que Natanael entrou no apartamento, começou a espirrar.
“Mãe? Cheguei! Que cheiro de queimado…”
O jovem de 20 anos trancou a porta atrás de si e jogou a mochila, cujo conteúdo era apenas um caderno e uma caneta, no chão. Na faculdade de economia não precisava de nada mais, já que, segundo ele, tudo estava on-line.
“Queimei o arroz, estou tendo que refazer. Você dá uma olhada pra mim? Vou pegar as atividades corrigidas e sair correndo”.
“Não vai almoçar?”
“Não dá mais tempo. Você vai pra banca agora?”
Natanael herdou a banca de jornais de seu avô, Fernando. Ela ficava em uma boa localização: na frente da igreja da Santa Ifigênia, no centro de São Paulo.
Antes de Natanael fazer 18 anos, quem cuidava da banca desde o falecimento de Fernando era o irmão de Marcia, Antônio Carlos, ou Toninho, como era mais chamado pela família e amigos. Mas, assim que o garoto atingiu a maioridade, passou a trabalhar na banca durante o período da tarde, a fim de ajudar a pagar a mensalidade da faculdade.
Marcia sempre fez questão de pagar boas escolas e, agora, uma boa faculdade para Natanael. Nunca teve ajuda do ex-marido, José, pai de Natanael, na criação do filho. A pensão que José pagava não dava nem para comprar o lanche da escola, quem dirá pagar a mensalidade de um bom colégio particular em São Paulo. Marcia teve de ser mãe e pai, trabalhando muito mais do que o saudável para conseguir dar a Natanael o futuro que sempre desejou que ele tivesse.
Depois do divórcio, Marcia se mudou para a casa de Amélia e Fernando, com Natanael ainda nas fraldas. Não conseguiria pagar um aluguel sozinha e voltar para o ninho pareceu a melhor alternativa naquele momento. O destino mostrou-se favorável a esse cenário: Marcia estava ao lado de sua mãe quando Fernando faleceu. A tenra idade de Natanael animou a família ainda em luto, mas as dificuldades durante todo esse processo seriam maiores e mais duradouras, psicologicamente.
Além da ruptura do divórcio e da perda do pai, para uma mulher com um filho, um trabalho estável no funcionalismo público, certa de suas crenças e percepções, voltar para a casa da mãe foi complicado. Um retrocesso.
Mãe é mãe, ela estará lá para ajudar da maneira que achar correto, não importam as adversidades, mas, para uma adulta, voltar para casa da mãe em um momento frágil tem suas consequências e, em meio às turbulências dos anos que se seguiram, as mudanças em casa, no trabalho, o filho crescendo, e a sociedade se transformando, Marcia encontrou um vazio dentro de si, uma cavidade escura, silenciosa. Ela entrou em depressão e, por muitos anos, permaneceu com a doença, tratando-a, indo a médicos, tomando remédios.
Cerca de dez anos depois, Marcia achou prudente que os três se mudassem para um apartamento. As casas não eram mais tão seguras em São Paulo e estar mais perto das nuvens parecia uma boa ideia para fugir da violência do asfalto. A mudança para o terceiro andar de um prédio no mesmo bairro fez bem para o seu espírito e mente. Marcia decidiu, por si própria, diminuir os antidepressivos.
Sabiamente, minimizou as doses de forma progressiva, até parar completamente. Ao fim da luta contra a depressão, Natanael já era adolescente e foi, então, que Marcia conseguiu se reconhecer e percebeu que havia outros meios de escapar do sentimento ruim que uma decaída da doença trazia. Começou a fazer o que amava novamente: foi atrás de cursos, fez vestibulares para uma segunda graduação, voltou a cantar na igreja e, finalmente, começou a ver aquele apartamento como seu, não como a casa da sua mãe, o seu apartamento, onde sua mãe também morava.
Durante a semana, porém, o apartamento era todo de dona Amélia, que, já aposentada, às vezes saia para dar uma volta, fazer compras, ir à igreja, mas normalmente ficava em seu quarto, assistindo à televisão, fazendo palavras-cruzadas e beliscando amendoins japoneses, que deixava escondidos no seu guarda-roupa.
Isso fez com que Amélia também sentisse que aquele apartamento era dela. Marcia saía para trabalhar na hora do almoço e voltava quase às oito horas da noite; Natanael passava a manhã na faculdade e a tarde na banca de jornais; e, supostamente, a casa pertence a quem dela usufrui. Não raro, Marcia ainda tinha recaídas por conta da aparente perda da independência e da falta de prosperidade.
É difícil celebrar as conquistas quando muitos indícios à sua volta demonstram não ter avançado. Ainda mais quando sua mente aumenta os sinais de tempo estacionado e te impede de visualizar o presente e o futuro brilhantes que podem existir.
A fé foi um escape, tirava a mente de Marcia da depressão e do que a causava. Desde criança, ela era levada à igreja por sua mãe e, depois de jovem, continuou frequentando por vontade e crença próprias. Para ela e para sua família, a morte não significava um fim, mas um recomeço. Acreditavam na ressurreição e tinham certeza de que sabiam o significado dessa palavra.
Mas a fé é algo engraçado. É fácil dizer que tem fé, é fácil falar que acredita, até as provações se tornarem tão insuportáveis a ponto de ela enfraquecer ou de não fazer mais sentido. Para Marcia, a vida sempre foi uma grande montanha-russa, mas a religião nunca perdeu o significado. Mesmo depois daquela terça-feira.