Pedro Rocha Souza
A avenida estira-se, longuíssima, como uma corrente oceânica entre os trópicos… Veículos, veículos, veículos: cardume metálico insensato. O ônibus, leviatã, a devorar de todos os proletários, nós: krills do sistema. Com essa metáfora poética barata, me entrego, deixo-me estar muito desconfortavelmente no assento do 233 TICAN VIA-UFSC, predador de minhas horas.
Sim, deixo-me digerir… Mas não me vejo como os filhos de Saturno… Não, em meu coração não há drama algum: é que esse devorar, que nos parte, reparte, triparte, mói através das mil’e’umas polias dentadas do sistema, já não representa metafísica alguma. E descubro em mim um novo tipo de comunista: o neocomunista, aquele que não crê em futuro algum, e que busca, apenas e tão somente, mitigar a dor dos homens… Esse devorar, é ele apenas o devorar lustroso das máquinas: processamento mecânico, nada mais. Vá lá, é até bom que seja assim: eu não suportaria o desespero metafísico das almas paroquianas…
É noite. Meu olhar já não pode diferenciar os maciços sempre verdes da Ilha, eles agora escusos no meio do negrume. Fosse manhã, no dizer de Bandeira, afogaria meus olhos na mata, no céu, na clara luz no entremeio. E como meus olhos não podem acompanhar a sinuosidade, a verdura de suas matas, volto-me invariavelmente a mim, deserto… Minha mente é tal galáxia confusa de pensamentos, cá e lá cintilam lembranças desconexas: os olhos distantes e seguros de meu avô; como eram arredondadas e peroladas as contas do rosário de minha avó; a expressão de Lena quando se punha a ouvir David Bowie; as fábulas dos livros que li na minha infância (é que ainda hoje sonho com feijões mágicos)…
Entre uma memória e outra, as adolescentes logo à minha frente farfalham risos: são os ventos da juventude. Mais triste que perder as mil’e’uma coisas da vida é perder a esperança que elas lhe satisfaçam… E assim, com os risos a ritmarem as minhas memórias, chego no meu ponto. Desço, e caminho até em casa.
À porta, uma esperança avança e atira-se em meus braços, e eu abraço-a feliz, por fim: amanhã é feriado, não tenho que ir ao trabalho.