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Descartável

Vilhelm Hammershøi, "Descanso" (1905)
Museu d'Orsay, Paris

Thiago Francisco

Há uma espécie de acordo entre nós. As coisas fazem mais sentido quando não pensamos a respeito, apenas concordamos. Eu pego o copo de refrigerante na mesa, aqueles copos descartáveis que numa apertada se quebram, e tomo uns goles. Está quente. O ambiente quente, o refrigerante quente, e aquela muvuca de moleques. Sim, é claro, ela responde, temos certas responsabilidades, afinal de contas. Responsabilidade. Eu gostaria de alguma outra palavra. Outra espécie de compromisso. Alguma coisa que não fosse tão sufocante, tão categórica. Amor, talvez. Ingenuidade da minha parte, evidentemente. Tá um calor dos infernos aqui, eu digo outra vez. Ela finge, mais uma vez, que não está me escutado.

E então, o moleque sobe no palco para fazer… Bem, sei lá o que ele estava fazendo, presumo que cantando. É um moleque mongol. Na verdade, uma escola de mongóis. Não se usa esse termo mais, é politicamente incorreto. Ela odeia quando uso esse termo. Ela odeia tudo que sai da minha boca, na verdade, tudo que sai de dentro de mim. Ela não assume, mas está louca para me ver morrendo, louca para assumir de vez a identidade de uma viúva alegre. E o moleque canta, uma música em inglês, acho, ou numa língua completamente ininteligível, e metade das pessoas prestam atenção. Bem, pelo menos as pessoas pensantes prestam atenção como se aquilo tivesse alguma importância. Eu volto ao refrigerante.

Ele passa a mão novamente na nuca dela. É um casal jovem, desses simpáticos. Estão com um outro moleque mongol, acho que irmão da moça, porque são jovens demais para terem um filho. São casados, dá para notar pela aliança. Jovens casados. O tipo de casal que você fica observando, invejando a vida deles, e eles nem se importam, porque são felizes e sabem disso. A mulher olha para trás, e percebe o meu olhar. Dá um sorrisinho simpático, meio sem graça. Eu iria gostar de ver esse sorriso outras vezes, se fosse uns treze anos mais jovem. A minha bexiga demanda atenção, e sou obrigado a me retirar. Saio para ir ao banheiro, e minha esposa me encara com desprezo quando me levanto.

Até mijar dói. Tudo dói hoje em dia, na verdade. Fico uns dez minutos de frente para o vaso. Caem alguns pingos no chão. Escuto uma zoada do lado de fora, algum teatro de mongóis acontecendo. A mulher vai ficar furiosa quando eu voltar, claro. É o que ela sabe fazer. Ficar furiosa. A moça na minha frente nunca fica furiosa com o marido, dá para perceber. Estão naquela fase, até as brigas são prazerosas. Ele não se importa de estar com ela numa escola de mongóis vendo um bando de mongóis fazer mongolices. Não se importa de tomar refrigerante quente, e nem com o calor. Não leva dez minutos para mijar, tenho certeza, e nem sente nenhuma dor. São jovens e felizes para caralho. Não pensam na morte, tenho certeza também. Eu sei, porque já fui assim. Em algum momento, nem sei quando, isso se perdeu. O nosso acordo é não pensar: simplesmente continuar. A vida é isso. Dever e responsabilidade. Tenho um filho morto, e tenho deveres. Tenho um neto mongoloide, e tenho responsabilidades para com ele. Assistir a uma apresentação ridícula é uma delas. Tenho uma esposa que me odeia há vinte anos, mas fomos felizes por outros vinte, e isso deve bastar. Tem de bastar. Quando dou uns três passos fora do banheiro, acabo urinando o que não fiz lá dentro. Que se foda, e volto para meu lugar.

A apresentação está acabando, agora a diretora da escola faz algum discurso sem sentido sobre família e afeto e, é claro, responsabilidade. A minha mulher permanece com a mesma cara que diz: ele é mais velho que você, vai acabar, vai acabar primeiro, e você será livre outra vez. Eu tive uma emergência, digo, perdi alguma coisa? Nada de importante, ela responde. Nada que valesse a pena para você. Você não está nem um pouco feliz de estar aqui, então não perdeu absolutamente nada, ela termina. Felicidade. Não imaginava que a minha felicidade também estivesse sendo requisitada. Não sabia que ela era parte da responsabilidade. Não digo isso, obviamente. Fico calado, observo o meu copo descartável amassado. Termino de destruí-lo com o meu punho. Não quero arrumar outra briga inútil com a mulher que, daqui a alguns anos, fará o meu funeral.

O meu neto chega, feliz, felicíssimo. Um sorrisão de um lado a outro. Ele, com essa aparência de asiático que deu errado, não se parece em nada com o meu filho falecido. Somente a sua voz, doce, mesmo numa linguagem embolada e pouco coerente, se assemelha com a do meu filho falecido. Ele me abraça, beija, gosta de mostrar afeto. O moleque me adora. Eu retribuiria o sentimento, se fosse capaz de sentir algo, se não tivesse perdido essa capacidade também. Se ela não tivesse sido suplantada por dor, luto, ressentimento, e um punhado vergonhoso de autocomiseração. Você gostou da apresentação, vovô? Gostou de me ver cantando, vovó? Você me viu no teatro, vovô? Claro que ele gostou, meu anjo, a minha mulher responde por mim novamente, ele amou. E você é simplesmente incrível! Ela adora fazer isso, responder como se falasse por mim. Eu a interrompo: foi a apresentação mais linda que seu avô já viu, eu digo, os olhos marejados, genuínos com a dor que voltou à bexiga. Ele me abraça de novo. O casal na nossa frente, atento à cena, faz expressão de fofura. A moça faz um coração com as mãos para mim. O rapaz sorri, contente, genuíno, sincero. Eles não fazem ideia do que os espera.

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