Ana Shitara
O celular apitou avisando o recebimento de uma mensagem. O grupo da escola aparecia em negrito, um grupo ao qual pertencia desde os dez anos, e que era, agora, constituído de uma comunidade de pessoas de meia-idade. Uma amiga de infância que não via há décadas havia se suicidado e deixado dois filhos. A semana começou assim. Fiquei parada no meio da sala com o aparelho na mão, na difícil tarefa de compreender o que havia lido.
Sentei na poltrona perto da janela e me deixei ser banhada pelo sol. Precisava me esquentar. As lembranças dela me inundaram, como, quando crianças, brincávamos juntas, como ela gostava de comer tomate tal qual uma maçã, como eu tentara tantas vezes dormir na sua casa, para, no meio da noite, ligar chorando para os meus pais virem me buscar. Precisava compartilhar do choque e da descrença, mandei recado para minha mãe e minha irmã. Elas ficaram estarrecidas comigo, dividindo o desconcerto. A notícia chegou violentamente, atingindo minha mãe no seu lugar mais profundo, se viu no lugar dos pais da minha amiga, talvez o pior lugar de um parente de um suicida, e foi como se tivesse perdido uma filha.
Não fui ao velório. Estava trabalhando, pensei no olhar de repreensão do meu chefe quando contasse que queria uma dispensa para ir ao velório de alguém que não via desde a adolescência. Como se aquela perda não me significasse nada. Será? Naquela manhã, minha mãe foi fazer sua aula de yoga diária e no meio dos exercícios sentiu a urgência de ir se despedir, de mostrar carinho aos pais, e levantou-se de supetão do tapete emborrachado, colocou um vestido e saiu sem pensar duas vezes em direção ao cemitério. Uma onda de calor havia tomado conta da cidade, fazia trinta e cinco graus na sombra, sob o sol, mais de quarenta. Aos setenta e três anos, ela penou para subir a ladeira que levava ao campo-santo, como se cruzasse um interminável deserto de sofrimento e dor. Uma goteira poente desfazia seu corpo e seu coração.
Ela me mandou um recado, dizendo que o velório estava lotado, que vira um dos filhos da minha amiga com o olhar perdido e o mesmo nariz que caracterizava o rosto da mãe. Ela o conhecera de imediato. Vira também o pai da falecida sendo carregado para fora vencido pelo calor e pelo pesar. Não teve o desassombro de se aproximar para prestar suas condolências. A mãe não conseguiu ir ao velório da filha, sua ausência contava sobre o seu sofrimento. O caixão estava fechado, ela havia saltado em direção à morte. Minha mãe queria respostas, mas não encontrava. Ficou no meio da multidão, enfrentando o calor, a inclemente luz do sol que expunha a dor coletiva, buscando decidir o que fazer com a sua tristeza. A família queria cremá-la, mas a polícia não permitira, o caso ainda estava sob investigação.
Eu recebia suas mensagens no trabalho, sem saber o que fazer com elas, o meu peito corava. Eu não tinha notícias dela há décadas e me encontrava extenuada. Compartilhei a notícia com algumas colegas de trabalho que tinham ainda muito menos a ver com ela do que eu. A angústia não é um sentimento que se deixa amarrar, que se cala sem consequências, ela combate e, liberta das nossas tentativas de controlá-la, usurpa o controle do corpo e da mente e se faz demasiadamente presente. O suicídio era para mim o pior tipo de morte para quem fica, uma mistura de tristeza infinita com uma irremediável culpa. Eu só sentia pena, muita pena: dela, dos pais, dos filhos e de todos que a amavam. Se eu batalhava para submeter-me àquela áspera realidade que deixava meu corpo em pele viva, imaginem eles. Lamentava a sua morte precoce e a desilusão que a cansou.
Pensei na minha própria depressão, nos dois Prozacs que tomava pela manhã após o café, nos meus filhos com idades semelhantes aos dela, nos meus mesmos quarenta e três anos. Quando falei para o meu marido sobre o assunto, ele me respondeu: tome conta de você. Entendi no momento em que cruzamos nossos olhares que ele teve os mesmos pensamentos que eu, e aquelas palavras ecoaram distorcidas, adulteradas e violentas. Foi como uma acusação, a evidência de que ele não acreditava em mim e soterrei-as no meu interior.
De noite, depois do trabalho, de ir ao veterinário vacinar a cachorra e de levar um dos meus filhos para a aula particular, chegava às oito e meia em casa, para descobrir que o jantar não estava pronto. Resignada, fui ferver água para cozinhar o macarrão. Era tudo o que eu podia fazer e tudo pesava. Era Sísifo empurrando a pedra. Quando fui escorrer a massa na pia, a água fervente caiu sobre minha mão esquerda lá onde a dor a tinha deixado em carne viva e meu marido falou para eu prestar mais atenção. Arrebentei, pedaços de mim voaram por toda a cozinha. Larguei tudo na pia e saturada de desalento e fúria, a voz saiu do meu corpo como um vendaval dizendo para ele terminar e fui para o quarto.
Depois de uma hora, saí para comer um sanduíche, meu corpo estava vazio. Sentei na mesa da copa sob uma única luz acesa. Meu filho mais velho apareceu para tomar um copo de água e, ao me ver vencida, olhando o sanduíche no prato estupefata, ele se aproximou e começou a massagear meus ombros. Foi o que faltava para eu finalmente chorar. Era o que precisava para fechar o hiato plissado em que me havia transformado nesses dias. O toque de suas mãos e o testemunho do seu afeto me desmoronou e me reconstruiu. Eu implorei ao meu filho que nunca fizesse o mesmo que minha amiga. O marido perdoou a explosão de frustração e entendeu que eu precisava de um abraço e não de uma advertência. Fui dormir.
Na manhã seguinte, os olhos amanheceram inchados e uma sensação de sonolência me acompanhou pelo resto do dia. O corpo cansado do sofrimento e do calor respondeu com uma diarreia que secou toda a carne. Com o ar-condicionado ligado, sobre o leito, adormeci novamente durante a tarde inteira. Não sonhei, entrei no breu do padecimento e a mente descansou finalmente. Quando me levantei eram cinco horas da tarde. Fui ajudar meu filho a fazer o dever de casa, pensar no jantar.
De noite, não tinha sono. Comecei a conversar por mensagens com dois amigos que a conheciam também numa tentativa de consolação mútua e repetição de lugares comuns, trocávamos lembranças. Sentia-me um pouco óbvia e uma certa inadequação, sem saber se tinha o direito de falar sobre ela ou não, como se a morte não pudesse ser discutida. O suicídio é algo tão difícil de aceitar e tão fácil de julgar. Que lugar escuro ela deveria estar.
Passei a madrugada em branco, gastara o sono na tarde. A angústia não dava trégua, as lembranças vinham e a melancolia tomava conta da alma. Bebi água, encarei minutos a fio a geladeira aberta, assisti televisão, fiz um chá, tomei uma taça de vinho, decodifiquei as palavras de um livro, sem nada ler. Perguntava a mim mesma o porquê dessa tristeza, se não a via há pelo menos mais de vinte anos. O tempo havia passado, todavia descobria que meu afeto não. Fomos amigas na simplicidade e sinceridade genuína da infância, porque gostávamos uma da outra, sem explicações ou justificações. E percebia que esse tipo de amizade era se saber venturoso em um mundo opressivo e distópico. Chorei de novo, sem pena, com amor.
Para acalmar a mente, como meu último recurso, decidi fazer crochê. A contagem dos pontos, a repetição dos movimentos iriam me salvar do cavalo selvagem em que havia se transformado meus pensamentos. Tecer os fios com cuidado, sem brigar com a linha, construir o novo. Eram então três e meia da madrugada.
A linha dançava por entre os dedos, as cores iam se misturando, o trabalho tomava forma e a angústia, em passos lentos, ia dando adeus, assim como uma mãe quando fecha a porta do quarto do filho depois que este adormece. Enquanto passava de um ponto ao outro, que se interligava de maneira natural e orgânica, o sol foi despontando suavemente por entre os prédios da cidade. A escuridão foi tornando-se azul até que os primeiros raios de sol tocaram as minhas mãos e iluminou o ursinho alegre que começara a crochetar horas antes e que agora estava pronto, aninhado entre as minhas palmas. Sorri de volta para ele. O sol nascente e eu, no silêncio daquela nova manhã.