Revista de Cultura

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Terra úmida

Myriam Scotti

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Um ontem não tão distante, apesar das tantas décadas transcorridas e de meus cabelos já serem brancos como a neve que nunca conheci, os fatos retornam à minha mente com detalhes: o céu demasiado azul e o calor forte, abafado, não deixavam dúvidas de que o mês de agosto havia chegado com toda sua pujança. À nossa volta, a beleza comovente da floresta me fazia viajar para o interior da alma, uma grande aventura que começava de dentro para fora do corpo. Talvez por isso eu jamais me cansasse de navegar por aqueles rios que me provocavam imersões tão profundas quanto suas águas. A cada curso percorrido, a natureza se descortinava em um espetáculo quase secreto para os olhos de quem escolhia gastar os dias navegando e se embrenhando pelos interiores misteriosos da Amazônia, embora naquela tarde de esplendor, o que nos parecia impossível aconteceu: nuvens negras se formaram de repente, trazendo a tempestade apressada em desabar sobre as águas negras e até pouco tempo espelhadas que havia diante de nós, deixando-nos na angústia de saber se passaríamos ilesos.

A paisagem escurecia sem que pudéssemos fugir de toda a chuva que estava para irromper, num prenúncio de desafio a quem ousava por ali navegar. O verão amazônico se anunciava violento, inserto em sua própria selvageria e ainda faltavam três dias para chegarmos a Manaus. Estávamos em meio ao nada. Apenas o infinito de águas nos cercava. Inimaginável que uma tarde bonita como aquela pudesse se transformar, trovões começariam a ribombar e uma chuva torrencial cairia sobre nós. Ventos fortes e atípicos sacudiam a embarcação, como se fôssemos um barquinho de papel. Um dos marinheiros chamou a nossa atenção para uma mancha que lembrava um grande disco e se formava na superfície do rio, a certa distância. Curiosos, corremos todos para saber do que se tratava e então vimos surgir um anel de água, que logo ganhou força, formando uma imensa tromba. Mesmo percorrendo rios há alguns anos, só tinha ouvido falar do fenômeno e até duvidava de sua veracidade. As histórias de pescador eram muitas e cheias de lendas na região. Para nosso desespero, lá estava ela: a mancha impiedosa a formar um grande redemoinho, cuja altura impressionava a todos.

Ao mesmo tempo em que precisávamos agir para sair da rota da tromba d’água, ficávamos hipnotizados por sua beleza. Feito canto de sereia, o fenômeno nos chamava e à medida que o redemoinho se movia, ondas surgiam como se estivéssemos numa tempestade em alto-mar. Nosso barco de médio porte, bastante moderno para a época, conseguiu desviar a rota sem muita dificuldade para nos manter a uma distância segura. Aquela imensa coluna giratória nascida das nuvens de tempestade, apesar de toda sua força, durou não mais que vinte minutos. Conforme o redemoinho se dissipava, pingos cada vez mais grossos começavam a cair, e por isso começamos a baixar as lonas do barco para que a água das chuvas não invadisse em demasia, mas deixando o ambiente sufocante e a tripulação agoniada com a agitação das águas. Em segundos, os pingos de chuva formaram uma cortina branca típica das enxurradas, um véu de noiva sobre o barco, impedindo nossa visão para continuarmos o percurso. A viagem, que até ali tinha sido sem grandes aventuras ou surpresas, acabara de se tornar a melhor história para se contar quando voltássemos para casa. Como a natureza era dissimulada, a rir-se de nossa ingenuidade ao presumir já conhecê-la o suficiente.

O comandante, percebendo o terror nos olhos de seus marinheiros, tratou de nos acalmar. “Já passei por muitas outras tempestades iguais ou piores que essa e não vai ser dessa vez que meu ‘Muiraquitã’ vai me deixar na mão”. Aos poucos, a chuva se tornou menos abundosa, o vento se transformou em brisa e, como se nada daquilo tivesse acontecido, o sol apareceu discreto entre as nuvens, deixando o fim de tarde em tons de laranja, trazendo-me à memória a minha África que nunca esqueci.

Nessa época, fazia dez anos que minha família e eu havíamos deixado o Marrocos. Saí da cidade de Tânger, onde nasci, aos treze anos de idade, após minha festa de Bar Mitzva. Minhas lembranças da infância são de cores quentes, tecidos e especiarias vendidas nas medinas marroquinas, repletas de seus moradores muçulmanos e judeus, bem como de turistas fascinados pelos cheiros e pelos tons do norte da África. Estimava tanto aquela atmosfera que pouco me importava ser um lugar por vezes inóspito para nós, judeus. Éramos minoria, um bando sempre em fuga. Apesar das tentativas de convivência pacífica com outros povos, não escapávamos do desdém nem de algumas violências, tanto que éramos reduzidos aos espaços destinados às Mellahs, dentro das medinas, para não nos misturarmos. Mas nada disso tirava a beleza e o amor que eu sentia por aquele lugar. Ainda que as guerras civis fossem muitas, ainda que as pestes levassem tantos de nós devido às péssimas condições sanitárias, o Marrocos era o meu lar. Não à toa, quando meus pais decidiram sair de lá para vir atrás da prosperidade de que tanto ouvíamos falar em terras amazônicas e também da segurança de podermos praticar a religião sem temer a discriminação, fiquei injuriado e a tristeza se apoderou de mim durante os dias que se seguiram à notícia de nossa partida. Da mesma forma que aqui, o Marrocos transbordava em cores e cheiros peculiares, deixando naqueles que por lá passavam a vontade de retornar. É como tenho levado os anos de minha vida, sempre querendo regressar, que nem uma criança à espera de um dia retornar ao útero da mãe. Aprendi quando aqui cheguei que isso se chama saudade, a memória do que não queremos esquecer.

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