Milton Rezende
A queda
Não digo que estou no fundo do poço porque este não é mensurável e sempre se pode cair mais ainda. Mas estou numa queda livre e vertiginosa. A roupa do passado não me serve, o presente é roto e estou sem vestes para o futuro. E numa queda os laços vão-se rompendo, se dissolvendo, desagregando-se. Nenhum laço segura um homem que cai por muito tempo. A dignidade é uma palavra para pessoas de pé. Na horizontal os conceitos são outros.
Em A sentinela em fuga e outras ausências
Anímica
quando eu tinha todos os movimentos eu era sol entre nuvens aves de arribação qualquer coisa de menos sólida por haver. eu via cachoeiras em meus sonhos remanso de rios pedra grande de sentar menino florestas a esculpir.
Em Da essencialidade da água
Ódio
Ódio de tudo: de ti, de mim, da sombra no asfalto, das conversas dos vizinhos comendo churrasco e arrotando bobagens, dos barulhos no telhado, da televisão ligada em programas de auditório, dos ruídos que vem das ruas, do ambiente de trabalho, das necessidades fisiológicas dos governantes, da inteligência pedindo esmolas aos agiotas, dos restaurantes abarrotados (que raiva das pessoas perfi- ladas mastigando qualquer carne), ódio de tudo e de todos, neste momento em que faço uma análise antes de deitar o meu cansaço.
Em Uma escada que deságua no silêncio
Ser
Não tenho que estar aqui ou em qualquer parte. Não tenho porque sentir desta ou de outra forma aquilo que não sinto em mim. Nada justifica ou nega a minha existência, mas reforça a tese da inércia como norma. Mas se estou inerte a minha inércia é uma postura. É um estar aqui. O que sou é este vazio em mim. Este ímpeto não direcionado a pulsar num imenso vácuo. Um deserto interior a buscar água num deserto exterior projetado. Sou esta ânsia e esta calma. Sou uma coisa e outra e não sou nada. Sei que existo e saber isso não me ajuda (a consciência que tenho de estar acordado é a certeza que tenho de não estar dormindo). Sei que posso mudar alguma coisa, uma vez que tenho espaço físico para agir como se fosse livre. Mas nada do que eu fizesse teria significado. Seria um trocar de camisa depois de um suposto banho. Seria como atravessar a rua trazendo a outra margem dela até mim. Serei sempre eu mesmo e na pior circunstância de nada ter mudado em essência. Sou isto: Um porão vazio abarrotado de quinquilharias.
Em Areia (À fragmentação da pedra)
Utopia às avessas
Todos os espelhos foram quebrados Todas as portas estão fechadas Todos os sentimentos foram esquecidos Todas as lágrimas estão no lençol. Você sobreviveu.
Em Areia (À fragmentação da pedra)