Mila Nascimento
no luto da morte do meu útero eu escrevi
duas semanas
que perdi
a casa que me habitava
duas semanas
que fiquei sem
a morada primeira dos filhos que pari e de
Joaquim que perdi
só sobrou essa daqui
que tem minha cama
luz elétrica
internet
comida e água
mas essa daqui não é própria!
é alugada
a pensão não dá pra nada
sabe como é
filho é feito em quatro pernas
4 paredes
às vezes 4 minutos se a gozada for
rápida e tudo bem se a mina não
sentir nada
orgasmo é coisa rara
a gente já está acostumada
filho é feito em 4 pernas
mas depois
duas saem andando apressadas
só duas ficam
embalam
cuidam da crise de asma na madrugada
só duas pernas cuidam da ferida no rosto
depois do tombo de bicicleta na lombada
só duas pernas cuidam da tristeza sem fim
que quase levou embora uma cria para o
nada
duas pernas
sigo sem útero
coluna já calcificada
duas pernas
uma cabeça cheia
um coração dado nó
duas pernas sem útero
c a n s a d a
poema para antes do banho
nua
toalha
no corpo
C O R P O
Bonito
E X A U S T O
solto
cabelo
sinto meu pelo
depilo
pra quê? pra quem?
quem foi que disse que mulher tem que ser lisa,
menina? menina tem que ser o que quiser
peluda
sem pelo
peituda
sem peito
coisa chata isso...
M U L H E R sou eu
desejo na carne
medo de outro começo
tempo
—— pausa
—————— R E S P I RA
————————— PENSA
melhor esperar
cicatrizar
tanta coisa pra curar
ferida aberta dói e apodrece
a gente adoece
finge que esquece
B O B A G E M
a gente não esquece
A gente lembra
Chora
G R I T A blasfema
O D E I A
odeia nada
não sei odiar
só sei amar
o que não sei
mas preciso saber
é aprender a me respeitar
vou me trocar
o caçula vai dormir sem jantar
mãe não pode descansar
MÃE queria GOZAR
deixa eu me vestir
levantar
vou na cozinha
preparar o jantar.
minha amiga Sarah, a poeta, escreveu sobre a
violências que, só por sermos mulheres, vivemos.
eu que tive minha coluna quebrada
minha mente violentada
minha carne espancada
minha verdade desacreditada
sei bem do que tu fala, Sarah
é tudo verdade!
a gente vira fruta podre
vizinho é mesmo omisso canalha
sobre as pernas: as minhas não mexiam
não sentia nada
sucumbi à gravidade
em uma espécie de desmaio visceral
catarse diante à realidade
casamento
planos
lealdade?
tudo loucura social
“A senhora sabe que essa história toda não é real? E
que pode acabar com a vida do Doutor fulano de
tal?”
a vida dele importava mais
imagina! coitado do nobre rapaz!
a nossa vida vale menos
mulher, louca, descontrolada
se for preta ainda, infelizmente pode ser mais prejudicada
e a gente segue sendo forte
do jeito que aprendemos
vida sangrando, quase morte
esperando e lutando por dias melhores
resgate
faço isso desde sempre
de pequena, adolescente
quando adulta, parei
muito filho, correria
para ser eu mesma, tempo eu não tinha
e dos livros me afastei
sentia uma falta danada
saudades de ler no cemitério da
Consolação ou na igreja da Voluntários
da Pátria
comprei estante
biblioteca agora, estava na sala
mas a leitura continuava abandonada
e foi só quando o casório acabou
e a minha coluna quebrou que eu pude me ver outra
vez e desafiei: VOU LER UM LIVRO POR MÊS!
foi tão bom me encontrar
me ver, me libertar
e para os meus livros, voltar
a gente precisa
perder um bocado de coisas
para entender que não precisa de metade
delas tantas inutilidades tolas
que escolheram por mim, por nós, por elas
poesia da noite depois da asfixia do dia
o beco para as minas é assim:
sem saída
mas com ECO
dos gritos
excessos de NÃO
e faltas de sim