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As quatro estações em 24 horas

"Aves e flores das quatro estações", sec. XVI, Japão.
The Metropolitan Museum of Art

Luiz Renato de Oliveira Périco

Conhecida como a forma poética mais curta do mundo, o haikai (ou haicai, que é a forma aportuguesada “correta”) é originário do Japão e tem uma longa história (que não cabe entrar em minúcias aqui). Em sua forma clássica, ele tem 17 sílabas, em três versos de 5, 7 e 5 sílabas, respectivamente, faz referência a algum elemento da natureza, frequentemente às estações do ano (que são bastante distintas e típicas no Japão) e é escrito para registrar o “agora”, o presente. Não são incomuns as comparações entre o haikai e a fotografia. Inserido no contexto do xintoísmo e do zen budismo do Japão histórico, que não vê natureza e homem como coisas distintas, o haikai tradicional propõe uma contemplação humilde e atenta da natureza para captar algo do momento e retratá-lo de modo simples e conciso.

O haikai chegou no Brasil no começo do século XX e, assim como fizemos com a comida japonesa, tratamos de dar a nossa cara a esse poema curto. Talvez seja o caso de dizer que não há um haikai abrasileirado, mas diversos tipos de haikais brasileiros, que variam desde a proposta mais apegada à tradição, praticada especialmente pelos haicaístas (haijins) de ascendência nipônica, como o mestre Masuda Goga, até a proposta dos haicais de Guilherme de Almeida, que inseriu rimas e títulos (que os haikais japoneses não têm) para abrasileirá-los, passando pelos haikais de Leminski, que misturam referências japonesas, da poesia concreta, do pop e da contracultura para fazer poemas descolados. Vejamos abaixo uma amostra de cada autor citado.

De Masuda Goga:

Em cima do túmulo,
cai uma folha após outra.
Lágrimas também...

De Guilherme de Almeida:

INFÂNCIA

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".

De Leminski:

a palmeira estremece
palmas pra ela
que ela merece

Entrei em contato com os haicais através do poeta Guilherme de Almeida, no cursinho pré-vestibular, e desde então sou apaixonado por eles. Mais que uma forma poética, o haicai é (e para os haicaístas tradicionais, efetivamente o é) um estilo de vida, um estado de espírito.

Há na internet duas apresentações bem acessíveis ao haicai que eu considero de qualidade, embora simples. A primeira está no Portal Nippo Brasil e foi escrita pelo haicaísta Edson Kenji Iura na seção “Pétalas ao Vento”. São vários textos curtos e simples, mas muito bons. Leia aqui.

A segunda está no site Caqui, totalmente dedicado ao haikai, e também é muito boa (leia aqui). Nesse mesmo site Caqui há o texto clássico do mestre Masuda Goga, “O haicai no Brasil – História e desenvolvimento”. Nele, o mestre do haikai Goga apresenta um texto relativamente curto, mas bastante informativo e importante para quem quer se inteirar da história dessa forma até o momento em que o ensaio foi originalmente publicado no Japão, em 1986. Leia aqui.

Ainda sobre Goga, o belíssimo documentário curta-metragem Masuda Goga – Um discípulo de Bashô vai encantá-lo.

Para quem quiser se aprofundar em livro, a recomendação óbvia é Haikai. Antologia e História, de Paulo Franchetti e Elza Taeko Doi (Editora Unicamp), que conta com textos teóricos profundos, mas agradáveis, e traduções de 107 belíssimos haikais de nomes importantes da poesia japonesa, com comentários a alguns dos poemas.

Por fim, uma dica para um fim de semana livre: o anime Palavras que borbulham como refrigerante, que pode ser visto na Netflix. A partir da história de dois adolescentes da geração Z, o desenho mistura haikai, city pop, redes sociais, tradição japonesa e pichação, em uma história bem divertida mas não entediante.

Compartilho aqui alguns haikais do meu novo livro kairós (Patuá, 2023). A segunda parte dele, chamada “As quatro estações em 24 horas”, é toda dedicada a haikais. Lembrem-se: não é por serem curtos que exigem menos atenção.


Dez haikais

perdi o sono
se alguém encontrá-lo
saiba que ele tem dono

um passarinho
invadiu minha casa - 
ou eu seu ninho?

duas crianças
brincam na poça d'água -
tantas lembranças...



kanjis e flores - 
a moça tatuada
é um sumi-ê

pardais na fiação -
são notas da partitura
da própria canção

chuva pesada -
enquanto a gente anda
a gente nada

de novo, a insônia -
e alguém trabalha com sono
lá no Japão

uma pintura -
pontilhada de estrelas,
a noite escura...

olha o passarinho - 
a criança sai na foto
olhando para o alto

risos na mesa - 
ainda não aprendi
a usar o hashi

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