The Brown Bunny, de Vincent Gallo

The Brown Bunny (2003)

Conrado Rosa

A Miguel Forlin

Como abordar um filme? Essa é a pergunta que tenho feito a mim mesmo desde que comecei a estudar cinema (há uns quatro anos), mas não encontrei a resposta precisa, satisfatória, definitiva que gostaria. É inerente aos objetos serem infinitamente maiores do que qualquer coisa que possamos descrever a respeito deles. A tarefa, portanto, a que me propus ao escrever a respeito desse filme — e, mais do que isso, tentar escrever brevemente a respeito da vida a partir dele — vai muito além das minhas capacidades. Mas não hesitarei. “Pois”, disse Borges, “a pessoa lê o que gosta — porém não escreve o que gostaria de escrever, e sim o que é capaz de escrever“…

Se isso é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

Shakespeare, Soneto 116

Um homem deve atravessar o país para chegar a uma corrida de motos. Ele pega sua van e dá início à viagem, mas espera reencontrar o seu único amor. Há uma estrada e o pôr do sol. A câmera acompanha o seu olhar de dentro da van. Então ouvimos uma canção — mas não como as demais (é a voz de sua alma). A dor do mundo toma forma; passa para a imagem. Estamos dentro do coração desse homem, mas não há fim na estrada.

A natureza — repetitiva pelas diversas cenas de viagem que o compõem; contemplativa pela observação que faz do mundo e pela duração de seus planos; onírica pela composição da imagem fotográfica; e temporal pela concretude do passado na vida do protagonista — de The Brown Bunny (2003) torna-o, em algum sentido, uma experiência interior. No entanto, os mecanismos internos do filme não corroboram uma falsificação do real, como parte da crítica apontou; ao contrário, devolvem ao real o que lhe é próprio. Gallo aposta no mundo, com todas as suas superficialidades e contradições; sobreviver é agarrar-se a ele — quer escutando o rádio, quer acelerando a moto, não importa.

Em Two-Lane Blacktop, filme de Monte Hellman, a corrida de automóveis é tanto um meio de salvação quanto de alienação social para um de seus personagens; mas a sua devoção também é o seu fim, pois culmina — em uma das cenas mais representativas da história do cinema — na combustão da própria película durante a última corrida. Vincent Gallo mencionou que, originalmente, a cena final de The Brown Bunny (que foi exibida no festival de Cannes mas depois foi alterada por decisão exclusiva do diretor, que não havia finalizado a montagem do filme) mostrava o suicídio de seu protagonista durante a corrida de motos. Ambos os filmes podem parecer que se assemelham, mas na verdade se distinguem. The Brown Bunny mostra o que Two-Lane Blacktop omite. Nunca conheceremos o personagem de James Taylor, mas conhecemos Bud Clay.

Eu não tinha um roteiro definido para o filme, mas apenas algumas anotações e páginas soltas. Já o tinha passado muitas vezes na minha cabeça, durante vários anos, mas sem nenhum roteiro. Havia feito o mesmo com Buffalo ’66 anos de anotações e ideias e de contar às pessoas a história como se ela estivesse pronta.

Eu precisava de uma ajuda especial para transformá-lo em roteiro, mas estava totalmente perdido. Mesmo sem o roteiro, passei a planejar a filmagem de The Brown Bunny e a contar a história às pessoas.

John Frusciante foi a primeira pessoa a quem contei. Fiz isso várias vezes, cada vez um pouco diferente. Ele era o meu único público. Era o bastante para mim. Perguntei se ele poderia criar a trilha sonora do filme e ele aceitou. Foi então que pude realmente enxergar o filme.

John é uma pessoa muito ativa e tão logo falamos sobre a música ele já começou a me dar ideias. Várias surgiram. Finalmente, consegui colocar The Brown Bunny em forma de roteiro para acompanhar o John. Ele foi o primeiro a ler o roteiro de The Brown Bunny. Depois disso, vieram mais músicas. Comecei a produção de The Brown Bunny a partir da emoção que tive ao ouvir a música do John.

A van preta em The Brown Bunny teve vários usos. Era, é claro, o carro de filmagem, o carro do filme. Também foi usada para transportar todas as câmeras, luzes, rolos de filme, equipamentos diversos, minha pequena equipe e a motocicleta. Três de nós íamos na frente, enquanto eu dirigia e controlava o CD e o rádio (levamos conosco um CD com as músicas que ele havia criado para o filme). Todos os dias eu ouvia as músicas do John enquanto me filmava na van, e todas as noites, viajando pelos Estados Unidos, ouvia suas músicas repetidas vezes e pensava no filme. É difícil explicar como e por que, quando o filme foi feito, não incluí as músicas do John Frusciante. De certa maneira, é inexplicável. No entanto, eu fiz um filme para a música do John e o John fez música para o meu filme.

As cinco músicas que John Frusciante compôs para The Brown Bunny talvez não sejam tão belas como “Beautiful”, de Gordon Lightfoot, ou sublimes como “Milk and Honey”, de Jackson C. Frank; ainda assim, funcionam como síntese, pois condensam o próprio espírito da obra. A música de Frusciante nos diz tudo.

É a música silenciosa do filme. A música do interior do filme. Da parte que não pode ser vista. Da parte que estava lá antes de o filme ser feito. A dor é uma grande motivadora. A música é um louvor à tristeza para um filme que mostra uma tristeza crua, sem os elementos diluidores convencionais, como o sentimentalismo e a compaixão.

Vincent e eu achamos que as músicas e o filme eram uma coisa só. Eram tão semelhantes quanto gêmeos. […] São algumas das músicas de que mais gosto entre aquelas que já escrevi.

Sou profundamente grato por ter participado da produção daquilo que considero um filme pioneiro, e acredito que a posteridade o provará um clássico do cinema.

Se há apenas uma mancha na história de The Brown Bunny, ela é, sem dúvida, a reação pública que uma de suas cenas provocou. Próximo ao fim do filme, Daisy aparece para Bud num quarto de hotel como uma memória e ambos transam de frente para a câmera. Gallo não está interessado na gratuidade da imagem sexual em sentido apelativo (o que é banal a uma sociedade pornográfica, vazia e dessensibilizada como a nossa e à qual, por isso, não seria capaz de causar espanto). Trata-se, na verdade, de um embate espiritual. Na cena, Gallo dá forma a um medo profundamente masculino: o da transitoriedade do amor, de nunca possuí-lo completamente e de perdê-lo para sempre. A culpa de Bud é moral.

O pecado de Vincent Gallo é a sinceridade.

Lembro-me das únicas férias que tive com a minha família. Era uma viagem de Buffalo até um lago que ficava no Canadá. A viagem incluía uma estadia em um hotel que descreveram como tendo uma grande piscina. Eu nunca tinha ido a um lago e mal tinha visto uma piscina. Minha empolgação foi enorme. A viagem era de cerca de 250 milhas. Cerca de cinco horas de carro. Isso significava que essas férias seriam a viagem mais longa de minha vida. Éramos três, as crianças. E meus pais. Eu sou o filho do meio. Meus pais tinham um Buick. Durante vários dias antes da viagem, sonhei e fantasiei sobre como seria o lago, a temperatura da água, a profundidade, se eu veria peixes e como seria nadar. Eu nadava e nadava. Estaríamos longe de casa, então minha mãe não poderia cozinhar comida italiana caseira. Em vez disso, eu poderia comer as coisas de que realmente gostava. Se eu tivesse sorte, McDonalds. Lembro-me da manhã em que partimos. Ainda estava escuro. Meus pais discutiram. Minha mãe levou travesseiros, cobertores e um refrigerador de isopor cheio de snacks. Uma viagem de cinco horas é uma viagem longa para um garoto de cinco anos. Passei boa parte do tempo dentro do carro deitado no chão onde ficavam os pés. Eu era pequeno o suficiente para me acomodar ali e me esforçava ao máximo para tentar dormir. Lembro-me claramente da viagem. Eu só estava interessado em chegar. E a espera foi desconfortável. Não me lembro da música no rádio, que normalmente eu ouviria. Não olhei pela janela, o que também faria normalmente. Em vez disso, fiquei em uma espécie de suspensão, um tipo de hibernação. Eu estava simplesmente concentrado em chegar. E queria que a viagem passasse o mais rápido possível. Eu era uma criança na época. Apenas um rapaz de cinco anos. A primeira vez que viajei para longe como adulto, eu tinha dezessete. Fui dirigindo de Nova York a Los Angeles. Era um carro velho e não estava em bom estado. E eu tinha muito pouco dinheiro. Queria conhecer a Califórnia. Era tão distante da minha infância em Buffalo. Cada minuto da viagem foi lindo e me lembro bem dos melodramas das falhas do carro e dos reparos. E a música. Até mesmo músicas conhecidas soavam novas ou, pelo menos, diferentes na estrada. Lembro-me da manhã em que saí do deserto e cheguei a Los Angeles. Foi emocionante. Los Angeles era emocionante. Mas, na verdade, é da viagem que me lembro melhor, da viagem, de olhar ao redor, das mudanças no clima e na paisagem, das interações muito simples e sutis com as pessoas ao longo do caminho. Eu era um adulto. Essa é a diferença entre adultos e crianças. Os críticos que dizem que nada acontece em The Brown Bunny enquanto meu personagem dirige pelo país têm o intelecto de uma criança. As crianças precisam ser constantemente entretidas e estimuladas.

Algumas pessoas esperam pela cena do boquete em The Brown Bunny da mesma forma que eu esperava para chegar ao lago quando era criança.


Duas notas do diretor

1. “Pergunto-me: o que ganho ao fazer esses filmes? Com certeza não ganho dinheiro. No entanto, dediquei três anos da minha vida a cada um deles. Faço muitos inimigos porque sou autoritário, insistente e arrogante. Fico velho e rabugento e minhas costas, meu pescoço e quase tudo me dói. Não fui a nenhum encontro. Também não fiz… O quê, o que eu ganho? Essa estranha satisfação de ter podido trazer ao mundo algo que agora existe e que a maioria das pessoas não gosta. É uma atitude doentia, porém naquela época me pareceu ser a coisa mais importante. E não tem nada a ver com narcisismo. Digo, um narcisista só se identifica com um vencedor. Os filmes que faço não são sobre vencedores e os personagens que interpreto não são sobre vencedores e eu não tenho nada a ver com isso. Todo o meu trabalho — as fotografias, as pinturas, a música, tudo, o design de interiores, a arquitetura — é uma questão de sensibilidade estética e metáfora, e nada tem a ver com a minha pessoa. Não é uma glorificação de mim, é a preservação de uma percepção; de uma percepção sobre relacionamentos, personagens, personalidades; uma percepção sobre cultura, política, sensibilidade, relacionamentos. É sobre estética. Essas coisas não têm nada a ver comigo. Sou apenas um guardião, o idiota que passa toda a sua vida miserável tentando representar essas percepções. Talvez eu tenha um grande ego ao pensar que sou inteligente o bastante para saber o que precisa ser preservado, ou que sou inteligente o bastante para ter essas percepções, mas isso nada tem a ver com a minha própria glorificação. Eu só apareço nesses filmes, não por achar que sou muito agradável esteticamente, mas por poder manipular o filme de uma determinada maneira quando me ocupo de várias tarefas, e a atuação é uma entre elas. Porém, basicamente, toda a minha vida tem sido… ser um guardião dessas coisas. Sou o cara que pole o corrimão de latão em frente a um belo edifício. Levo isso tão a sério como se Deus proibisse que o corrimão tivesse alguma mancha, porque de alguma forma isso refletiria mal no mundo e eu me tornaria culpado. E afinal tenho 42 anos, sou um homem velho e acabado, e o que fiz? Fiz alguns… filmes estúpidos. Jesus, eu poderia ter tido um amigo, um relacionamento, um filho ou algo assim. Sou tão estúpido. Porém, naquele momento, pareceu-me ser a coisa mais importante”.

2. “É como se Deus dissesse: ‘tudo bem! Pode escolher as cores de cada casa em uma rua. O único problema é que tem de raspar e pintar todas elas sozinho. E, a propósito, precisa pintar com um pincel minúsculo’. E eu concebo em minha mente a ideia de como isso ficaria bonito e penso na cor que cada casa deve ter, e ando para cima e para baixo pelo quarteirão em minha bicicleta, e tenho uma visão de como ficaria grandioso esse quarteirão. E então passo vinte anos ali sentado como um idiota raspando todas as casas, preparando-as para a pintura. E depois mais vinte anos as pintando com um pincel minúsculo. E então eu me vejo com oitenta anos e estou morto. E, assim que morro, alguém as pinta de outra cor”.

Compartilhe:

Poemas

“O diabo é poliglota”
Poemas de Luiz Eduardo de Oliveira Périco.

Poemas de kairós

“Eu vejo a Imago Dei em suas faces perdidas”

Quatro sonetos

de pé somente crônicas, ruínas…“. Quatro sonetos contemporâneos.

Assim se fez

“[…] onde o céu só se colore / por cores nunca vistas […]”

Translate