Revista de Cultura

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O método Minet

Michelangelo, "A criação de Adão" (c. 1512) (detalhe)
Capela Sistina

Daniel Yago

1. Completou-se um ano da Coleção de meninos mortos, de Pedro Minet, e o livro deixou um rastro de espanto e de sêmen pelo chão, assim como uma freada na roupa íntima de muita gente.

2. Quando olho para minha freada, reparo no vermelho carmesim margeando o marrom glacê, e entendo: meu buraco está chorando. Chorando pelos buracos que deixei, que me fizeram vazio, e de como os preenchi com bile negra e fel.

3. É que, igualzinho a ANOHNI, eu também já fui buraco apaixonado: “I’m a hole in love/I’m a bride on fire” (A noiva em chamas, contudo, pertence ao meu passado).

4. Pasme: eu também já fui menino, e já morri mais de uma vez. Não foi fácil resgatar o cadáver do meu menino morto, mas cá estou, expondo-o num caixão para a fotografia post mortem.

5. As poesias de Minet parecem se organizar em torno de algumas estratégias textuais. A primeira que me ocorre é repetição como variação. Uma coleção, afinal de contas, designa um agrupamento comum de objetos, fatos ou histórias que se multiplicam na variedade de exemplares.

6. Outra estratégia textual é a paródia: a verdade do menino é desnudada enquanto mentira do homem, que o cria para fins de objetificação; cenas da adolescência heteronormativa são mimetizadas e reapropriadas em contextos bichas; há mais de um gênero de poesia sendo expropriado e reconstruído, visando destronar uma ideia monolítica de escritura.

7. Leo Bersani, em “Is the rectum a grave?” argumenta que a sociedade ocidental frequentemente liga a viadagem à morte e à autoaniquilação, literal e metaforicamente, nos discursos médicos e sociais. A principal paródia no livro está justamente em devolver essa aura pestífera aos homens-que-querem-comer-meninos na forma de um cavalo de troia: um belo menino jovem, obstinado em morrer por seu desejo.

8. Minet tem uma coisa Kathy Acker, só que bicha. Assim como a riot writer em A vida infantil da Tarântula Negra, por Tarântula Negra conta sua história através de personificações dos livros que a torturavam e encantavam, o próprio Minet é um personagem sub-reptício de seus poemas, um aglomerado de meninos que ele deixou de ser e aqueles que ele nunca foi, sua autoria apenas mais uma imagem entre outras.

9. Recentemente descobri que Minet é seu nom de plume. Aliás, “descobri” não, recordei-me: quando estava autografando um livro para o próprio, ele tinha me avisado que o pedido chegaria com outro nome, fato que esqueci completamente. Penso hoje que era a minha recusa em quebrar o pacto autoficcional entre Pedro e Minet, entre Mesmo e Outro.

10. Quando conheci Pedro Minet, o proibi terminantemente de desvendar o mistério de suas páginas, revelando-me onde começaria seu eu lírico e onde terminaria seu eu banal. Por sorte, ele é um grande mentiroso. Ou nem tanto, já que aqui ele foi honesto. (Eu que não fui honesto: esta cena jamais aconteceu. Ele a descobrirá ao ler esse trecho).

11. O mistério dos outros eu até respeito, são os meus que eu escancaro: estou roubando a estrutura do Método Albertine de Anne Carson aqui. (Autoria é um troço chato demais). E, como a própria, selecionei aleatoriamente uma braçada de poemas, li diferentes partes de todos eles, e vou comentando-as aqui buscando trazer ordem para aquilo que não há. O valor do blefe aprendi com ele.

12. Mas a sincronicidade é real, e logo abri na página de “Rio Sul Shopping Center”, justo a centerpiece do livro. Se Nowhere do Gregg Araki se passasse no Rio, o roteiro poderia ter sido extraído desse poema. (E daí que 27 anos nos afastam de seu lançamento? Sou escritor, não um relógio).

13. “O shopping tem alma”, diz ele. Transforma línguas, impõe palavras, forja celebridades e revoltas, e sedia violentos amores adolescentes. O que eu não daria para ter vivido um violento amor adolescente gay na minha época de rolezinho. Eu teria sido tanto Arthur quanto João.

14. O próximo é “Shangri-la”, um exemplo do potencial onírico de hologramas de meninos que se dissolvem em confete rosa-bebê aos olhos de uma plateia, e os corações amedrontados regozijam. É o retorno de um amor sem destinatário que retorna em sonho.

15. Não é a única vez que a presumida solidez dos meninos vivos se converte em nada. É a frustração deleitosa do autor aos homens-que-querem-comer-meninos. Em “Amigo Próximo”, o amor não declarado e o beijo interrompido são obrigados a retornar para o que sempre foi: nada.

16. Minet, em sua página de Instagram, gosta de complementar sua escrita com imagens, de maneira a introduzir-nos em uma atmosfera complexa. Ora é Tadzio, ora é Brad Renfro, ora é Pequeno Príncipe: formas caleidoscópicas de meninos belos e trágicos. Impossível não lembrar de Rufus Wainwright em “Grey Gardens”: “Honey I’m a roller concrete clover / Tadzio, Tadzio”.

17. Minha citação favorita do livro está em “Sorria e Morra”: “Menino menino menino menino menino menino menino /menino menino menino menino menino menino menino / menino menino menino menino menino menino de verdade…”. Gertrude Stein teria orgulho de ser roubada por ele, embora o menino não seja é rosa não é uma rosa não é uma rosa. Não de todo, ao menos. Repetição e vazio se unem.

18. Ademais, qualquer número multiplicado por zero resulta em zero.

19. N meninos vezes zero meninos resulta em “Ninguém (I, I, I)”. De que serve desdobrar-se em tantos para ser interessante para quem te dará ghosting em por volta de três dias? A dor de ser ninguém para alguém remete a outra dor, e outra dor, e outra dor, e outra dor, e outra dor, e outra dor…

20. N dores vezes zero meninos (pois estão mortos) também resulta em zero dores. (Matemáticos, não me corrijam). Um mantra de dissolução da existência em buraco, vacuidade, pelo exercício de muita repetição. Variações intermináveis de meninos mortos unidos pela força atroz de um buraco negro no lugar de seus próprios buracos. Ninguém escapa ao buraco somado de tantos meninos.

21. Interrompo meu método Carson para tratar logo aquele que mais amo “Um verdadeiro menino jovem”. Minet pensa em seus ancestrais: Genet, Acker, Breillat (que, por ora, está viva, mas vou matá-la aqui porque quero), sai para perder a virgindade, dança até depois da madrugada e não sente mais nada.

22. O poema vem datado de 2015. Não se sabe se foi escrito nesse ano, ou se suas cenas se passam nesse ano, ou ambas as coisas. Outros poemas, como o seguinte, “Boletim”, também vêm com essa data. Prometo a mim mesmo que não vou perguntar o que houve naquele ano, pois, como disse, respeito mistérios alheios.

23. Inferno, retorno ao método e agora deparo-me com o poema “Aterro”, imenso, tortuoso, um gatilho por página. Uma ciranda violenta de meninos que lembra uma coroa de arame farpado. O poema é bom demais para ser pulado, mas não tenho forças para falar sobre ele. Peço desculpas.

24. Minet e eu nos aproximamos, a princípio, por compartilharmos o gosto por música. Diz ele em seu autógrafo: “Seu gosto musical é impecável”. Claro que é, é igual ao dele. Das 119 músicas citadas em “Sakura”, contei 80 e tantas que eu conheço. Duas bichas narcísicas, portanto: uma potencializando o histrionismo da outra, para a sorte e o gozo do mundo.

25. Olhem, achei mais uma repetição “garganta funda, um buraco, engolindo engolindo engolindo engolindo engolindo engolindo / engolindo engolindo engolindo engolindo engolindo”. Eis uma bela característica dos buracos fundos: sua acústica e seus ecos. Recomendo tentarem se aproximar de um buraco, que pode ser um cano, uma vala, um cu arrombado, e dizer: “Minet minet minet minet minet”.

26. “Eu não ofereço a outra face / Ofereço o cu companheiro”, Pedro Lemebel.

27. Desejo e vazio unidos pelos buracos: “Como você entende algo que não existe? Como você mata alguém que já está morto? Como você machuca alguém que gosta de ser machucado? Como você não é Nada?” in “Boys beware”. Mas também desejo de conspurcar a pureza do menino antes de ser morto: “Desde que me tocaram pela primeira vez eu me vejo mais / Pelos olhos de quem me toca do que os que eu tenho alto no rosto / Você gosta de homem, menino? Me dizem / Não, senhor, eles que gostam de mim” in “Dejanira”.

28. Na altura do último poema (na realidade, um conto à paisana), Minet passa a chamar-se Tomie. E, como a femme fatale de Junji Ito, ele: A. não consegue deixar de desejar; B. não consegue deixar de seduzir, C. não consegue deixar de ser assassinado, e D. uma vez assassinado, não consegue deixar de viver e reviver, como uma praga ou uma hidra.

29. São desejo e morte irmanados como perversas siamesas em um útero apertado demais, em que uma se vê obrigada a comer a outra para sobreviver. Segundo alguma Psicanalista Importante, trata-se de uma fantasia primeva o desejo de incorporação oral do que é bom, e a expulsão anal do que é ruim. (Como se percebe, a Psicanalista Importante não entendeu nada de Minet).

30. Disfarçadamente ou não, a sina de “cada homem matar aquilo que ama”, no melhor estilo de Querelle de Brest, é uma variação do motivo canibal de “cada homem devorar aquilo que ama”. A voragem é, afinal de contas, a imagem última do desejo dos homens-que-querem-comer-meninos. E é um convite para que os meninos mortos assombrem outras vidas e páginas, também.

31. (A praga-voragem de Minet já está em curso. Quem convive com ele, passa misteriosamente a usar mais expressões em inglês, a desejar mais twinks, a querer matá-los, a ver fantasmas. Intitulei tal processo de metamorfose de pedrominetização).

32. Nota Bene: Minet tem apenas um único defeito, que é gostar de Luce Irigaray. Mas é compreensível, pois seus meninos mortos são os vazios não prescrutados dos homens-que-querem-comer-meninos. Mas lembremos que não são apenas buracos: é que seu sexo não é Um, mas muitos, e por causa disso, são confundidos com Nada. Como um eco que se repete por tempo demais até se desfazer em noise. Como uma legião demoníaca de meninos levantando-se dos túmulos, buracos em riste, nos obrigando a desejá-los. Retorno do recalcado, enfim.

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