Thiago Francisco
A minha mulher odeia fumantes. Ela acha que é um hábito nojento, não gosta da fumaça, do odor do tabaco, do bafo de quem fuma, de nada que envolva cigarro. Eu mostrei pra ela algumas fotos, celebridades dos anos 50, gente realmente estilosa que fumava, mas não teve muito efeito. Ela tinha uma espécie de rejeição instintiva ao ato de fumar, um negócio que eu não conseguia compreender. Quando namorávamos, eu dizia que ia parar, botava bala de menta na boca, tentava disfarçar o cheiro, evitava fumar perto dela. Prometi, de coração, várias vezes, é o meu último maço, eu juro, mas eu tinha pouca convicção que conseguiria. E depois do casamento, não parei mesmo. Foi quando começamos a ter problemas sérios.
Eu tentava entender. Ela reclamava dos meus cigarros, não me deixava fumar em casa, nem no quintal; eu fiquei mais insolente também, o que é comum acontecer com um cara depois de casar, e já não me importava tanto em esconder o meu vício abominável, como ela chamava. As brigas aumentaram, e eu até perdia a paciência de vez em quando, mandava ela arrumar outro homem pra ela, um desses crentolas, já que estava tão insatisfeita comigo. A minha mulher era crente, ia nessas igrejas pentecostais, mas não curtia muito o perfil engomadinho de igreja, teve uns três namorados lá, mas gostava mesmo do tipo erradão, como eu. A gente se dava bem, apesar dos tabacos. Ela não reclamava da cerveja, até bebia comigo de vez em quando; não tinha problema com os palavrões, ria deles até; e eu curtia as coisas de crente dela, as músicas evangélicas no som e as histórias esquisitas da Bíblia. O problema maior era o cigarro: esse ela não tolerava, odiava, ficava louca de raiva só de sentir um leve resquício de cheiro do trem na minha roupa.
Eu fiz o papel do conciliador, e decidi me sacrificar. No fundo, eu mandava que ela procurasse outro, mas morria de medo de perdê-la. Para evitar mais brigas, deixei de fumar em casa. Pitava unzinho somente, no trabalho, na hora do almoço. Mesmo lá, as pessoas não gostavam muito, faziam cara feia quando me viam com cigarro na mão. Chegava seco em casa, a garganta coçando e a mão tremendo. O café forte, que minha mulher goiana lascava açúcar, ajudava a aliviar, mas não era a mesma coisa. Ela dizia que com o tempo eu ia agradecer, fumar dá câncer, e eu seria um homem bem melhor, com mais energia, quando parasse de fumar de vez. Eu replicava que até hoje ela nunca tinha reclamado da minha energia na cama, e ela sorria, gostava dos meus gracejos sujos. A abstinência, no entanto, não passava tão facilmente.
Num final de tarde, quando saía do trabalho, passei na frente dum desses risca-faca de quinta, o povo bebendo e dançando forró, mas notei que saía muita fumaça — fumaça de cigarro — do ambiente. Entrei, e fui informado que funcionava um local específico para fumantes nos fundos. Uma espécie de tabacaria. Eles até vendiam tabaco e alguns charutos, mas só coisa de qualidade duvidosa. É comum lugares assim em Brasília, mas não nas satélites, onde o povo fuma em qualquer canto. Não era também nenhum desses hookahs, onde um bando de adolescentes debiloides se junta para fumar aquele lixo de narguilé, mas um local feito pra gente fumar cigarro de verdade. Me senti em casa. Claro, tinha uma galera baixo nível, pessoal que ia e vinha do bar, às vezes com bebida na mão e fazendo barulho, mas pelo menos era um lugar onde se podia fumar em paz, sem ser julgado pelos fiscais da saúde alheia.
Passei a frequentar a tabacaria pelo menos três vezes por semana. Se pudesse, iria todos os dias, mas não queria irritar tanto a patroa. Ficava lá uma média de uma hora, uma hora e meia, conversava com um ou outro que sentava ao meu lado, o ambiente todo era pequeno, apertado, e depois ia para casa. Botava minha roupa para lavar, escovava os dentes, e fazia de tudo para que minha mulher não sentisse cheiro nenhum. Não adiantava. Ela sentia, tinha um faro especialmente apurado para cigarro. Não reclamava mais, via que ao menos eu me esforçava para não fumar em casa, mas não fazia questão de esconder o rosto de frustração e desprezo. Eu sabia que o pai dela fumava bastante, sempre com um cigarro de palha na boca, ela havia me contado, e essa era a razão do seu ódio contra fumantes. Eu só não entendia a conexão maluca que ela fazia na cabeça dela. O velho morreu atropelado, quando ela ainda era menina. Um acidente completamente banal. Pelo que me contou, ela presenciou a cena, o que causou um grande impacto nela. Só que a morte dele não teve a mínima relação com o ato de fumar. Absolutamente nenhuma. Ele não morreu de câncer, ou engasgado com fumaça. Para ela, no entanto, era como se os dois eventos fossem conectados, como se fossem partes de uma mesma paisagem, de um mesmo todo. Não fazia sentido algum para mim.
Na tabacaria, estreitei laços com as pessoas. Eram sempre os mesmos rostos. Tinham histórias interessantes para contar. Gente que fuma normalmente tem sempre uma boa história de vida. Pode apostar que aquele velho com cara de pinga, escorado nas paredes de uma rodoviária, com cigarro na mão, terá sempre uma história de vida extensa, interessantíssima, para relatar. Na tabacaria, por exemplo, tinha um cara que havia se casado três vezes, e com cada mulher teve uma filha. As três filhas estavam bem casadas, executivos, e moravam nos Estados Unidos; as três mulheres, da mesma forma, haviam arrumado novos casamentos, artistas e empreendedores, e moravam na África do Sul. Ele ficou sozinho, recebia de vez em quando algum agrado da filha mais velha, e vivia num barraco nos fundos da casa da mãe, essa já com 90 anos. Como a velha tinha asma e bronquite, ele não podia fumar em casa, daí saía para fumar fora. Eu duvidei bastante da história desse sujeito, que tinha a voz melíflua demais para ter se casado três vezes, mas ele me mostrou os perfis nas redes sociais das filhas, das ex-mulheres, e dos maridos de todas elas, e foi o suficiente para me convencer, e me comover.
Tinha também uma mulher, expansiva e barulhenta, do cabelo loiro oxigenado, magra e feia, acho que se chamava Mara (aliás, toda bêbada parece se chamar Mara), e que me mostrou as cicatrizes nas costas e braços. Foi casada com um bêbado, fumante e violento, um homem bem mais velho do que ela, mas que, de acordo com ela, a amava muito. O homem, nas suas crises de ciúmes, porque ela havia sido uma moça bem bonita na juventude (algo difícil de acreditar), metia uns pontapés e queimava a ponta do cigarro nela. Ela não fumava e nem bebia, nessa época. Daí o marido teve um infarto e ficou uns três meses no hospital, e ela começou a beber e fumar em homenagem a ele. Daí, quando o cabra morreu, ela simplesmente não conseguiu mais parar. Depois, ela se casou outras vezes, teve até um filho, mas o cigarro, em honra ao único macho que a amou de verdade, ela não deixou mais.
Outro relato que escutei foi o de um rapazinho baixinho, parecia novo, bem simpático, e que costumava se sentar perto de mim. Depois descobri o que ele queria se sentando ao meu lado. O garoto, que nem era tão garoto assim, era mais velho do que eu, nunca fumava, ficava só sentindo o cheiro de fumaça dos outros fumantes. Há vício pra tudo, eu pensava. Daí ele me contou que foi seminarista, quis ser padre, ficou uns quatro anos estudando a boa teologia e filosofia católica romana, até que foi expulso porque se envolveu com outro rapazinho, como ele, do seminário. Daí ele teve uma crise de fé, e virou crente. Só que como crentes não fumam, e ele era um rapaz de espírito fraco, ele ia para a tabacaria apenas pra aliviar a sua fraqueza, mas sem cair nela. Eu perguntei se não era pecado do mesmo jeito, e ele replicou que ainda acreditava na hierarquia dos pecados, e que há alguns piores do que outros, e que contemplar um vício não é tão grave quanto cometê-lo. Eu não quis discutir com alguém tão experienciado em teologia. Só dei um chega para lá nele quando veio com algumas propostas não muito teológicas.
E tinha o cachorro, claro. Tem sempre um cachorro num lugar assim. Grandão, caramelo, sem um olho, e visivelmente velho. Ficava, como alguns clientes, transitando entre o churrasquinho do lado de fora, o bar do lado de dentro, e a tabacaria nos fundos. Ninguém sabia como esse cachorro havia aparecido ali, porque como quase todo cachorro ele simplesmente surgiu. A dona dizia que ele havia aparecido há seis meses; alguns clientes, por outro lado, diziam que tinha mais de um ano que ele pairava por ali. Eu achava curioso como ele se sentia bem, aparentemente, no meio de tanta fumaça. Provavelmente, o seu antigo dono — era um cachorro velho e que com certeza teve algum dono antes — fumava. Ele gostava do cheiro de cigarro. Ele se sentia bem no meio da fumaça de cigarro. Se pudesse, também fumaria. Se soubesse falar, também teria uma longa história — talvez a mais interessante de todas — para contar. Restava supor o que ele escondia debaixo dos olhos baixos, do focinho cansado, e da aparente tranquilidade em meio a tanta gente fumando. Eu gostava desse cão. O nome dele era Pirata, acho que por causa do olho que faltava. Bem, foi o que os outros fumantes me disseram.
Sobre mim, eu quase não falava. Quando as pessoas estão falando sobre si, dificilmente se interessam pelo que o outro tem para dizer. Eu era do tipo que escutava, um bom ouvinte, que estimulava os outros a falar, mas que quase não me abria para falar da minha própria vida. Quando me botavam contra a parede, queriam mesmo saber sobre mim, eu falava sobre minha mulher. Contava como ela veio do interior do Goiás para Brasília, do pai que morreu atropelado, da mãe que era quase dona de uma padaria, da igreja dela, de como se tornou crente, de como nos conhecemos, dos dois abortos espontâneos que teve antes de se casar comigo, e do desejo que tinha de ser mãe. E com isso as pessoas se davam por satisfeitas, como se tivessem escutado sobre a minha vida. É uma das vantagens do casamento, aliás. Você fala do outro como se falasse sobre si. Você se esconde no outro. A sua cara-metade não é exatamente um complemento, mas uma maneira de você sumir, desaparecer, dentro de outra pessoa — e para alguém que não gosta de se expor, como eu, é simplesmente maravilhoso. Se eu dissesse, por exemplo, que odeio fumantes, que tenho aversão às pessoas que fumam, que acho o ato de fumar uma atitude completamente vil de individualismo, de ódio contra si mesmo e contra o próximo, mas que me escondo disso tudo fumando, e mais: que por essa razão me apaixonei por uma mulher que pensa (abertamente) essas coisas, todo mundo acharia graça do absurdo. Mas talvez seja verdade; talvez eu realmente pense assim.
Foi nessa época, depois de muitas tentativas, que minha mulher engravidou. Fez festa, chamou parentes, irmãos da igreja, aquela coisa toda. Ria como nunca, e fiquei feliz com a alegria dela. E daí, os caras vieram com o discurso pronto: agora você precisa parar de fumar! Uma criança não pode crescer com um pai fumante. Não faz bem. É preciso dar exemplo. A minha mulher cresceu com um pai fumante, eu cresci com um pai fumante, metade das pessoas do mundo cresceram com pais fumantes, mas os pais de hoje em dia não fumam mais, claro. Só que a conversa mole termina afetando a gente, e acabei decidindo que ia parar mesmo. Fui na tabacaria, na noite seguinte, e anunciei que ia entrar num desses programas, tipo alcoólicos anônimos, mas para quem fuma. Todos eles deram risadas, conheciam bem o meu gosto pela coisa, e disseram que em dois anos ou menos eu voltaria. Era pagar pra ver, mas eu não duvidava muito disso, não.
Antes de ir embora, escutei uma freada de carro vinda do lado de fora. Eu tava nos fundos, aproveitando as minhas últimas tragadas, quando a movimentação começou, bastante intensa. Saí, e encontrei o Pirata agonizando no meio do asfalto, vomitando sangue. O filho da puta nem parou para socorrer. A dona do bar tinha saído como uma doida atrás do carro assassino. Os fumantes se reuniram na calçada, uns chocados, outros falando de levar o bicho para o hospital, mas ninguém com coragem de se aproximar. Eu cheguei perto dele, e me agachei. Os olhos do Pirata, grandões e escuros, que já contemplavam um outro mundo, desejavam me contar alguma história, longa e cheia de tristezas e alegrias, que eu nunca conheceria. Lembrei que a minha mulher disse que ela mesma socorreu o pai quando ele foi atropelado, e que ainda tentou limpar com a camiseta o rosto dele que sangrava. Coloquei meu joelho sobre o pescoço do cão e pressionei até que a dor sumisse completamente. Um ato de misericórdia. Ninguém merece terminar a vida assim. E por mais absurdo que pareça, uma porção de gente, e de bichos, acaba exatamente dessa maneira indigna, no meio de um asfalto sujo.
Os fumantes ficaram de longe observando, paralisados, meio perplexos. Não reconheciam o homem que tão friamente fazia aquilo. Acho que perceberam que sabiam quase nada sobre mim. Quando o Pirata expirou, botei a mão no bolso e peguei um cigarro, mas desisti de fumar. Decidi voltar para casa, com um gosto amargo horrível na boca, onde minha mulher grávida esperava por mim.