VegaLight

Afresco de Pompeia (63-89 EC)

Bert Jr.

Já era vegana quando resolveu pesquisar a fundo sobre os alimentos, a fim de variar a composição de suas saladas e, não menos importante, acelerar a queima de calorias, mas de forma saudável. Foi muito gratificante. No processo, Talívida Mara descobriria coisas incríveis sobre hortaliças, legumes, raízes, frutas… De tudo o que leu e ouviu, o que mais a impressionou foram as propriedades de dois vegetais até então pouco consumidos por ela: a alcachofra e o pimentão. “Como”, perguntava-se, “tinha conseguido viver vinte e três anos e meio desconhecendo os benefícios desses dois maravilhosos itens alimentares?” A alcachofra, além de reduzir os níveis de colesterol e açúcar no sangue, combate a anemia e, de bônus, nos livra dos gases intestinais de forma não constrangedora nem agressiva ao meio ambiente, simplesmente evitando as condições para suas sempre inoportunas erupções. O pimentão, por sua vez, além de combater os radicais livres e possuir ação anti-inflamatória, ainda vem em diferentes cores – o que, vamos combinar, é muito fashion – cada uma delas com um sabor particular, podendo ser consumido cru ou cozido. A partir de suas descobertas, foi experimentando cada vez mais com alcachofras e pimentões, que acabaram constituindo o eixo central de seu programa alimentar.

Na academia de ginástica, todos vinham parabenizar Talívida Mara pela publicação do livro que lançara recentemente, intitulado VegaLight: unindo leveza e energia. Duas semanas antes da chegada da obra às livrarias, postara um vídeo de apresentação em seu canal no YouTube, para ajudar a divulgá-la. A partir de então, estava empenhada em gravar uma sequência de vídeos dedicados a demonstrar algumas das receitas incluídas em seu livro. Seriam seis, no total. No primeiro da série, Talívida ensinaria como preparar, em menos de 45 minutos, uma salada de pimentão, alcachofra cozida no bafo, pepino cru, alface, tomate, cenoura ralada, cebola, alho-poró, salsinha e umas folhinhas de hortelã, e de como servi-la, sem sal, acompanhada apenas de água ou chá. Daria dicas de como lavar e picar os alimentos, e de como arrumá-los, em círculos concêntricos, numa tigela côncava, de preferência branca ou transparente, previamente lavada com sumo de limão para torná-la livre de qualquer eventual resquício de impureza, recordando por precaução que, por impureza, se deve entender todo e qualquer resíduo alimentar de origem animal.

Na academia, era inspirador ver Talívida malhando. Especialmente quando levava o cabelo liso, de tom castanho-médio, preso em rabo de cavalo, que oscilava, feito pêndulo, a roçar de leve o dorso delgado, ligeiramente umedecido pelo suor. Tal movimento produzia, invariavelmente, um estado de hipnose coletiva que transformava a todos, independente de sexo, gênero ou crença religiosa, em plateia de fãs. Durante determinados exercícios, a ponta do penteado escorregava, para cima e para baixo, sobre a divisória tácita de glúteos artisticamente perfeitos que o traje de ginástica felizmente delineava. Nada nela era excessivo. Sua musculatura não competia com a sensualidade, apenas estava ali, despretensiosamente, ocupando o lugar da gordura. Suas orelhas já eram brincos, só que feitos de cartilagem em lugar de metal. Seu sorriso tornava redundante qualquer tipo de colar, e, quando olhava de frente, viam-se duas canoas, em formato de amêndoa, transportando favos de mel para algum lugar onde valeria a pena se perder.

Talívida era, portanto, ela própria, a melhor propaganda possível da dieta que criara. Bastava que respondesse, cada uma das dezenas de vezes em que, diariamente, lhe indagavam acerca do segredo de sua beleza: “Sigo a dieta VegaLight, desenvolvida por mim mesma para unir leveza e energia.” Pronto. Estava feita a publicidade. Em torno de quem perguntava outras pessoas iam se aglutinando, fosse no corredor do supermercado, no shopping, na farmácia, no salão de beleza, todos ávidos por ver e ouvir a boneca falante dizer que era só comprar o livro, ali estava tudo explicadinho, e ele vinha até com receitas para ficar esbelta e bonita. As pessoas compravam. É claro que seu público era composto de uma maioria absoluta de mulheres, sonhando se aproximar do ideal estético incorporado pela autora. Mas não somente. O miolo do livro trazia encartadas várias fotos de Talívida, vestida de roupa de ginástica, de biquíni, de jeans colado ao corpo e camisa branca entreaberta, e outras mais, que garantiam uma quantidade considerável de admiradores-compradores masculinos.

Para o público em geral, a bela imagem da autora da dieta dispensava a necessidade de comprovação científica de seus resultados. As aparições de Talívida em pessoa ou nas frequentes postagens em mídias sociais não davam margem a dúvidas sobre o fato de que a VegaLight trazia leveza e energia ao corpo. Como “leveza” e “energia” eram conceitos um tanto sutis para os quais não havia parâmetros estabelecidos nem formas precisas de me dição, dificilmente Talívida seria acusada de propaganda enganosa caso não se lograsse chegar aos resultados pretendidos. Mas quais eram mesmo esses resultados? A autora, cautelosa, só falava de leveza e energia como sendo as metas de seu regime dietético. Subentendia-se, no entanto, que leveza era sinônimo de emagrecimento, e que energia significava boa disposição para enfrentar algum programa rotineiro de exercícios físicos. Embora não fosse este o foco principal do livro, Talívida inserira um capítulo em que sugeria três sessões semanais de ginástica, nos níveis básico, intermediário e avançado, de modo a que não faltasse orientação a seu público também sobre esse ponto.

O foco do livro era a dieta, propriamente dita. Seus princípios eram fáceis de memorizar e de simples aplicação. Regra número 1: sempre fazer constar pimentões e alcachofra na refeição principal do dia, em quantidade não inferior a 25% do volume total dos alimentos a serem consumidos. Regra número 2: incluir proteína vegetal em pelo menos duas das três refeições diárias, preferencialmente no desjejum e no almoço. Regra número 3: concentrar o consumo de frutas na última refeição, a ser realizada entre as 18 e 19 horas, dando preferência às menos calóricas e cuidando de equilibrar as frutas ácidas com as não ácidas. Regra número 4: acompanhar as refeições de chá-verde diluído ou água, bebidos mornos ou em temperatura ambiente. Regra número 5: tomar água em abundância durante o dia. As regras complementares à dieta consistiam em praticar exercícios físicos ao menos três vezes por semana e dormir ao menos oito horas seguidas, começando, de preferência, antes das 22 horas.

Ao longo do livro, Talívida explicava em detalhe suas opções pessoais pelos alimentos e o seu programa semanal de refeições. No desjejum, ela gostava de consumir uma tigela de granola embebida em leite de soja, o que atendia à ingestão de parte do total recomendado das proteínas diárias. Ela mesma gostava de fazer a sua granola, comprando os ingredientes separadamente para misturá-los nas proporções que mais lhe agradavam. Mas isso não era necessário, podendo-se utilizar granolas já preparadas, adquiridas em lojas de produtos naturais. A refeição principal devia ser composta de uma salada, de ingredientes variados, acompanhada de prato quente, o qual, de acordo com o gosto da autora, podia consistir de travessa de vegetais cozidos, com pimentões e alcachofra, ou porção de bife de soja. Na terceira e última refeição deveriam predominar as frutas, mas nada impedia que se consumisse meio prato de salada, desde que contivesse 25% de pimentão e alcachofra. No que se refere à composição do prato de frutas, Talívida tinha bem definidas as suas preferências e exclusões. Banana nem pensar, por ser demasiado calórica. Laranja, somente acompanhada do envoltório de pele branca, para proteger o estômago e estimular o funcionamento do intestino com suas fibras. Tangerina, picada e nunca junto com laranja. Maçã, apenas as de tipo ácido, como a Fuji, e sem casca. Uva, não mais que três vezes por semana. Mamão, importante para garantir o equilíbrio na acidez. Melão, idem. Abacate, muito calórico, mas com ótimas propriedades, devendo ser consumido duas vezes na semana: uma vez em combinação com frutas ácidas e outra, na salada. Frutas vermelhas e roxas, muito apreciadas, sobretudo morango e mirtilo. Limão, usado para dar sabor à água e como tempero para saladas, em substituição ao vinagre.

O primeiro da programada série de seis vídeos no YouTube foi muito bem recebido pelo público, suscitando milhares de likes e inúmeros comentários elogiosos, grande parte dos quais dirigidos à aparência física da autora-apresentadora. Na ocasião, ela tivera o cuidado de amarrar a camisa cinza-claro ligeiramente acima do umbigo, à semelhança dos tops de ginástica, e de pisar sobre um tablado, colocado atrás do balcão de granito onde cozinhava, de modo a tornar seu corpo mais visível, especialmente os quadris e seu irretocável bumbum. Na produção do próximo vídeo, planejava incluir um assistente masculino, de físico escultural, que ajudaria no processamento dos ingredientes e trabalharia com o tronco coberto apenas pelo avental de cozinha. Isso deveria estimular ainda mais a vendagem do livro, que já vinha sendo muito boa. Consultara duas ou três amigas, as quais foram unânimes em apoiar a ideia. Seria maravilhoso observar músculos masculinos aplicados no manuseio de alimentos, sobretudo em posição coadjuvante, sob comando feminino. Betina, sua melhor amiga, tinha sugerido a Talívida que desse ordens secas ao assistente enquanto trabalhavam diante da câmera, e que, ao final, concluísse o vídeo comendo parte do prato que fora elaborado, tendo o assistente postado a seu lado, dois passos atrás, com os braços cruzados, feito estátua. “Vou pensar”, respondeu Talívida, já desaprovando a ideia. Não iria correr o risco de alijar o público masculino, ferindo seus brios.

Na manhã em que ia gravar o segundo vídeo da série, Talívida acordou mais cedo. Depois de passar pelo banheiro, foi preparar sua refeição matinal. Estava sozinha em casa, a empregada só entraria depois de meia hora. Ao chegar na cozinha, percebeu o piso recoberto de flocos de aveia e de milho. Espantada, perguntou a si própria o que poderia ter acontecido para provocar aquele incidente. Como não recordava de haver levantado durante a noite, só podia tratar-se de um episódio de sonambulismo. Pensativa, foi atrás de uma vassoura para varrer o chão. Ao voltar da área de serviço, Talívida se deparou com uma enorme banana postada à sua frente. O choque do susto fez a vassoura escapar-lhe da mão. A banana, que devia medir perto de 1,90 m de altura, encarava Talívida com gravidade e logo a repreendeu, falando através de uma fresta em sua casca: “Os flocos espalhados no piso não são lixo, não, onde já se viu? Trate de buscar amendoim, castanha e semente de linhaça para misturar com os flocos e fazer uma granola. Quero tomar banho de tigela com leite de soja!”, gritou a banana. “Quero fazer esfoliação com granola!!” E, abaixando mais a casca, mudando o tom da voz, numa pose sexy: “Quero rolar na granola, babe…” Talívida estava boquiaberta. Congelara. Nenhum pensamento se movia em sua mente. Estupefata, foi-se dirigindo à despensa, sentindo uma das pontas da casca da banana a empurrar-lhe as costas. Diante das prateleiras, agarrou mecanicamente os sacos e potes contendo os ingredientes da granola a ser em breve fabricada no chão da cozinha. Ao retornar, o local da cena estava limpo e a banana havia sumido.

Talívida correu até o banheiro e mediu sua temperatura com o termômetro. O mercúrio parou em 36,5 graus. Normal. Portanto, não delirava em razão de estado febril. Aquele delírio podia explicar-se, quem sabe, pela ansiedade que precedia a gravação do segundo vídeo da série, o qual viria a introduzir elemento novo, na figura do assistente masculino. A própria Talívida não confiava nessa explicação, pois não se sentia nada ansiosa. Bem a seu estilo, decidiu, então, conferir conotação positiva ao episódio. Delírios desse tipo descarregavam tensões ocultas, nada mais eram que elaborações criativas de temas do inconsciente, coisas do gênero. Por precaução, aguardou que a empregada chegasse para poder voltar à cozinha. Vendo que o piso continuava limpo, pediu-lhe que fosse ao mercadinho ali perto, para comprar frutas. “Ah, e traga umas bananas também”, acrescentou. “Bananas!?”, admirou-se a empregada. “Siiimmm, Vanilda, banana é fruta, não é? Você não tem na sua casa?” A outra concordou, ainda surpresa. “Anda, Vanilda, vai logo, que eu quero deitar a banana na tigela, com granola, e despejar leite de soja por cima.” A emprega deu meia-volta rápido e saiu para atender o pedido insólito da patroa.

Duas horas mais tarde, refeita do susto, Talívida começava a gravação do programa em sua cozinha. O tablado já havia sido instalado atrás da ilha de granito, onde ela demonstraria a confecção dos pratos. Artur estava ótimo de avental branco em contraste com a tez morena, os braços musculosos e depilados à vista, assim como parte do largo tórax. A salada do dia iria incluir lascas de beterraba e cenoura cruas, pepino cru em tiras, rodelas de rabanete, alface-crespa, agrião, tomatinho cereja, cebola, cubos de queijo de soja e tempero verde. Os pimentões e a alcachofra viriam no prato quente, junto com rodelas de batata-doce e cebola, tudo cozido. O assistente preparava a beterraba e a cenoura. Talívida ia começar a cortar um longo pepino cru em tiras. Tinha a faca na mão direita, o pepino na esquerda, sobre a tábua branca de plástico, e encarava a câmera, quando sentiu que segurava algo levemente pegajoso e de consistência mais branda. Ao olhar para baixo, viu que sua mão empunhava uma linguiça. “O que é isso!?”, exclamou. Em seguida, erguendo os olhos cor de mel para a câmera, emendou: “Isto é um pepino, e ele está cru.” Controlando o impulso de desfazer-se daquela coisa grudenta, que se insinuava entre seus dedos, Talívida pensou que urgia fazer algo, tomar alguma atitude que fizesse o embutido mudar para pepino outra vez. Segurando firme a linguiça, mirou a câmera e disse: “Agora, vamos bater o pepino contra a tábua, só para ele amolecer um pouco.” Antes mesmo da primeira batida, a linguiça sumira e o pepino estava de volta. Rapidamente, informou ao público: “Como este aqui já está um pouco mole, podemos dispensar o procedimento.” Evitando olhar para baixo, pôs-se a trabalhar com a faca. Dali a instantes, temendo cortar-se, pediu a Artur que concluísse a tarefa e passou a exaltar as qualidades do pepino. “Um espetáculo para a saúde, com propriedades diuréticas, excelente para prevenir problemas nos rins, fígado, vesícula, mas, vamos ser sinceros, em matéria de sabor, nem se compara a uma linguiça assada!” O operador da câmera parou a filmagem, e ela, se desculpando, pediu uma pausa. “Quer que eu corte essa última fala?”, perguntou ele. “Claro”, respondeu. Fora um lapso.

Quando assistiram ao vídeo no YouTube, as amigas estranharam a parte do pepino em tiras. O comportamento de Talívida parecia diferente do normal, como se estivesse surpresa, ou assustada com alguma coisa. Mas haviam sido apenas alguns segundos, o que não comprometia, em absoluto, a totalidade da gravação. Os pratos haviam ficado ótimos e todas aprovavam o desempenho do assistente de cozinha, impressionante no manejo de tudo que tocava. Talívida sorriu quando se reuniram as quatro, para um chá de gengibre com rosquinha de gergelim, e pôde ouvir, pessoalmente, as avaliações das amigas sobre o segundo vídeo. “O que aconteceu naquela parte do pepino?”, perguntou Betina. “Sei lá, me desconcentrei”, disse Talívida. “Descanse um pouco antes do próximo trabalho de gravação”, recomendou Suzi. “Por que não passar o fim de semana num spa?” A ideia era boa. Talívida agradeceu a sugestão e continuaram a conversa, que girou sobre o conteúdo a constar do terceiro vídeo da série.

Sozinha em casa, Talívida sentiu-se exausta pela primeira vez em muito tempo. Para relaxar, selecionou no smartphone um hip-hop romântico, deixando-se afundar na cômoda poltrona do living. Por que essas coisas estavam acontecendo? Não podia ser normal ser abordada por uma banana maior do que ela, a qual, ainda por cima, tivera a audácia de mandá-la preparar uma granola no chão da cozinha de sua própria casa. E aquela coisa de pepino virando linguiça, e linguiça desvirando pepino? Algo deveras estranho acontecia. Suzi poderia estar certa. Talvez precisasse de repouso. Não era só a pressão do trabalho o que pesava sobre ela, era também o assédio constante do público, as perguntas que lhe faziam, as mãos que a alisavam, as fotos que lhe requisitavam. Sim. Suzi provavelmente tinha razão. Precisava encontrar um lugar onde refugiar-se por um par de dias. Os compromissos não permitiam pausa mais longa, mas, pelo menos, descansaria um pouco. Uma mudança de ares iria fazer-lhe bem.

Decidiu subir a serra. Passaria o final de semana respirando o ar fresco e puro da montanha, numa cidadezinha pitoresca. Procuraria uma pousada com cardápio adequado a seu regime alimentar. Para não chamar a atenção das pessoas, inventaria uma aparência diferente, um novo look. A ideia a animou e foi logo às compras. Nas lojas, escolheu moletons, calças e camisetas folgadas, que ocultariam suas formas. Trocaria a sandália de salto oito de todos os dias por um par de sapatos esportivos. Não usaria nenhuma maquiagem. O cabelo deixaria solto, sem pentear. Dois dias depois, saía para o fim de semana na serra trajando um conjunto de moletom composto de blusa verde-claro e calça verde-escuro, tênis de lona cor-de-laranja, boné e óculos de sol. O zelador do edifício, acostumado a vê-la quase diariamente, teve de aproximar-se para identificar a jovem que colocava uma enorme bolsa de viagem no porta-malas do carro. “É a senhora, dona Talívida?”, perguntou, ainda em dúvida. “Não”, respondeu a moça, alegremente. “Sou a irmã gêmea. Ela não lhe contou? Não? Mas ela me falou do senhor, seu Jeremias. Prazer. Me chamo Talípida”, informou, sorrindo. “Ela me emprestou o carro para passar o fim de semana fora da cidade.” “Aaah! Tá bem então, dona Talípida. Vá com Deus, e boa viagem!”

No caminho rumo à serra, parou para comer num restaurante de beira de estrada. O local tinha boa estrutura e o restaurante funcionava em sistema self-service, com bufê variado e balcão de churrasco, em que o freguês podia pedir o pedaço de carne que desejasse. Havia várias pessoas almoçando. Ao passar entre elas, escolher uma mesa e sentar-se, ninguém pareceu notá-la. Os olhares eram rápidos, normais, não permanecendo fixos dentro de expressões de surpresa, curiosidade ou encantamento. O desapontamento inicial com a falta de reação do público foi, aos poucos, substituído por uma sensação prazerosa de descaso com a atenção dos outros, e ela ia recordando como era experimentar aquele relaxamento natural somente propiciado pelo anonimato. Encomendou uma limonada. “Com açúcar?”, perguntou a garçonete. Como de hábito, Talívida respondeu negativamente. Porém, no momento em que a garçonete dava meia-volta, Talípida chamou-a e, num sorriso, disse: “Mudei de ideia, com pouco açúcar, por favor.” A seguir, levantou-se e dirigiu-se ao bufê, onde montou um prato com arroz, feijão-preto, farofa de ovo, purê de batatas, couve mineira e, por fim, pimentões cozidos, em respeito à irmã. Alcachofra não havia. Com certa ansiedade, foi dar uma espiada no balcão do churrasco. Meio inebriada com o aroma dos assados, observando os pingos de gordura que se desprendiam das peças de carne fincadas nos espetos, pressentiu a inevitável pergunta do assador: “A moça vai querer o quê?” “Uma linguiça, por favor”, disse Talípida. Não permitindo que o assador a picasse, transportou-a inteira para a mesa. Ao sentar-se, imediatamente talhou um pedaço da linguiça e o levou à boca. Aquela rigidez, colocada sob a pressão dos dentes, revelava-se tenra e úmida, e entregava às papilas gustativas um sabor não encontrável nas coisas do reino vegetal. Na segunda prova, Talípida suspirou. Na terceira, ao agregar um pouco do purê de batatas à garfada, cerrou os olhos e deu novo suspiro, mais prolongado que o primeiro. Ao finalizar a linguiça, Talívida entrou em cena e falou mais alto, reprimindo o desejo de repetir a dose. Ela sabia que seu organismo, há mais de três anos sem consumir nenhum tipo de carne, reagiria mal a qualquer exagero. Ademais, essa pequena transgressão constituía, tão somente, um gesto isolado de cortesia com a irmã gêmea, que aparecera no fim de semana para visitá-la. Pagou a conta, sem nada mais consumir, e seguiu viagem.

Pinhal dos Cumes era uma cidadezinha deveras agradável. Não faltavam casas de chá, cafés, tavernas aconchegantes para visitar, assim como passeios ao ar livre para se fazer. Também havia uma feirinha tradicional de produtos artesanais, colorida e simpática, que Talípida percorreu após instalar-se na pousada. À tardinha, quando tomava uma xícara de chá-preto com uma fatia de bolo de milho recheado de chocolate num dos locais charmosos da cidade, Talípida recebeu um telefonema. Queriam falar com Talívida. “Sim, pode falar”, respondeu ela. A chamada procedia de uma grande emissora de televisão. Desejavam convidá-la a participar do programa de variedades de Lunarda Mendes, o qual concentrava a maior fatia da audiência no horário de meio-dia. Talívida seria entrevistada por Lunarda durante 15 minutos acerca de seu livro e da dieta VegaLight. Se o resultado fosse bom, poderia ser chamada a participar também do tradicional programa matinal de receitas e dicas de bem-estar, cujos índices de audiência vinham declinando ultimamente. Segundo as fofocas, a emissora buscava identificar alguém para a função de coapresentadora, com vistas a catalisar o processo de renovação do programa.

O telefonema deixou Talívida empolgada e com vontade de ir jantar em algum restaurante, a fim de comemorar com ela mesma. Não tocou mais no bolo de milho com chocolate e saiu dali para comprar roupas que combinassem com ela enquanto o comércio ainda estava aberto, pois não iria jantar fora vestindo moletom e tênis. À noite, Talívida descobriu que o único restaurante da cidade com cardápio vegetariano só abria para almoço. Por isso, teve que se contentar em comer num restaurante comum, onde pediu filé de peixe grelhado ao molho de alcaparras, acompanhado de batata soufflée e aspargos. Para beber, instruiu o garçom a que lhe trouxesse uma garrafinha de água mineral natural e, num copinho à parte, sumo de limão. “Ah!”, disse ela, “não precisa trazer o filé de peixe, apenas o molho de alcaparras e o acompanhamento.” O garçom anotou tudo, revirou os olhos e deu meia-volta. Quando ele retornou, trazendo a bebida, Talívida pediu uma cerveja. Era para Talípida, que reaparecera e insistia em brindar com ela. Talívida concordara com o brinde, mas se mantinha firme em não permitir que o peixe fizesse parte do jantar. Cada qual com sua bebida, as gêmeas brindaram ao sucesso da futura entrevista.

De volta ao quarto da pousada, Talívida se preparava para deitar-se quando decidiu se despedir de Talípida. Uniu as palmas das mãos, em sinal de prece, para realizar o rito mental de despedida. Haviam passado um dia maravilhoso juntas, praticado umas transgressõezinhas alimentares, comemorado uma boa notícia, mas já era hora de Talípida se retirar. Poderia voltar, se quisesse, dentro de um ano, ou dois, para outra visita rápida. Sabe-se lá o que iriam comer juntas da próxima vez, talvez um bife de picanha… Ela soltou um risinho nervoso ao pensar na possibilidade. “Imagine”, disse para si mesma, desfazendo daquele pensamento absurdo, “em um ano vou estar bombando na televisão, cada vez mais firme na VegaLight.” Então retornou à prece, apressando-se em concluí-la para que pudesse dormir antes das 22 horas. “Adorei te ver, Talípida. Agora anda, vai embora. Ficarei torcendo, de longe, pela sua felicidade. Adeus, irmã!” E desuniu as palmas das mãos, enviando um beijo com a ponta dos dedos, o qual flutuou no espaço do quarto, iluminado apenas pelo abajur da mesinha auxiliar. Em seguida, desligou a luz e acomodou-se na cama macia, feliz com a evolução das coisas. Por volta das duas horas da manhã, Talívida acordou sufocando, com as cobertas quentes e molhadas. Por que suava tanto? Respirar era difícil, o oxigênio não chegava aos pulmões. Pressentia haver algo sobre sua cabeça, que não eram as cobertas, impedindo a circulação do ar. Movendo as mãos na escuridão para tentar saber do que se tratava, sentiu uma goma grudenta aderir em seus dedos. Desesperada, ela tateou em volta, à procura do botão para acender o abajur. Quando a luz, amarelada e fraca, iluminou o ambiente, a coisa grudenta revelou sua verdadeira natureza. Era sob uma camada de queijo derretido que Talívida se encontrava, respirando dentro de uma bolha onde o ar já estava viciado. Tomada de angústia e pavor, debateu-se, num esforço brutal para remover ao menos parte do queijo que a recobria. Desferindo golpes frenéticos com os antebraços, conseguiu abrir um buraco, o que lhe permitiu, enfim, ter acesso à atmosfera do quarto. Enlouquecida de calor, ergueu o corpo para desfazer-se das cobertas, quando então percebeu que não eram mantas e lençóis que a recobriam, mas tiras de massa mole e quente, lambuzadas de molho branco. Estarrecida, Talívida compreendeu que tinha despertado no interior de uma lasanha. “Socooorrrooo!!!”, gritou. E logo berrou, ainda mais alto. O senhor do quarto vizinho veio bater à porta, para saber o que se passava. Lutando para libertar-se das pegajosas línguas de muçarela, verdadeiros elásticos que a mantinham ligada ao leito, Talívida foi ao chão, tentando arrastar-se em direção à porta, enquanto gritava, chorosa: “Tem uma lasanha me atacando, por favor, me acuda!” “Uma o quê?”, perguntou o senhor, incrédulo. “Uma lasanha, uma lasanha assassina… Está me atacando, socorrooo!” “Você está sendo atacada por uma lasanha assassina, é isso? Bom, nesse caso, vou pedir à recepção para chamar a clínica psiquiátrica. Vá dormir, garota!” Talívida percebeu, aterrorizada, que o homem se afastava da porta. Talvez, se conseguisse chegar até o chuveiro, pudesse ligar a água quente e liberar-se de todo o queijo e molho branco grudados em seu corpo. Com esse plano em mente, mudou de direção e rastejou, de forma lenta e dolorosa, até o banheiro. Chegando lá, reuniu suas últimas forças e, num espasmo, logrou deslizar para o interior do box, no que foi ajudada pelo molho branco que empapava o seu pijama. Lá den tro, esticou, com dificuldade, o braço direito e ligou o chuveiro. “Morraaa!!!”, gritou para o resto de lasanha que ainda havia grudado nela. Para seu desespero, o que saiu do chuveiro não foram jatos de água, mas uma chuva de carne moída junto a um líquido vermelho. “Molho à bolonhesa!”, exclamou, chocada. E estava certa. A lasanha era mista.

Depois de alguns minutos, a administração da pousada abriu a porta do quarto com a chave reserva. Encontraram Talívida desmaiada, com a água do chuveiro caindo sobre seu corpo. Felizmente, havia ligado a torneira da água fria. Quando despertou, estava numa clínica, o aparelho de soro acoplado ao braço esquerdo. “O que houve?”, perguntou ela à enfermeira, com voz pastosa. “A senhora teve um desmaio no banheiro do quarto.” “E minha irmã, onde está?” “A senhora tem irmã?”, surpreendeu-se a enfermeira. “Ninguém nos informou. Fizemos contato com a pessoa que a senhora indicou na ficha da pousada. Ela está a caminho, não se preocupe. Agora, peço que tente dormir um pouco mais. A senhora precisa repousar. O soro que estamos administrando contém um sedativo leve, que vai ajudar no seu descanso”.

Betina subiu a Pinhal dos Cumes para descer no dia seguinte, acompanhando Talívida em seu retorno à capital. Dirigiram devagar, um carro atrás do outro, até o destino final. Naquela noite, Talívida dormiria na casa de Betina. De manhã, voltou ao seu apartamento, onde Vanilda a esperava com um caldo de ervilha quentinho. Aos poucos, foi recordando o que sucedera duas noites atrás, na pousada. Lembrou da lasanha em sua cama, do queijo elástico que a prendia, do pijama empapado de molho branco morno e, por fim, da chuva de bolonhesa descendo do chuveiro. Tudo tinha sido tão real. Gritara de verdade, clamando por ajuda. Por sorte, não a haviam internado numa clínica psiquiátrica. O vizinho de quarto, ao que tudo indicava, havia sido discreto, nada revelando sobre a história da lasanha assassina. Os outros hóspedes provavelmente permaneceram adormecidos durante o episódio, ou acordaram com a gritaria e não entenderam nada. O fato é que isso não podia seguir assim. Tinha que se preparar para a entrevista na televisão, marcada para dali a três dias. Definitivamente, não podia correr o risco de sofrer uma dessas crises na frente das câmeras, num programa ao vivo. Isso acabaria com a sua imagem.

Depois de muito refletir, Talívida resolveu chamar Talípida para uma conversa. De alguma maneira, aquela gêmea, que emergira de repente, poderia estar relacionada com o que vinha acontecendo de estranho em sua vida. Seguindo sua intuição, pediu a Vanilda que preparasse uma lasanha mista, de molho branco e à bolonhesa, para o jantar. “A senhora está se sentindo bem, dona Talívida?” “Estou sim, Vanilda. É para uma convidada especial.” “Ah, bom!”, suspirou Vanilda, aliviada. “Pode deixar, vou fazer no capricho. Sua convidada não vai esquecer nunca dessa lasanha.” “Tenho certeza que não”, disse Talívida, pensativa.

À noitinha, depois que Vanilda já havia ido embora, acendeu as velas sobre a mesa de jantar, onde o belo prato de lasanha ocupava posição central. Serviu duas taças de vinho branco, bem frio, o que, para ela, era uma raridade, pois quase nunca tomava bebidas de teor alcoólico. Falando em voz alta, dirigiu-se a Talípida. “Boa noite, minha irmã! Que bom ter você aqui comigo de novo. Quero me desculpar por ter interrompido a sua visita de modo tão abrupto. Acho que me comportei de forma egoísta ao tentar excluir você de um acontecimento importante na minha vida profissional. É que a sua presença me faz me sentir um tanto insegura.Você sabe, eu sou vegana, vivo da minha imagem, dos produtos que crio em torno desse meu estilo de vida. Já você, Talípida, você age sem tanta disciplina no que se refere à alimentação, e também no que diz respeito à aparência. Mas eu quero dizer que admiro muito você, e te acho muito linda nos teus trajes folgados, com o teu look casual. Sinto a tua energia como muito leve, relaxada, descontraída. Em certo sentido, talvez você seja mais leve do que eu, e goze de tanta ou mais energia. Por isso, eu quero propor que a gente encontre um meio de vivermos as duas juntas. Eu te respeitando, você me respeitando. Por exemplo, essas alucinações. Cada vez que eu tenho uma, só volto a me sentir tranquila depois de consumir o que apareceu na minha frente durante o delírio. Foi assim com a banana com granola, com a linguiça e, agora, com a lasanha. Proponho que você me indique, com antecedência, qual vai ser o seu cardápio na semana. Duas refeições semanais bastam pra você ficar satisfeita? Três? Ok, três refeições, então. Um dia no fim de semana para sair com o seu look, outro com o meu, combinado? Durante a semana, eu tenho que me produzir de acordo com o meu trabalho. Você entende, não é? O quê? Nosso trabalho? Como assim?” Talívida permaneceu em silêncio alguns minutos, como se escutasse uma voz, uma música, um som inaudível aos ouvidos normais. Depois sorriu, exclamando: “Interessante! Pode ser… Prometo pensar nisso. Agora, um brinde a nós duas, irmãs e amigas para sempre!” Depois dos dois goles de vinho, passaram a servir-se e a degustar suas respectivas refeições. Talípida, a lasanha mista, que estava realmente divina. Talívida, um prato de frutas, equilibrado entre ácidas e não ácidas.

Nos dias e noites que se seguiram, Talívida não sofreu mais nenhum sobressalto. Talípida apareceu na quinta-feira, véspera da entrevista, e ajudou-a a relaxar, levando-a para um passeio no parque. Na bela manhã ensolarada, de temperatura amena, andaram de bicicleta, Talípida de moletom esportivo, tênis, boné e óculos escuros. Em casa, escutaram baladas internacionais e um pouco de sertanejo universitário. Talípida, que cultivava o hábito da leitura, começou a ler um livro eletrônico sobre a arte da culinária saudável, baseada no princípio da combinação harmoniosa dos alimentos, sem excluir nenhum do cardápio. Cortes magros de carne, aves e peixes, grelhados ou refogados com pouquíssimo óleo, constituíam fonte rica em proteína e favoreciam o uso criativo de temperos variados. Havia uma infinidade de acompanhamentos vegetais possíveis para a proteína animal: Talípida tinha preferência por compor a refeição com uma fonte de carboidrato – arroz, batata-doce ou inglesa, mandioca, massa – e uma combinação de vegetais crus e cozidos. Adorava sucos naturais, sendo que nos de sabor ácido, ou muito adstringente, colocava um pouco de açúcar. Um copo de cerveja, para acompanhar um bom assado, de vez em quando vinha bem, assim como uma taça de vinho no jantar. Talípida também praticava exercícios físicos, mas gostava de variar. Caminhadas, ciclismo, natação e pilates eram os seus preferidos. Talívida estava encantada com os gostos da irmã gêmea. “Somos muito complementares”, pensava, sorrindo.

Na sexta-feira, chegou no estúdio de televisão uma hora e meia antes da entrevista no programa de Lunarda Mendes. Para a ocasião, vestia uma camiseta curta e justa, azul-celeste, jeans e sandália marrom-telha. Trazia o cabelo preso em trança, que lhe caía sobre o ombro, acima do seio esquerdo. Enquanto era maquiada, a assistente de produção veio falar da dinâmica da entrevista. Lunarda era muito objetiva e gostava de respostas sinceras e diretas. Teria 15 minutos, aproximadamente, para dar o seu recado. Em suma, nada que Talívida já não soubesse.

Vistosa nos seus quarenta e muitos, Lunarda Mendes colocou a entrevista na segunda metade do programa, imediatamente antes do encerramento. Chegada sua vez, Talívida ouviu a apresentadora chamá-la e foi até lá, sentar-se na poltroninha de couro sintético creme, uma de frente para a outra. “Essa moça bonita que temos aqui conosco”, começou Lunarda, “se chama Talívida Mara e acaba de lançar um livro sobre uma dieta, denominada VegaLight, da qual é a criadora. Incrível isso, Talívida! Quem diria que haveria espaço para um capítulo light dentro do veganismo, não é mesmo?” Talívida cumprimentou a entrevistadora, assim como o público telespectador, e, indagada sobre no que consistia a dieta, explicou, rapidamente, os seus princípios básicos. Falou de leveza e energia, depois deu pinceladas sobre as receitas do livro e o programa de exercícios físicos. “Qual a sua cor preferida de pimentão?” “O meu preferido é o amarelo”, respondeu a entrevistada sem hesitar, “muito rico em vitamina A.” “Cru ou cozido?” “Gosto das duas formas, mas, se tiver que escolher, cozido. O pimentão cru pode ser um pouco indigesto”, afirmou, “sobretudo o verde, por isso não convém exagerar. Quando cozido”, prosseguiu, “torna-se ligeiramente adocicado e é de mais fácil digestão.” “E a alcachofra, te livrou dos gases?”, disparou Lunarda. Após um risinho curto, Talívida respondeu que sim. “Todos nós podemos nos beneficiar da alcachofra, nesse e noutros sentidos também.” Era evidente que as respostas claras, informativas e bem-humoradas de Talívida agradavam à dona do programa. “E essa coisa de não poder comer nada de origem animal, como é isso, de onde vem, para onde vai?”, questionou Lunarda. “Essencial essa pergunta”, disse a entrevistada, emanando maturidade. “Nós, veganos, queremos ter uma relação de respeito, não de opressão, com os animais. Não nos sentimos confortáveis carregando sobre os ombros a responsabilidade pelo sofrimento de outros seres, capazes, assim como nós humanos, de sentir dor, de desenvolver afeto, e que têm um nível razoável de consciência a respeito de si mesmos e do ambiente em que vivem. Não gostamos de pensar na brutalidade envolvida na criação e no abate de seres sensíveis e indefesos, que se sacrificam aos milhões, todos os dias, enquanto seguimos tornando o mundo cada vez mais superpovoado e ecologicamente desequilibrado. Esse sacrifício nos parece ainda mais brutal por ser desnecessário, já que podemos nos alimentar perfeitamente de outras maneiras, que são até mais saudáveis.” “Então”, assinalou Lunarda, “em síntese o veganismo é um movimento de fundo ético, não apenas outro tipo de dieta à disposição das pessoas.” “Sim”, disse Talívida, “o veganismo se pauta por essa ética que eu mencionei e vem se afirmando, cada vez mais, como uma opção nutricional saudável. Há um campo enorme a ser explorado no que se refere ao desenvolvimento de receitas, cardápios e programas alimentares dentro da linha geral do veganismo. A VegaLight representa uma contribuição nesse campo, e eu me sinto muito gratificada ao saber que  mais e mais pessoas têm se interessado pela minha dieta.” “Também, não é para menos”, exclamou Lunarda num close para a câmera, “quem não gostaria de ter essa aparência, não é mesmo?” Talívida sorriu e emendou: “Cada um tem a sua. A VegaLight é apenas um dos fatores que podem influir para que as pessoas estejam felizes em ser quem são.  Sabe, Lunarda, eu descobri, recentemente, que a diversidade é um dom, que faz de nós, humanos, uma espécie incrível. Seria uma pena se toda essa pluralidade de caras, corpos, cores, ideias, crenças, fosse eliminada em nome de um padrão genérico para cada uma das dimensões de nossa expressão individual. Para compreender isso, tive que viver, no plano psíquico, algumas experiências um tanto alucinantes… Estive em situações que, meu Deus, não desejo repetir, nem recomendo a ninguém. Mas superei essa fase, e, com a ajuda da minha irmã gêmea, aprendi que, tão ou mais importante do que acreditar em algo, é respeitar o outro com as suas crenças, entender as suas fundamentações, pois em quase tudo há alguma sabedoria. Se existir respeito, e ele for recíproco, mesmo que não concordemos com uma determinada posição, é possível, e saudável, conviver harmoniosamente com a diferença.” “Você tem uma irmã gêmea?”, admirou-se Lunarda. “Como ela se chama?” “O nome dela é Talípida Meri. Somos idênticas na aparência, mas temos looks, gostos e crenças bem diferentes.” “Não me diga que ela come carne?”, perguntou a entrevistadora. Talívida riu. “Sim, come. É a companhia perfeita para um churrasco. Aliás, não só para um churrasco, Talívida adora comer e come de tudo. Mas ela também se preocupa em manter-se saudável. Pratica atividades físicas e tenta moderar no apetite. O que eu quero dizer, aqui, é que eu amo a minha irmã. Te amo, Talípida, viu?”, declarou, o olhar fixo na câmera. “E isso, gente, que fique bem claro, está acima das diferenças em estilos e gostos. Se ela quiser que eu prove um assado, vou provar. Uma lasanha à bolonhesa? Vou provar. Se ela pedir que eu vista um moletom com tênis, vou vestir. Não podemos esquecer o que vem primeiro nesta vida. E, para mim, do modo como penso hoje, o afeto pela minha irmã, e também o carinho e o respeito pelas outras pessoas, precede o respeito pelos animais, por mais ternos e fofos que sejam”.

A entrevista fora um sucesso. Ao final, Lunarda indicara a possibilidade de que também Talípida fosse entrevistada por ela. Em tom divertido, Talívida respondera que conversaria com a irmã. O nome da criadora da VegaLight passou a ser cotado para ocupar a nova posição de coapresentadora no programa matinal da emissora, voltado a temas relacionados a culinária e bem-estar. Essa perspectiva a agradava bastante, mas procurava controlar a ansiedade, evitando nutrir demasiadas expectativas a respeito. No momento, se dedicava a tocar em frente a série de vídeos de demonstração das receitas de seu livro. Além disso, estava ajudando a irmã a desenvolver um projeto. A ideia seria abrir um canal próprio de YouTube para Talípida e lançar ali um programa semanal, em que a gêmea apresentaria experiências divertidas e saudáveis. Um churrasco de peixe, uma festa dançante numa garagem subterrânea, um passeio noturno de bicicleta na praia, um sorvete no terraço de um edifício bem alto, coisas assim, ao mesmo tempo simples e diferentes, ao alcance de todos. O objetivo era dar ideias de como se pode quebrar a rotina de forma criativa, buscando viver cada momento intensamente. Talívida Mara e Talípida Meri divertiam-se a valer discutindo o projeto, enquanto saboreavam uma porção de alcachofras ao molho de beterraba e iscas de filé ao gorgonzola. Respectivamente, claro.

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Grande Mar Oceano

“Julgava que há muito estivesse morto em algum lugar do grande mar oceano”

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