Amanda Kristensen
A florista Clara
Era o sol das dez. Nem mais nem menos: dez em ponto.
Uma moça se casava na Catedral, velavam um senhor rico sem herdeiros no velório privado de Cafundós, o banco fervilhava de gente e Clara completava 57 anos.
Fazia uma década que ninguém a segurava pela mão. Achou uma graça triste pensar nisso naquele horário.
Seria muito esperado dizer que Clara não teve filhos: uma solteira convicta afeita a gatos; pois digamos que preferia cachorros e teve dois. Dois filhos. E quem se casava na igreja, inclusive, àquelas horas, era sua menina. O outro foi última pessoa a segurá-la pela mão, dez anos trás, numa cirurgia sem volta.
As flores de plástico que vendia ao lado do cemitério traziam o sustento para si. Era esperado que todo dia alguém morresse, menos ou mais, e o lucro também menos ou mais, a depender do número de mortos; coisas da vida, não? Ou da morte, que aquelas flores eram mortalhas a aguentar o sol das dez e de qualquer outro horário pelo tempo necessário até que algum vivo – geralmente mulher desconhecida ao defunto – percebesse as cores desbotadas como poeira em túmulo.
Era um absurdo não ir ao casamento da própria filha, mas Clara não podia se vender como sogra ao prefeito mais corrupto que Cafundó já conheceu. O mais triste não foi ter sido esquecida grávida pelo nunca pai de seus filhos, tampouco perder seu menino já moço ou até ver definhar o caráter da filha mais nova; o mais triste mesmo foi ter sido preciso transformar a belíssima floricultura que tinha naquela esquina em um conjunto mórbido de plásticos coloridos que imitavam uma mentira: uma vida sem espinhos.
Quando foi que as pessoas deixaram de gostar de plantas capazes de produzir o próprio alimento, de trazer cores, aromas e frutos variados ao ambiente? Clara fazia lindos jardins! E sempre detestou arranjos quilométricos de buquês. Mas, de repente, as raízes eram muito grossas, caíam folhas demais e mesmo a procura por buquês transformou-se em busca por coroas de velório. Sobrou ao mundo concreto, mármore, vidro e flores de plástico. Especialmente depois que a ampliação do cemitério municipal invadiu a esquina da loja de Clara.
Por falar em loja, a campainha acabava de tocar: ah, sim… morreu mais um. Dez e quinze. E que homem bonito lhe vinha caminhando, uma tristeza que estivesse, decerto, indo a um velório.
“A senhora só tem flores de plástico? Eu queria ajuda para fazer um jardim na minha casa”.
E Clara quis chorar. A pergunta poderia parecer uma ofensa, mas respondê-la com um positivo é que lhe doía. Era a primeira vez em anos que alguém queria flores de verdade. Desde que muitos morreram por causa de uma peste estranha em conluio com a má gestão do sistema de saúde de Cafundós, ninguém queria saber de flores; bem, de flores vivas.
Ronaldo tinha acabado de sair do único banco de Cafundós: depois de quase 40 anos de trabalho como professor, chegara sua aposentadoria e com a ajuda da herança da falecida mulher, ele acabava de adquirir um terreno financiado. Com a apólice em mãos e animado para a realização do sonho de um jardim, achegou-se à loja de Clara, cuja fachada persistia na decoração de flores vivas.
A florista explicou que sua loja anterior era repleta de espécies raras, mas que a tal peste – como chamavam – aliada à ampliação do cemitério quase à porta de sua loja obrigaram-na a repensar as vendas – e as vidas. Em sua casa ainda havia a possibilidade de encontrar mangueiras, ipês, coqueiros, pingos de ouro. Poderiam ir até lá e lhe presentearia: um exemplar do que quisesse.
Clara tinha gostado tanto de Ronaldo! E Ronaldo de repente achou que pudesse recomeçar a vida ao lado daquela mulher.
[Uma pena que, ao sair da loja, animado em conhecer uma flor um tanto quanto já vivida, Ronaldo viria a ser atropelado pelo carro funerário que acabava de deixar o tal velho rico e sem herdeiros. Foi mesmo ali, à sarjeta do que poderia ter sido, a última vez que segurariam as mãos de Clara. Bem, como Clara poderia ser minha mãe e a vida é já demasiado dura, respire; podemos fazer de Clara uma nova mulher no próximo parágrafo]
Uma mulher que, próximo a completar a sexta década, encontraria seu amor verdadeiro em Ronaldo! E sabe o que mais? Aquele casal que se amaria sem competições, ciúmes, mágoa ou inveja, construiria uma bela casa à beira de uma floresta distante, bem distante de Cafundós. Ao redor do que chamariam de lar, plantariam diversas espécies de mudas raras, que jamais seriam retiradas do solo, nem por maus homens, nem por ganância, nem mesmo pela morte – a pior das ervas daninhas – porque lá vivia a florista Clara e por gostarmos tanto dela, bastava isso para que os únicos espinhos fossem os das rosas: todos davam as mãos e tudo florescia.
O morador
Seis meses.
Pode ser um conforto chegar à metade do ano.
Na adolescência, a ansiedade requer fins e as metades são meios de esperança.
Mas Eraldo estava na velhice, e a velhice é um ocaso com medo de vir a noite.
Seis meses, na velhice, são 183 dias de horas pálidas; isso se, especialmente, vividos em um quarto de hospital.
Não que Eraldo estivesse doente; esteve, por duas semanas. Queimou a mão tentando ferver a água do café, ou colocar fogo na casa. Era esquizofrênico. Além disso, progressivamente tristonho. As queimaduras podaram suas vontades de aguar as plantas e alimentar os canarinhos com os dedos. Por fim, encheram-lhe os pulmões de uma água que teimava não desaguar pelos olhos: é que seu Eraldo não queria incomodar o filho que lhe deixava morar e comprava alguns remédios contra o xingamento das vozes. Ah, e deixava ter plantas, e ter canarinhos, e então teve pneumonia.
Apertou 192 e, quase sem ar, baforou um socorro seguido do seu endereço.
A memória não é boa quando se chega aos 78 anos. Mas aquela sequência numérica se encrustou no Eraldo como o agarramento de uma carola com terço. Isso de tanto ligar para a ambulância, implorando nos primeiros anos de viuvez, que lhe levassem o filho, internassem pelo amor de deus, mas tinha plano de saúde? Sem plano não dá, não senhor.
E uma moça assim tão boa, que lhe lembrava Luiza na mocidade, um dia veio mesmo pegar o filho e levou para uma clínica: “mas olha, seu Eraldo, não fica não; ele foge”. Pois fugia, sim. E o Eraldo tirava o filho Pedro da rua, que do nome herdara a vontade pelas pedras de craque.
A casa era mesmo do Eraldo, mas, com os anos, teve a impressão de que o filho o deixava morar. Quando se perde o lar no mundo, a gente se desconcerta. E Luiza adentrou a terra quando ainda tinha de pisar nela Eraldo.
O hospital era branco e foi embora a ideia pavorosa de estar pisando Luiza. Por isso foram muito boas as duas semanas. A comida era um banquete, e as moças lhe cuidavam bem.
Na terceira semana, um homem de terno lhe perguntou onde morava. Não era médico. Eraldo passou o endereço. Tem filho, não? E disse que tinha, sim. Mas que às vezes um deles estava para a rua e o outro não dava notícias há anos. Era Bacharel! Eraldo pagara tudo, sim sinhô!
Foi difícil o hospital encontrar o seu João, já tão bem de vida, morador de cidade vizinha – era o filho mais velho do Eraldo. Mas havia gente precisada do leito, e já se chegava a um mês completo do velho por ali.
Pediram que buscasse o pai, explicaram a questão da internação. Mas estava bem, no máximo teria de fazer algumas inalações.
Ah, não dava. De jeito nenhum. E o Pedro? Que falassem com Pedro.
Pois onde estaria Pedro?
Insistiram por meses.
Tem cinco dias que a justiça exige de João que tire o pai do hospital, nem que for para entocá-lo em alguma casa do município que junta gente sem memória. Dez mil por dia para cada dia de negligência parental.
Mas nem doendo o bolso!
Seu João quer mais problemas para quê? Já basta o custo do divórcio e a educação das filhas da amante que lhe saíram filhas melhores que as suas.
Que pague o Pedro.
A gente fica triste e passa a querer morrer jovem.
Pensei um dia em matar o velho de uma vez, sei lá, privar-lhe daquele abandono doído; parece que o homem entendia alguma coisa, embora todo santo dia fosse a mesma cena, a ajeitação na cama de hospital, e o mesmo pedido: “Luiza, abre a janela!”
Repeti por muito tempo que não era Luiza. Li alguns papéis do processo dele e vi que era o nome da falecida mulher. Nunca mais disse que não me chamava Luiza. Eu posso me chamar assim, porque é bom um nome dizer alguma coisa para alguém e o meu não diz nada, como não diz também o de Eraldo.
A doutora assinou sua certidão de óbito. Chorou, mas logo virou as costas: daria problema para enterrar. Ninguém veio. Para que Eraldo pudesse ter um espaço na terra ao lado da mulher, prometi que jantaria com o Rubião da funerária “Amanhecer” e o tarado ajeitou tudo, com direito a caixão de mármore e foto.
Seu Eraldo finalmente viu chegar a noite.
De manhã, ninguém ocupava ainda o leito tão pleiteado do antigo morador.