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A ideia de Europa

Marina Alexiou

A ideia de tentarmos elaborar em nosso coração sobre as coisas que duram e que se explicam a si mesmas, através do olhar atento de quem observa, não é nova, apesar de conservar o fascínio em suas raízes.

Antigos e ancestrais, os símbolos que compõem a ideia de Europa são o tema de um pequeno, mas belíssimo e profundo livro do filósofo George Steiner, A ideia de Europa (Relógio d´Água, 2017), sobre o qual me atrevo a tecer alguns breves comentários.

Servindo-se de uma argumentação objetiva, perscrutante e, ao mesmo tempo, poética e filosófica, nos assegura que a história da Europa foi construída a pé, através do exercício peripatético dos caminhantes. Passos perdidos na alma da Europa, todavia, encontrados em cada esquina, em cada café, em cada praça, em cada rua… a formar uma pátina inesquecivelmente humanizante e humanizadora.

No livro ficamos sabendo da lenda do deus que pode aparecer à nossa porta, disfarçado de pedinte, a pedir… hospitalidade. Sagrado conceito esse, o da aceitação do desconhecido e do mistério, sem necessidade de garantias ou respostas. Walter Benjamin sintetiza na frase: “enquanto houver um mendigo, haverá mitologia”. Mitologia traduzida nessa espera pelo caminhante solitário e incógnito. Visita insólita, inesperada e de possibilidades inauditas.

Contudo, sem ele não há renovação. Não há aprendizado. Não há troca, nem mensagens novas. Nem estranhamento, valioso impulsionador da tolerância, apesar do espanto.

De alguma forma, todos somos (os do passado, do presente e do futuro) caminhantes.  E edificadores, como esse deus, que pede por abrigo e que tem tantas histórias para contar e belezas para acrescentar, como argamassa de suas tantas experiências acumuladas na memória e no coração.

E as pedras vão se sobrepondo. Nas casas, nas ruas, nas fontes, nas catedrais, nos palácios. Edificação como ethos de um lugar com tantas nuances e vivências comuns. De logro e sofrimento. Intelectualidade e guerras. Pestes e dizimações. Poesia e filosofia.

Europa, construção coletiva que perdura em seus fundamentos muito solidamente calcados por pisadas tão diversas…

Lugar de Kant e Stendhal. Molière e Racine. Beethoven e Bach. Robespierre e Rousseau. Caravaggio e Picasso. Alexandre e Bonaparte. Patíbulos e reinados… Lugar da barbárie em seu caminho à civilização. Construção expressa nas efígies das moedas e nas placas das ruas. Nos recuerdos dos cafés (a essência da Europa) e nos vitrais das catedrais. Nas universidades e nas praças.

Toda uma grandeza que pode ser sentida ao caminharmos diante da casa de Rembrandt. Ao atravessarmos a Ponte Vecchia ou visitarmos o Palazzo Medici, percorrendo a rua em que Michelangelo deve ter pisado para ir ter com Lorenzo…

O “mapa das cafetarias” traz as constelações que guiam os encontros, e as trocas entre o flâneur, o poeta, o artista, o escritor e o revolucionário… e o caderninho estratégico sempre nos bolsos dos seus casacos. Onde habitaram tantos pensamentos, sonhos, devaneios, críticas e esboços. Formadores, ao longo dos séculos, da morada de um ethos europeu que não se descola dos passos perdidos, mas encontrados e ubíquos, apesar de toda a tecnologia e burocracia, que se sobrepõem ao desenho original, o das raízes. Que vão fundo, como a da árvore de Odisseu, espinha dorsal do seu palácio.

Europa… uma representante de um sonho tão antigo como uma ária arcaica, não deve ser esquecida…

Quem sabe, ela que representa a civilização imorredoura, como bem o sabia Enéias, um dia fará parte da ancestral missão de levar o remo para o lugar onde não existe mar, auxiliando, assim, a completar o outro lado da moeda…

…Conforme dizia Steiner, a dignidade da nossa espécie reside no procurar o conhecimento desinteressado e criar beleza. E entre os filhos de Atenas está a estrada que leva à convicção de que “uma vida não examinada” é indigna de ser vivida…

Prestar atenção a cada passo, cada dobrar de esquina e formar o desenho dos tempos idos.

E vindos…

Na poeira do caminho nos espera o nosso próprio rosto.

Em seu derradeiro examinar.

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