Maria José Leite Pereira
Olhava para sua infância e suspirava de contentamento. As narinas recolhiam o cheiro matinal do cajá que alcatifava a terra escura, os olhos carregavam o brilho da aurora jubilosa ladeando a Serra da Borborema, e seus braços delgados abriam-se como asas que cortavam o vento no fim da tarde. A infância cheirava a café torrado, fruta fresca, e peixe recém-saído do açude.
Certa noite, atravessava a Serra de Santa Luzia sob um luar quente, sentia o coração bater descompassado, e dentro do zigue-zague do asfalto que rasgava os picos mais altos da montanha sentiu seu corpo se esvair em sangue tórrido, era uma adolescente a percorrer um mundo íngreme, em estado celestial. Não proferiu nenhuma sílaba, mas em algum lugar secreto do seu âmago desejou morrer naquele instante para ser eternamente feliz.
Sinos anunciaram o meio-dia em campanários imponentes cobertos de musgo. Os grandes relógios da cidade em pedra sinalizavam o tempo em algarismos romanos, e ponteiros suspensos marcavam a mesma hora do ecrã do telefone. Similaridades. Película trincada sobre um vidro intacto, Fernanda sentia-se estranhamente feliz sob essa proteção, ela própria aprendera a usar uma segunda pele, mas nem sempre conseguia evitar o estilhaçamento da alma.
Esticou o braço direito e sentiu a rigidez dos tendões comprometidos, não sabia se seus desconfortos físicos eram causados pelo peso dos trabalhos, ou do tempo, talvez os dois; dores amenizadas com opioides eram frutos da grande metamorfose que roubou-lhe alguns centímetros de altura. Debicou um pão trincado que uma criança calma de ritalina deixou cair no parque, movimentou-se habilmente naquele panóptico, e seus olhos opacos não conseguiram fitar os olhos vidrados da menina que ria-se para uma baliza imaginária enquanto os meninos jogavam futebol.
Fernanda tivera olhos reluzentes de coruja que descobre enigmas na escuridão da noite, nascera em um ninho confortável, e cresceu em bibliotecas banhadas de sol. Um dia, à revelia dos livros de capas douradas, resolveu abandonar seu extenso território para explorar outro mundo, buscava as catedrais que estampavam seus livros, torres, bibliotecas e segredos. Deixou-se atravessar pela imensidão do oceano em busca de outras vidas, outros sonhos.
O navio naufragou, e deu por si flutuando no mar depois de ter mergulhado nas águas escuras da morte. Renasceu. E seguiu confiante pelas ruas estreitas empurrando um carrinho de bebê. Tinha uma entrevista marcada para o museu de arte sacra da cidade. Sonho realizado. Cruzou a porta do palácio imponente carregando seus certificados, maquiagens, e um chocalho infantil. Levava esperança, no peito, na mala, e na cara risonha que permaneceu no carrinho vigiada pelo pai.
Estava a ser esperada, entrou entusiasmada no gabinete amplo, e teve o rosto percorrido pelo olhar negligente da entrevistadora, sentiu-se como uma boneca de papel modelada dentro da garrafa. Sem formalidades deu-se início à prosa:
“Eu já estive a ver o seu currículo. Lamento, mas, a senhora não serve para o cargo”.
“Por quê?”
“Porque, além das qualificações académicas, precisamos de alguém que tenha força física para segurar as imagens que serão fotografadas”.
Talvez algumas palavras de insistência tenham sido proferidas, talvez tenham ficado retidas na garganta embargada da Fernanda, que manteve seus olhos fixos no blazer vermelho da outra mulher. Não tinha visto no anúncio que o requisito essencial para ser assistente técnico daquele museu era a força física. Contudo, captara o desdém no tom de voz da Senhora Doutora, e percebeu que o lugar não era seu. Sentiu as sete espadas da Nossa Senhora do Museu atravessar-lhe o coração, e viu a esperança quente lhe jorrar do peito inchado de leite.
Esqueceu-se de registar o caminho de volta, lembra-se apenas de que tinha o rosto banhado em lágrimas, a partir daí as lágrimas formaram um rio no qual aprendeu a navegar. Sabia, entretanto, que antes daquela conversa havia decorrido outra com um membro do clero, que por alguma razão a reprovou para o cargo indicado pelo centro de emprego, contudo não entendeu por que não utilizaram o telefone para evitar o constrangimento daquele encontro.
Fernanda sentiu-se desprovida de razão, e por um longo tempo experienciou uma mão pesada de Igreja empurrando-lhe para o abismo da descrença em Si. Bajulação. Para chegar a certos cargos é preciso ajudar as pessoas certas, percorrer habilmente o corredor das vaidades e atirar migalhas aos pobres que nada têm a oferecer, finalmente Fernanda entendeu a logística dos lugares marcados, nas câmaras, igrejas, e outros espaços.
Respirou fundo, e admirou o voo das andorinhas que retornavam do sul. Falou sobre os empréstimos, o preço do aluguel, reclamou do preço do cabaz, encaixou meia dúzia de comentários e assim passaram-se os dias. Era um pombo, vivia de restos. E vez por outra ainda sentia o peso do veredicto clerical sobre sua cabeça, e o ódio que como petróleo negro escorria do peito e petrificava tudo ao seu redor. Em sonhos, sombras escuras povoavam corredores de velhas Igrejas e assombravam seu coração.
Ouviu a voz do suicídio na madrugada. Buscou o Deus de Francisco de Assis, seguiu as trilhas da natureza, andou por ruas estreitas, e numa pequena capela ouviu o entoar de um Salve Regina que acalentou sua alma. Transcendeu, voltou para Deus, deixou de ficar surpresa com a quebra de promessas dos nobres cristãos. E do seu lugar de invisibilidade passou a assistir à dança das cadeiras na feira das vaidades, olhava fixamente para a hipocrisia e devolvia-lhe o sorriso.
Começou a reparar nas andorinhas como pequenas âncoras pintando o céu, ouviu o grasnar dos corvos a desfrutarem um pombo morto, saboreou o vento fresco acariciando sua tez clara, sorriu para o carvalho vestido de folhas novas. Primavera. Fernanda despertou sobre uma mola rígida do colchão a ferir-lhe as costas, achou-se desconfortável enquanto fixava as paredes escurecidas pela humidade do inverno que acabara de passar.
Seu quarto parecia um túmulo mofado com uma pequena janela para entrar a luz, tinha estado morta e não sabia, talvez sonâmbula. Mas, independentemente de qualquer arbítrio externo, sabia que seu lugar não era ali. Assim, Fernanda correu para o ponto mais alto da cidade, abriu os braços como uma jovem coruja abre as asas, libertou a dor, enxergou lugares escuros no seu íntimo, e voltou a ser quem sempre foi. Coruja, querida e astuta.
Era viajante de um comboio em alta velocidade, espreitando a vida em imagens retorcidas através da janela. Fernanda aspirou o aroma do cajá, susteve a respiração para esquecer o cheiro de mofo, deixou-se envolver pela imensidão dos sentimentos refletidos no espelho de pé iluminado pela luz do sol que atravessava a janela. No closet vislumbrou as gavetas dos acontecimentos, vazava uma lágrima daquela que aguardava a entrevista de emprego, Fernanda enxugou-a, e não chorou desta vez.