Vilto Reis
PRIMEIRO NELE, DEPOIS EM VOCÊ
Núbia aguardava a troca de turno na guarda à noite para invadir a Casa Piramidal. Fora contratada para roubar a joia mais importante do país, o Totem da Serpente. As mãos suavam, porém a respiração era estável e os olhos atentos. Teria que correr pelo terreno aberto por vinte passos até alcançar o estábulo, o ponto de acesso aos pavimentos superiores.
Enquanto vigiava, um grupo de adoradores do totem causou tumulto na sede de Camara ao depredar um altar da deusa-terra. Fugiram ao notar a chegada dos vigias, experientes guerreiros da Taipan Vermelha. Núbia precisava evitá-los.
O tempo passou, os ânimos se acalmaram e a noite voltou a se calar. Ela alongou os músculos dormentes pelo período que o corpo ficou inerte.
“Vai!”, ordenou a si mesma e partiu.
Correu pelo terreno aberto, aproveitando a troca de turno dos guardas e a noite anuviada. A escuridão era tanta que até ela, dona de olhos habituados ao breu noturno, acabou chutando uma geringonça de lata barulhenta, o que despertou o latido de cães, mais próximos do que julgava. Ao menos, o cheiro dela se disfarçava no fedor da lama cinzenta que vestia como camuflagem. Por segurança, mudou a rota da corrida.
Em vez do estábulo, disparou rente à parede da Casa Piramidal até encontrar o cheiro de sangue. Era ali, entrou.
Os latidos se aproximavam.
Núbia se viu envolta por postas de carne seca penduradas em ganchos que vinham do teto. Pegou a primeira que conseguiu carregar e a jogou para o lado de fora. Os cachorros pararam de ladrar e passaram a brigar entre si. Ela suspirou, não teria que cometer contra um deles um ato do qual nunca se perdoaria. Ao não suportar ouvi-los brigando, jogou mais dois pedaços para os animais maltratados e escravizados pela vigilância.
Retomou a missão, aproveitando a distração de um guarda do pátio interno. Acessou uma escada para o primeiro andar do prédio. Dali para frente, esperando não ter mais nenhum imprevisto, subiu com cuidado, usando as sombras como aliadas. Eram sete andares. O primeiro, ocupado pelos servos, pela cozinha e outros cômodos que garantiam o funcionamento do lugar. O segundo, pelos guardas. O terceiro, pelos guerreiros, homens despertos e capazes de usar a Energia Vital em batalha. O quarto, vazio na madrugada, de dia abrigava as reuniões e conferências administrativas. O quinto hospedava a Ordem do Conhecimento, um grupo de griôs que mantinha memorizado todo o saber histórico e proverbial da história de Camara e também serviam de professores às famílias mais abastadas. Mesmo os povos mais distantes da capital enviavam os filhos das famílias-raízes para frequentar os alojamentos do pavimento por ciclos anuais completos. No sexto andar, o tesouro de Camara era guardado por guerreiros de elite, homens vistos quase como deuses pelos demais. Todos os pavimentos resguardavam salões, áreas comunais e alojamentos, variando de tamanho e opulência conforme as pessoas que ali frequentavam. No último, no entanto, o andar era dedicado quase que por completo a um cômodo, com uma piscina típica de uma casa de banho, adega, mesa de alimentos trocada com frequência, uma única cama capaz de servir a dez pessoas, paredes de vidros por todos os lados, entre outros luxos. Além dele, acomodavam-se outros três cômodos para convidados de honra, separados por um corredor, bem menores que o principal. Cada andar era menor do que aquele que o antecedia, formando a estrutura piramidal.
Obra de outro povo, de outra época.
Núbia avançou ofegante pelas passagens secretas exploradas quando criança, que a levaram ao sexto andar.
Ali se assomava o segundo maior desafio. Ao empurrar o bloco que liberava a parede à frente, estaria no andar do tesouro de Camara e, por consequência, daria de cara com os guerreiros de elite mais temíveis. Antes disso, sentou-se no chão empoeirado e se concentrou no que o mestre Ayusha III insistiu que nunca ousasse fazer.
Era como se pudesse ouvir uma das aulas dele:
“Hum, todos os seres humanos possuem a Energia Vital em si. A diferença dos despertos para os comuns é que os despertos podem acessar as fontes de poder, os comuns possuem um pequeno fio do Ka dentro de si. A morte vem tão logo o fio é rompido. É possível ocultar a Energia Vital, mas não vou ensinar a você”.
Anos depois, ela se perguntaria se ele fazia de propósito esse tipo de afirmação apenas para deixá-la mais curiosa e com vontade de aprender. Vindo de Ayusha III, não duvidava, pois pouco antes da falha que cometeria no Conclave e jogaria seu nome na lama, punindo-a com o bloqueio das fontes de poder, ele acabou ensinando.
Era o único jeito de se aproximar dos guerreiros do estilo Modelador, que concentravam o Ka no sentido intuitivo, sendo capazes de detectar seres vivos ao redor com a percepção avançada.
Núbia se concentrou até romper o filamento da Energia Vital. O coração deu um soco no peito, como a martelada de um ferreiro cansado da forja, virando a ampulheta que determinava o pouco tempo de vida que teria neste estado.
Empurrou o bloco e entrou no corredor do andar.
Como um felino, pisando com a ponta dos pés, moveu-se até encontrar um guerreiro patrulhando. Em vez de evitá-lo, assumiu a retaguarda dele, movendo-se como tal, estacando nas paradas do guerreiro e imitando todos os gestos. Assim que ele virou para outro corredor, ela parou de segui-lo. Avançou furtiva em direção à escada de acesso ao último pavimento. Ao pé da escada, postava-se um guerreiro plantado ali com os olhos arregalados.
O tempo se resumia, acabando.
Precisava respirar fundo para continuar se movendo. Seria uma vergonha para seus ancestrais morrer naquele local, onde tiraram tudo dela e hoje, se entregasse a vida, viraria eterna piada em Camara.
Núbia analisou o guerreiro. Um monólito esculpido pelo treinamento do povo Taipan Vermelha, cujo chefe amaldiçoava só de lembrar. Qual seria o ponto fraco dele? Pensou em jogar uma pedra em outra direção para atrair a atenção do combatente, mas conhecia a função. Se ele abandonasse o posto por qualquer motivo que fosse, seria executado.
O que é mais forte em um homem do que o medo da morte? Fitou o guerreiro de elite com atenção. Notou a corda trançada ao redor do pescoço, o símbolo de duas pessoas que se tornaram companheiros e assumiram a exclusividade um para com o outro. A monogamia era rara em Camara, mas acontecia, vez ou outra. Além disso, as olheiras se acumulavam em bolsões escuros sob os olhos do guerreiro. Um nenê nascera havia pouco e ele não dormia direito fazia dias.
Núbia sacou a corda que trazia na bolsa e a cortou em três pedaços. De imediato, trançou-a e amarrou as pontas. Limpou a lama do rosto com as costas das mãos, tirou a mesma capulana roubada no dia anterior e jogou sobre si, como uma capa, desta vez, sem fingir a corcunda. Preparou a voz para um tom desesperado e saiu do corredor, agitada, em direção ao guarda.
“A criança, a criança! Veja só”, chegou dizendo e mostrando a corda trançada e a ocultando em seguida.
O homem segurou a lança com as duas mãos, assumindo posição de combate.
“Quem é você?”, gritou. “Identifique-se!”
O disfarce falhou? O palpite estaria errado? Teria de descobrir. Antes que seu coração parasse de bater, precisava usar a carta principal do jogo que recebera.
“Veja”, Núbia mostrou a corda trançada e a ocultou com rapidez. “Me mandou aqui. Está morrendo! Você precisa ir”.
“Do que está falando? Vá embora se não quiser problemas”.
Em pensamentos, Núbia rezou a Numonet por um milagre. Precisava de um arremate que o convencesse. Não se intimidou e fez uma jogada ousada. O tempo estava acabando.
“Você não me ouviu? Parece que uma carroça passou por cima. Vai deixar que morra?”
“Que-quem? Meu companheiro? A menina que pe-pe-pegamos para criar?”
Ela agradeceu aos deuses por não ter dito “sua companheira”, um detalhe sutil que teria quebrado a engabelação. Outro detalhe veio à tona. O homem alcançou a cura da gagueira, mas a possibilidade de perder alguém que amava fazia o passado retornar.
O guerreiro deu a primeira fraquejada. Núbia aproveitou a oportunidade e se pôs a chorar, mantendo o silêncio e balançando a cabeça, como se, em uma acusação silenciosa, dissesse que ele não se importava. Não era tão difícil interpretar o papel, bastava pensar na humilhação que sofreu no passado para as lágrimas virem fácil.
“Quem, mu-mu-mulher, me diga?”, o guerreiro de elite suplicou pela resposta.
“Sua filha! Corra, homem!”
“Ma-ma-mas eu não po-posso”, ele largou a lança e levou as mãos à cabeça. “Sou o guarda do-do-do anda-da-dar”.
“Vai deixá-las morrer, assassino?” Núbia resolveu apelar, precisava aumentar a carga emocional. “O que os ancestrais dirão de você? Não seja covarde”.
Ninguém em Camara gostaria de ser lembrado como uma vergonha para seus ancestrais. A linhagem e a origem se erguiam acima de tudo. As palavras foram como uma cotovelada na boca do estômago do guarda, que se encolheu com o rosto retorcido de dor. Ele fitou o chão, olhar perdido, até franzir a testa e retomar a compostura.
Núbia se retesou, percebendo a mudança de expressão do homem ao parecer colocar a cabeça no lugar. Seria esse o fim dela? Desfaleceria ali, indo ao chão, porque rompera o filamento de Ka que a mantinha viva para não ser identificada e não soubera calcular o tempo? Não, não poderia ser. Numonet persistia consigo. Só mais uma vez, repetiu, só mais uma vez, me ajude. Ela olhou ao redor e viu o nome dele talhado no cabo da lança feito uma bênção da deusa. Obrigada, Numonet.
“Ei, espera, quem é você, afinal de contas?, ele perguntou sem gaguejar.
“Não me reconhece, Zamba?”, devolveu a pergunta. “Trabalho aqui, servindo a Guardiã. Seu homem veio a mim e pediu que entregasse o recado. Vá, vá!”
A menção ao nome dele pareceu desarmá-lo.
“Te-tem razão. Só-só-só meu amor sa-sa-sabe-be-beria o no-no-nome de criança que-que-que me de-deram”.
“Não perca tempo, pelo amor de Mahen, homem. Vá!”
O guerreiro deixou a lança jogada e saiu correndo. Era esta a resposta: o que se temia mais do que a morte era perder alguém que se valoriza mais do que a própria vida.
Núbia riu ao olhar de novo para o cabo da lança, procurando ver “Zamba” talhado ali como vira antes, porém o cabo estava liso. Ela engoliu em silêncio e agradeceu à deusa. As palavras ocultas se revelaram apenas para se ocultarem outra vez.
A ladra subiu para o andar de cima, lutando contra as escadas. O tempo se encurtava a cada degrau, com a Energia Vital perto do fim. Só permitiu que o filamento de Ka pulsasse, liberado, ao se aproximar do único guerreiro de elite que guardava aquele corredor.
“De que buraco você saiu?”, ele perguntou, reagindo surpreso ao notar a presença dela tão próxima.
“Será nosso segredo”, Núbia disse. Ele se ruborizou. “Peguei você dormindo, não é? Não importa, vim aqui de madrugada a pedido da Guardiã”.
“Não preciso dos olhos para sentir a presença de alguém”.
“Deu para notar”.
“Esta visita não é autorizada. Qual é a senha para entrar?”
A senha. A maldita senha! Precisava improvisar. Pelo jeito, mais do que imaginava havia mudado nos últimos anos. Ela olhou para os lados, como se um invasor pudesse surgir ali de um momento para o outro, e fez sinal para que ele se aproximasse. Meteu a mão entre as vestes e sussurrou no ouvido dele:
“A senha é… você é burro demais”, ela disse e enfiou uma adaga envenenada na coxa do guerreiro.
Núbia se esquivou por reflexo enquanto ele manejava a lança. Logo os movimentos dele se tornaram lentos, o olhar vacilante e desabou. Era um veneno sonífero que provocava sonhos horríveis, mas se ele não morresse de hemorragia na perna, não teria problemas.
Apalpou os bolsos dele e encontrou o que procurava.
Enfiou a chave na fechadura e girou a maçaneta devagar. Pelo jeito, a irmã não notara a luta no corredor. O quarto jazia num silêncio de madrugada de velório. Núbia entrou alerta para o caso de um ataque surpresa ao passar pela porta, porém nada aconteceu. Os olhos logo se habituaram à falta de luz, e ela se moveu ao notar os contornos da Guardiã repousando.
No caminho à cama descomunal onde a irmã dormia, encontrou um berço com uma nenezinha olhando direto para ela. Ah! Então é este tipo de proeza que a maninha fez nos últimos quatro anos? Bela Guardiã. Teve vontade de debochar de Layla e vê-la erguendo os ombros, encolhendo o pescoço e saindo irritada marchando para falar com Safiya, choramingando como sempre fazia. No entanto, tudo mudou. A ladra fechou a cara, comprimindo os lábios e rumou para a cama da Guardiã, sempre olhando para trás e encarando a possível sobrinha que furava as costas com o jeito que a fitava. Núbia praguejou. Fosse quem fosse, essa criança a denunciaria se chorasse. Olhou para o pano que portava e considerou usá-lo na nenê. Um arrepio no corpo disse a ela que não e meneou a cabeça. E se o sonífero fosse forte para a criança? Não devia dar um motivo verdadeiro para eles a acusarem, era tudo o que desejavam.
Seguiu para a cama da irmã. Era tão bela dormindo que, ao observá-la, uma semente de inveja quis crescer dentro de si. As pessoas sempre as compararam, dizendo que eram parecidas, mas que a mais nova era mais feminina. Mordeu os lábios ao lembrar disso.
Em seguida, tampou a boca e o nariz da irmã com um pano embebido em sonífero. Ela tentou se debater, despertando assustada.
“Você!?”, Layla chegou a dizer antes de perder os movimentos.
Núbia voltou à porta, arrastou o guarda para dentro e a trancou.
A nenê começou a chorar, como se pressentisse o perigo. A ladra se virou para ela duas vezes, pediu o silêncio pondo o dedo indicador em frente à boca. A criança ficou surpresa com o gesto, passando a dar gargalhadinhas. Funcionou. Logo após a saída improvisada, Nubia tirou do alforge um pedaço de carvão. Na parede atrás da cama, um dos poucos trechos sem vidraças cobertas por cortinas, desenhou uma grande espiral, usando toda a envergadura, a marca conhecida da Dama Invisível.
Feito isso, retornou para a irmã. Duvidava que Layla se lembrasse dela na manhã seguinte. Apalpou o pescoço da Guardiã, em busca do Totem da Serpente. Nada. Ergueu a cabeça dela com cuidado, pois o colar que prendia o totem talvez tivesse virado para trás. Nada. Por fim, meteu a mão entre os seios inchados de leite da maninha, procurando ali o alvo do roubo. Nada!
Impossível. O Guardião do Totem vivia para protegê-lo. Pelo uso da joia, jovens eram despertados e treinados para se tornarem guerreiros. Tratava-se do objeto de poder que distinguia Camara como a nação soberana na região. Os idiotas que acreditavam naquilo achavam melhor se sacrificar a arriscar que a confederação ficasse sem o item.
Lá embaixo, alguém badalou os enormes sinos que serviam de alerta para a guarda. Os três toques curtos significavam que um invasor entrara na Casa Piramidal e o protocolo ditava que o primeiro lugar a ser protegido era o andar da Guardiã.
“Droga, Layla! Devia cuidar dessa porcaria, assim como sua mãe sempre fez. Onde está?”
A nenê voltou a chorar, talvez assustada pelas badaladas, querendo a atenção da mãe ou por fome. Quem saberia? E bem agora?
Núbia colocou a mão na testa e jogou para trás uma mecha do cabelo que caiu sobre os olhos. Teriam armado para ela? Por isso, a irmã não despertou com a luta no corredor? O que isso significava?
Em uma última tentativa, moveu o corpo de Layla, virando-o na cama e procurando. Nada, nada, nada!
Titubeou, olhou para o chão e tentou ignorar o choro da pequena, pensando em possibilidades. Começava a ouvir os sons de botas, passos pesados vindos do corredor. Daqui a pouco, todos os guerreiros de elite disponíveis estariam ali.
Esmurrou o colchão macio onde a Guardiã repousava — droga! — e beijou a testa dela antes de ir. Logo se dirigiu para as cortinas e as puxou, pronta a abrir os janelões, no entanto ficou boquiaberta com o que viu. Grades impediam entrada ou saída. Atravessou o quarto, em direção a uma sacada que o outro lado possuía. Toda a sacada era fechada por grades. Era este tipo de pessoa que a irmã se tornara?, chegou a pensar, mas ao ouvir a sobrinha se esgoelando, entendeu.
Deu três passos em direção à porta para fugir por onde viera, mas alguém bateu na madeira pelo lado de fora.
“Guardiã!? Guardiã, alguém invadiu a Casa. Se não responder, vamos ter que entrar. É o único aviso, hein?”
Eles aguardaram um pouco. Contudo, não demorou, derrubaram a porta.