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O tempo na poesia de Luiz Renato Oliveira Périco

Johann Heinrich Schönfeld, "Alegoria do tempo" (c. 1630)
Galleria Nazionale d'Arte Antica

Gabriel Santana

Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal em si?
 Thomas Mann, A montanha mágica

Os gregos, criadores de mitos e mundos, tinham duas definições — ou melhor — duas entidades para o que denominamos Tempo em nossa língua materna: Cronos e Kairós.1 O primeiro é mais antigo que o segundo na história do pensamento do conceito.

Nos manuais de mitologia grega Cronos é filho de Gaia e Urano, em outras palavras, Terra e Céu; também diz que castrou seu pai, o que para Hesíodo era um dos sinais de sua inveja do poder paterno. Como conhecia o espírito do parricídio muito bem e não queria terminar sendo refém de tal, tratou de devorar seus filhos à medida que nasciam; assim, começou a ser registrado nas histórias mitológicas, pelos poetas e dramaturgos, a ideia de que o tempo tudo devora, inclusive os seus.

O tempo em Cronos é ordinário, linear, sequencial. Vale lembrar que os gregos antigos não tinham relógio de pulso; para eles, o senhor do tempo era “visto” nas mudanças “do universo, das estações, os deslocamentos dos corpos celestes e tudo que parece viver sob uma espécie de repetição cíclica que pode ser expressa também na cidade, no nível social, por meio do retorno das festas religiosas a cada ano”.2

Mas não só os gregos olhavam para o tempo dessa maneira — quase toda a antiguidade, diríamos. Segundo Mircea Eliade, em O sagrado e o profano, o Homem sempre dividiu o tempo em duas categorias: uma sagrada, ou seja, tempo de plantar, colher, tempo de oferecer sacrifícios; e a segunda sendo o tempo ordinário. Assim, ciclicamente, os homens iam vivendo suas vidas, de colheita em colheita, de sacrifício em sacrifício.

Entretanto, é importante voltarmos ao deus Kairós. Diferente do seu antecessor devorador, aqui, vemos a representatividade da “dádiva”, ou “do tempo oportuno”, como falavam os pitagóricos. Nele não temos o ordinário, o linear; mas sim a “epifania”, “o extraordinário”. É quando o eterno se faz no presente.

Não é à toa que Luiz Renato de Oliveira Périco escolheu tal nome para seu segundo livro. É um poeta dotado de um olhar extremamente singular: indo do lírico ao satírico de uma página à outra. Não poderia ter escolhido um título melhor.

Claro que não encontramos poesias que remetem apenas ao tempo Kairós; veja, por exemplo, o caso de “Os sinos da meia-noite”:

OS SINOS DA MEIA-NOITE

Os sinos da meia-noite
Avisam que um dia termina.
Ou que um dia começa?

(A dubiedade dos sinos
Da meia-noite me atravessa...)

Périco, assim como todo grande poeta, à primeira vista nos traz uma ideia ordinária quando lemos apressadamente. Sabemos que não temos mais uma ideia “abstrata” de tempo, um dia para o outro não acontece mais como antigamente com a chegada do crepúsculo e o surgimento da aurora. Agora, diferente dos antigos, temos relógio, e a meia-noite é o fim de um dia e o início de outro. Sem questionamento, sem abstrações. Estamos tão preocupados com o registro certo que, segundo a ciência atual, um dia dura exatamente 24h56m.3 Nada mais nada menos.

Mas a beleza do tempo poético se encontra na penumbra do tempo Cronos para o Kairós: “A dubiedade dos sinos” sempre nos atravessa. Essa definição arbitrária, que diz ser Meia-Noite a morte de um dia ao mesmo tempo que é o nascimento de outra, nunca será precisa:

É preciso que a tarde morra
Pra que essa noite nasça

(Não tarde, não tarde,
Que essa noite também passa)

Sabemos disso. Os sinos estão a nos avisar. Não será assim também na morte?

Luiz continua sua arqueologia do tempo, agora tratando do paradoxo do presente. Basta olharmos para o caso de “Polaroid”:

POLAROID

não tirem fotografias
não há nada que mereça
mais que menos de um segundo
e que não desapareça

não há nada que mereça
pouco menos que o momento
fotos apenas preservam
o desaparecimento

Esses dois últimos versos nos lembram o poder tão temido de Cronos, o devorador. Se a fotografia é aquela que tenta barrar o poder devastador do tempo, encontramos nela um paradoxo, pois, à medida que tenta preservar o passado, o Kairós surge em “menos de um segundo”.

Nosso mundo contemporâneo, na tentativa de aprisionar o tempo, com relógios de pulso ou nas paredes, mas, também, com gravações e vídeos, apenas nos mostrou que nosso retrato nunca envelhece. Nossa busca implacável pela precisão está nos levando, cada vez mais, a perceber que não sabemos muito bem viver dessa maneira.

Transformamos o tempo presente numa máquina de contar dinheiro, contar sonhos, filhos, pois cada segundo conta, diz-nos Luiz.

Eu entendo que esse livro, acima de tudo, é um chamado à realidade, assim como toda grande obra, pois ele nos assalta o ordinário e mostra que precisamos “aprender com os nossos erros”, mas isso só será possível se largamos a ideia que conseguiremos aprisionar o tempo em relógios, fotografias, gravações. Não será possível — nunca foi.

Digo-te: “aprenda até mesmo agora” — eis o maior ensinamento do Kairós: entender que o presente não tem esse nome à toa.


1 Há também o conceito (Αίων), mas não iremos tratar aqui.

2 Apontamentos sobre a questão do tempo na Grécia: Καιρός, Χρόνος e Αίων. Laura Elizia Haubert. Prometheus, nº 31, Setembro-Dezembro, 2019, p. 54.

3 Alexandre Cherman e Fernando e Fernando Vieira. O Tempo que o Tempo Tem: por que o ano tem doze meses e outras curiosidades do calendário. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 20.

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