As luzes de dois cérebros anárquicos

Edvard Munch, "Mãe e filha" (1897)
Museo Thyssen-Bornemisza, Madri

Ana Barros

Dia 1

Mamãe morreu. Eu estava sentada ao lado do seu caixão aberto e encarava seu rosto com poucas rugas, branco como de uma gueixa. Mamãe morreu. Não soube exatamente do quê. Disseram que foi uma parada respiratória enquanto dormia, mas era uma mulher jovem. Não acreditei no laudo. Se estivesse viva diria que morreu de tristeza por ter uma filha assim como eu. Na última vez que nos falamos ela disse que morreria de desgosto pela minha ingratidão. Fazia dois anos desde essa ligação.

Foi vovó que a encontrou, na cama em que dormia e passava a maior parte do seu tempo quando não estava trabalhando no único cartório da cidade, ou na igreja. Ela me ligou, “sua mãe está morta”. Disse assim, sem nenhuma emoção. “Sua mãe está morta” repetiu quando eu não soube o que responder. Tenho pouco em comum com a minha avó, mas somos parecidas em uma coisa: o horror que sentíamos em relação à personalidade de mamãe.

Estávamos sentadas em frente ao cadáver, vovó segurava minha mão. Sentia sua pele flácida entre meus dedos frios. Apertava como se dissesse que agora poderíamos retornar ao ponto onde paramos. Quando ela passava os dias cuidando de mim enquanto mamãe trabalhava. Antes de meu avô morrer e mamãe arrumar as malas para se mudar para São Paulo, porque não poderia morar naquela casa sem o pai. Lembrava de me sentir angustiada sozinha com mamãe, sem vovó nem vovô, em uma nova cidade, em uma nova casa bem menor. Eu gostava de vovó, mas nos anos em que cresci ao lado de mamãe a raiva que ela sentia da mãe me preencheu.

Mamãe estava morta. Eu levantei, me desfazendo do carinho da minha avó, fiz o sinal da cruz, mesmo não me sentindo religiosa, em respeito aos desejos dela. Percebi os corpos ali voltados para mim, eles me observavam com olhos penosos. Eu não suportava ser uma pessoa digna de pena. Sim, eu perdi minha mãe aos trinta e um anos, mas ela não iria querer que eu fosse a pessoa que os outros sentiam dó. Ela me dizia para nunca ser uma vítima, como os outros da minha geração faziam. Eu nunca entendi o sentido dessas palavras, acreditei.

Saí da sala onde acontecia o velório, e senti o ar fresco preenchendo meu corpo. Era um lugar de paz, rodeado de árvores volumosas. Senti alívio, até que vi Miguel caminhando. Ele tinha ido cuidar das burocracias da morte para mim.

“Encontramos uma cova”, ele olhou para mim, sem que nossos olhos se encontrassem. “Mas está longe do seu vô. O cemitério está quase em sua lotação máxima”.

Mamãe queria ser enterrada ao lado do pai. Seu último desejo não seria cumprido porque a manutenção da cova familiar que meu bisavô tinha reservado há anos não estava sendo paga. Colocaram outras pessoas ali sem avisar.

“Paguei a mais para colocar uma lápide de mármore”, ele se segurava para não chorar.

Agradeci e ele soltou aquilo que reprimia. As lágrimas não combinavam com o seu corpo de fisiculturista. Nos abraçamos. Ele amava minha mãe como se fosse a dele. Perguntei se ele queria entrar, ele balançou a cabeça em concordância e foi até a sala do velório. Fiquei ao lado de fora respirando o ar puro. Assim que ele entrou, vovó saiu.

“Ela era uma menina tão nova. Uma mãe não pode perder uma filha tão nova!” Seus olhos estavam repletos de lágrimas. “Não tinha nem três anos”.

Eu não soube o que responder. Imaginei que devia ser assim que ela processava o trauma: imaginando a filha ainda pequena e inocente.

“Uma criança”, ela continuou.

“Vó, a senhora está bem?”

“Sim”, ela parecia em dúvida. “Estou um pouco, sei lá”.

Miguel reapareceu dizendo que a missa iria começar. Entramos e sentamos nos nossos lugares em frente ao corpo. Mamãe dava aula de crisma para os jovens da paróquia e era a principal Ministra da Eucaristia. Todo sábado e domingo ela estava presente nas missas do dia ministrando as hóstias para a população daquela pequena cidade. Mamãe era popular. O velório estava cheio para ver o pároco da igreja matriz abençoando aquela mulher santa, pelo menos foi o que ele disse enquanto rezava a última missa de mamãe. Ela não tinha recebido a extrema unção, mas pelo menos estava sendo abençoada.

Vovó me olhou de canto de olho, parecia inquieta. Não gostava de igrejas, nem de missas, nem de padres. Era uma ateia convicta. Tinha crescido em uma casa de ateus e se surpreendeu quando a filha decidiu que entraria para o grupo de jovens da Igreja, influenciada pelo pai.

“Não gosto desse padre Manuel”, ela sussurrou, incomodada. “Ele aparecia lá em casa e eu tinha que preparar pão de queijo e bolo de cenoura, e se eu não fizesse, sua mãe ficava com a cara fechada por uma semana, como uma criança”.

Não respondi. A missa era um momento sagrado que não podíamos interromper com conversas alheias. Vovó ficou brava com a falta de resposta e se voltou para o padre que espirrava água benta no corpo de mamãe. Uma das amigas dela segurava o incensário e em poucos minutos a sala pequena ficou irrespirável. As pessoas seguraram sua ânsia de sair correndo com elegância. Ninguém queria deixar de velar o corpo da Santa.

Vovó foi a primeira a sair, antes mesmo do padre finalizar a cerimônia. Sempre admirei isso nela, a determinação e a coragem, nunca a vi se desculpar por ser como era. Esse traço de sua personalidade se contrapunha a outro: a submissão. Vovó fazia tudo pelo meu avô, o prato, a cama, as roupas. Ele era ciumento e não gostava que ela saísse de casa, por isso ela foi se fechando cada vez mais. Vovó era um tipo de mulher quando estava perto dele, e outra quando ele estava longe. Eu preferia a segunda. Depois que ele morreu, vovó viveu um desabrochar, voltou a estudar letras e filosofia, matérias que era apaixonada na juventude, escreveu por um tempo para o jornal local, organizou um grupo de mulheres para debater sobre feminismo e fez algumas amigas na cidade. Até alguns anos atrás ela ainda recebia algumas mulheres no cômodo da casa, onde era a biblioteca de seu pai, revestida por estantes com livros de capa dura em várias línguas. Antes das reuniões começarem, aquele era um ambiente proibido, só ela podia entrar.

Quando a missa acabou as pessoas saíram aos poucos. Eu queria acompanhar vovó, mas Miguel me segurou para sermos os últimos. Para mim aquela cerimonia já tinha durado tempo demais. Estava acordada há vinte quatros horas, sem comer, nem tomar banho. Assim que vovó ligou saímos de casa com apenas uma mochila cada. Estava exausta quando a peregrinação pelo cemitério começou. Funcionários da funerária carregavam o caixão e nós caminhávamos atrás. O padre e as amigas de mamãe cantavam sua música gospel preferida. Miguel entoava palavras que ele conhecia, mas não conseguia completar nem um verso. Vovó olhava com reprovação e me puxava para longe dele, fingindo cansaço. Quando percebi nós duas estávamos no final do cortejo e Miguel em frente, colado ao padre.

Vi os olhos de vovó aguados quando o caixão já fechado descia para terra. A lápide dizia: Aqui jaz Simone Campos da Silva, querida amiga, mãe, sogra e filha. Sentiremos sua falta. Estranhei que Miguel tivesse escolhido os dizeres sozinho. Vovó começou a chorar. Não soube o que fazer, mas não foi preciso. As amigas de mamãe foram, uma por uma, abraçá-la. Diziam que Simone estava em um lugar melhor, junto de Deus. Minha avó chorava ainda mais, não acreditava naquilo.

Flores foram jogadas na cova, e depois terra. Aos poucos, após muitos cumprimentos, as pessoas foram embora com rostos inchados. Sobramos, eu, Miguel e vovó. Eu teria que voltar a casa da minha infância. Casa que foi renegada por minha mãe durante muitos anos. Casa que eu amei e odiei na mesma medida. Quando cheguei na cidade fui direto ao IML para não entrar naquele lugar, não tive coragem. Miguel pegou vovó e a trouxe para o velório. Nossas mochilas ainda estavam no carro.

Enquanto fazíamos o caminho entre o cemitério e a casa percebi que seria a primeira vez que entraria por aquela porta sem que minha mãe estivesse do lado de dentro me esperando, ou do lado de fora me conduzindo. Eu ainda não sabia como seria a vida a partir dali, nem quanto tempo eu teria que ficar entre os cômodos grandes daquela casa antiga, com paredes de madeira esculpidas pelo meu avô, que tinha sido um carpinteiro famoso na cidade. Casa que pertenceu aos meus bisavós, pais da minha avó. Por um tempo curto, eles tiveram dinheiro; as obras do meu bisavô venderam muito bem na época. Ninguém mais lembrava seu nome, apenas um grupo pequeno de jovens que buscavam por algo que ninguém mais conhecesse. Nesses círculos ele ainda é adorado, existe uma espécie de caça aos livros do meu bisavô pelos sebos de São Paulo. Descobri isso quando um de seus admiradores me contatou em uma rede social, por um momento aquilo me pareceu irreal.

Ali estava ela, a casa imponente de madeira com um avarandado, tanto no andar de cima, quanto no de baixo. Miguel estacionou o carro logo depois do portão de ferro, que tinha deixado aberto quando saiu com vovó, quase em frente aos três degraus que levavam à porta. A tinta branca que cobria a fachada estava toda descascada. Os degraus pareciam que iriam se desfazer enquanto a gente subia para alcançar a varanda. Faltavam pedaços de madeira em toda a sua extensão.

Por dentro, a impressão era de que a casa desmoronaria a qualquer momento. Vovó precisava morar em um lugar que requeria menos cuidados, talvez um apartamento, onde ela tivesse vizinhas da mesma idade para conversar. Com certeza era mais seguro do que ficar naquela casa velha. O mais certo seria ela ir comigo para São Paulo, morar em um apartamento próximo ao meu. Assuntos que precisaríamos tratar quando o vazio diminuísse. Só precisava saber se ela viveria em outra cidade, depois de quase uma vida inteira ali.

Entramos em silêncio. Vovó subiu as escadas e foi direto para o seu quarto. Eu fui para onde dormia quando era criança, também no andar de cima. Miguel veio atrás. Deitei na cama empoeirada, os lençóis eram os mesmos da última vez que estivera ali. Parecia que ninguém tinha tocado no quarto. Era um cômodo pequeno com uma cama de viúva encostada na janela que quase ocupava a parede inteira, e do outro lado um armário de madeira escura com três portas e um espelho no meio, bem em frente à lateral da cama. Nada que lembrasse a minha infância. Naquela época os brinquedos ficavam espalhados por todo cômodo preenchido por um papel de parede com bailarinas e camélias. Quando fomos embora, minha avó remodelou a casa inteira e meu quarto ganhou um papel de parede florido, que estava aos poucos descascando; ao lado da janela, pude ver um rasgo pelo qual uma bailarina antiga aparecia, no meio de uma moldura dourada.

“Quer que eu busque algo para a gente comer?”, Miguel colocava as mochilas no armário.

“Talvez o mercado da avenida principal esteja aberto”.

“Vou ver se tem algo na geladeira”, ele mudou de ideia. “Não vou sair”.

“Você pode passar no quarto da vovó e ver se está tudo bem?”

Miguel saiu do quarto e eu deitei naqueles lençóis cheirando a mofo tentando chorar. Meus olhos ainda não tinham produzidos uma lágrima sequer. Eu deveria chorar. Antes de deixar o quarto Miguel me olhava como se questionasse quando isso iria acontecer. Estava em choque querendo entender a morte dela. Não nos falávamos há dois anos e eu vinha trabalhando em terapia essa relação. No fundo queria que fôssemos mãe e filha normais como Nina e sua mãe. Tinha inveja do amor despretensioso com o qual a mãe da minha antiga melhor amiga a cobria. O amor que recebi era um condicional, que mudava de acordo com a minha obediência e o humor de mamãe. Não parecia genuíno. Mamãe estava morta e eu nunca experimentaria outro tipo de cuidado.

Essa constatação finalmente me fez chorar. Eu soluçava por saber que nossa relação estaria quebrada para sempre. Sem possibilidade de conserto. Eu não receberia o amor que sempre desejei. Minha mãe nunca me aceitaria como realmente sou, mas, naquele momento, eu estava livre para fazer as minhas escolhas, sem saber o que eu realmente queria. Tudo que fiz foi para agradar ela. Foi para ter esse amor. Eu tinha acabado de perder algo que nunca tive. Talvez devesse ter me esforçado mais.

“Sua avó está dormindo”, Miguel falava com prudência excessiva. “A gente acorda ela?”

Limpei meu rosto com pressa para que ele não visse as lágrimas e balancei a cabeça em negativo.

“Tem macarrão e molho de tomate, nenhuma proteína”, ele continuou. “O que acha?”

“Acho que não precisamos pensar em dietas hoje”.

“Um dia não vai fazer mal”, sua voz era doce.

“Você pode preparar? Eu vou tomar banho”.

Me despi. Meu corpo era realmente bonito, esculpido com muita dieta e exercícios: cintura muito fina, coxas grossas e peitos siliconados. Estou há anos tentando alcançar a perfeição com uma alimentação regrada, acompanhada por Miguel, sempre comendo pouquíssimo carboidrato. Sempre estive em uma espécie de dieta, desde criança, mas quando ele apareceu as coisas se intensificaram. Ensinamentos de mamãe: coma pouco e seja feliz.

Fui até o banheiro anexo ao quarto. Era um espaço pequeno com um box que cabia apenas uma pessoa. Abria a torneira e esperei a água quente. Entrei quando já saía fumaça. O calor relaxou todos os meus músculos. Alívio. Por alguns minutos fiquei perdida, sem saber como continuar. Eu não tinha mais a sombra de minha mãe para controlar o que eu comia, e a minha aparência, para dizer: “Meu Deus, você engordou!” Eu sentiria falta disso, era assim que ela demonstrava o seu amor. Mamãe queria o meu bem e parecia que naquele momento ninguém mais queria isso. E aí lembrei de vovó, do pão de queijo que ela fazia e me dava escondido, e dos pedaços de bolos açucarados que eu só podia provar quando mamãe estava no trabalho. Vovó sempre tão doce, mas tão dura. Sempre sarcástica, mas calada. Sempre irreverente.

Passei xampu, condicionador e ensaboei o corpo. Estava suja e precisava tirar o cheiro de cadáver de mim. Esfreguei bem as mãos, os braços, meu rosto, as pernas e a barriga, como se quisesse esfoliar a pele. A sujeira foi embora. Meu corpo estava fresco, renovado. Por alguns minutos senti que tudo tinha passado, mas logo depois percebi que mamãe ainda estava ali. Meu estômago começou a roncar. Estava faminta. Coloquei uma roupa qualquer e desci até a cozinha.

Miguel tinha feito a macarronada nas antigas panelas de ferro usadas desde a minha infância. Ele preparou a mesa e nós dois sentamos. O macarrão com molho e o queijo ralado estavam dispostos na nossa frente. Fiz um prato para a minha avó, caso ela aparecesse. Depois fiz o meu. Coloquei a massa em um quarto do prato como estava acostumada. Comemos em silêncio, não tínhamos o que dizer. Quando terminei, quis mais, meu estômago ainda roncava. Comi mais um pouco e não me senti satisfeita. Depois mais um pouco e mais, até terminar a panela. Só não toquei na comida que separei para vovó. Miguel me olhou com reprovação mas não parei. Precisava comer tudo que não tinha comido todos aqueles anos.

“Piano não é brinquedo”, escutei vovó dizendo baixinho. “Mas se você quiser aprender a Sonata ao Luar do Beethoven eu te ensino”.

A voz vinha da sala, onde alguns anos atrás tinha um piano de cauda que vovó tocava, mas que fora vendido para pagar as dívidas que meu vô deixara de herança.

“Não, essa eu não sei tocar”, vovó disse um pouco mais alto.

Fui até a sala e vi seu corpo agitado andando de um lado ao outro. Permaneci calada observando até que Miguel se juntou a mim.

“Não fale assim comigo, mocinha”, vovó gritou.

“Vó? A senhora está bem?”

“Não me chame de senhora”, ela se virou para mim. “Não existe hierarquias nessa casa!”

“Quer comer algo?”

Fui até ela e a envolvi com meus braços. Caminhamos juntas até a cozinha. Ela olhou para o prato de macarrão. Torceu o nariz, mas comeu tudo o que eu tinha deixado para ela.

“Tem mais?”, perguntou.

“Desculpa, eu estava com fome”.

“Você está muito magrinha mesmo. Precisa comer. Sua mãe nunca te deu comida o suficiente”.

“Eu posso cozinhar”, antes de terminar de falar, Miguel já estava de pé com a panela de ferro na mão.

Vovó comeu toda a panela, enquanto olhávamos um para o outro em silêncio. Parecia que a qualquer momento Miguel diria algo. Ele abria a boca, mas fechava. Abria e fechava sem pronunciar uma palavra. Aquilo me deixava aflita. Gritava por dentro implorando para que ele dissesse as palavras certas, e ele não as encontrava.

Quando vovó se levantou, nós subimos juntos. Miguel foi para o meu antigo quarto e eu acompanhei vovó. Estávamos de mãos dadas até chegarmos à porta e quando passei por ela senti um cheiro forte de lavanda. Aquele cômodo era o único da casa que tinha um cheiro bom. Dava para ver que ela mantinha seu espaço impecável, o chão era de carpete e tinha sido aspirado recentemente, a cama estava perfeitamente alinhada e os móveis eram tão bonitos, como eu recordava na infância, feitos de madeira maciça esculpida em arabescos saltantes. Móveis que pertenceram aos meus bisavós e foram cuidados com carinho até aquele momento. Ela abriu o armário e tirou um pijama de flanela de dentro, pediu licença e foi até o banheiro se trocar. Fiquei sentada em frente à penteadeira, esperando. Ela voltou e deitou na cama.

“Boa noite. Se precisar de algo estarei no meu antigo quarto”.

“Eu não quero dormir sozinha”, vovó respondeu. “Quando eu estou sozinha vejo ela criança”.

“Tudo bem se eu for avisar o Miguel?”, perguntei. Quando voltei ao quarto de vovó as luzes já estavam apagadas, mas ela não dormia. Sentei ao lado da cama que pertenceu ao meu avô. Depois deitei o meu corpo por cima do cobertor. Aquele contato íntimo com a minha avó era esquisito. Fomos estranhas durante muito tempo. Nunca dormimos juntas, nem quando eu era criança. Sempre existiu uma barreira entre nós: minha mãe.

“Não é bonito isso?”, ela perguntou logo depois que eu deitei.

“O que, vó?”

“Escolher a hora da própria morte”.

“Não sei se isso é possível, mas gostaria que fosse”.

“Foi a última coisa que falamos. Sua mãe e eu, anteontem à noite. Estávamos falando sobre a morte do Godard. Ela ficou muito brava quando eu disse isso”.

“Vó, isso é uma coisa horrível de se insinuar”.

“Ela disse a mesma coisa”.

“E o que mais?”

“Você sabe como ela era, ficou brava, saiu batendo as portas”.

“Só isso? Aconteceu mais alguma coisa?”

“Deve ter sido o coração. Não devia ter falado aquilo”.

“Vó, a senhora não fez nada”.

“Eu deixei ela nervosa”.

“Ela era nervosa”.

“Sim, e é bonito isso, não é?”

“O quê?”

“Escolher a hora da própria morte”.

Vovó deu um beijo em meu rosto e se virou. Ela estava no meio da cama e eu tinha um espaço restrito para me acomodar. Vovó sempre dormiu no meio da cama, quando meu avô era vivo dormiam agarrados, ela no meio, ele na ponta. Achava bonito ver os dois dormindo de conchinha. Depois que ele morreu ela continuou dormindo na mesma posição. Escutei vovó roncando, seu sono tinha vindo com muita facilidade, como se ela tivesse tomado algum remédio para dormir. O meu não viria tão cedo, apesar de estar extremamente cansada. Ela estava serena, calma, dormia um sono bonito, profundo. Chamei ela uma vez, não me respondeu, chamei de novo. Ela não iria acordar.

Saí do quarto em silêncio, fui até o meu. O corredor era longo e o chão de madeira murmurava a cada passo que eu dava. Olhei pela fresta da porta: Miguel estava dormindo. Entrei, peguei um pijama na minha bolsa e continuei andando pelo corredor até o quarto de mamãe. Quando entrei fui assaltada pelo seu cheiro. Mamãe usava um perfume doce de jasmim que me causava uma mistura de enjoo e conforto, mais enjoo do que conforto. Parecia que aquele cômodo acumulava camadas de sujeira, muito diferente do quarto de vovó. Vi a grande cruz sobre a cama, uma imagem da Nossa Senhora e outra do Papa João Paulo II acenando. Cobrindo a cama, uma colcha de crochê dura que ela mesma tinha costurado, deitei em cima dela. O quarto vazio, escuro e frio.

Rezei. Rezei para que essa sensação de alívio saísse de mim. Rezei para sentir tristeza. Rezei pedindo perdão por pecar. O peso que mamãe fazia em mim tinha se esvaído. Eu estava feliz por ela ter ido cedo. Feliz por ela não ter me deixado no encargo de cuidar dela, como ela dizia que eu deveria. Rezei pedindo perdão por esses pensamentos impuros. Honrar pai e mãe é um dos mandamentos bíblicos. Naquele momento eu não tinha nem pai, nem mãe, e eu estava grata por isso? Também tinha sido um alívio quando meu pai sumiu e nunca mais voltou. Mamãe ficou arrasada, mas pelo menos as brigas tinham acabado. Mamãe morreu. Decidi que iria dormir em sua cama.

Quando acordei vovó e Miguel já estavam tomando o desjejum. Vovó fizera um cappuccino na máquina que a gente tinha dado para ela anos antes, e Miguel fez ovos mexidos sem manteiga, mas com pimenta, do jeito que a gente sempre comia. Recheei duas fatias de pão de forma com a geleia de laranja que vovó me ofereceu, enquanto os olhos de Miguel me fuzilavam. Eu queria comer os pães com geleia. Eu queria ser uma nova pessoa. Trabalhava em terapia a minha relação com a comida, mas nunca tinha sido tão fácil quanto naquele momento.

“Você não vai comer os ovos?”, Miguel perguntou. “A gente não comeu proteína ontem”.

“Estou enjoada de ovos”, virei para vovó.

“Muito obrigada pela geleia, está uma delícia. Simone, você faz muito bem comendo assim”.

“Vó, eu sou a Angela”.

“Ah querida, eu sei. Cadê sua mãe? Uma hora dessas ela já está levantada”.

“Vó?”

“Eu vou lá chamar ela”, vovó se levantou.

Miguel olhou para mim sem saber o que fazer. Eu tampouco sabia. Mas achei que deveria ser honesta.

“Vó, mamãe não está mais aqui”.

“E onde ela está?”

Miguel e eu nos entreolhamos e vovó agarrou as mangas de sua blusa, levou ela até os olhos e começou a chorar.

“Eu nem disse a ela que a amava. Você sabe como sua mãe era, como a gente era, mas eu a amava tanto. Mais do que minha própria vida”.

“Eu sei, vó. Eu sei. Está tudo bem, eu estou aqui”.

O resto do dia se arrastou. Vovó chorava de pouco em pouco, como se relembrasse a todo momento que tinha perdido a filha. Miguel disse que no dia seguinte precisava voltar ao trabalho, tinha clientes que precisavam da sua orientação, os campeonatos de fisiculturismo estavam se aproximando; e me perguntou o que eu faria. E eu não sabia. Não poderia deixar vovó sozinha, mas não queria ficar naquela casa. Liguei para o escritório pedindo alguns dias de folga, Alberto disse que eu poderia ficar o quanto fosse necessário.

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