Marcos Souza
Lollitd era uma artista em ascensão que, surpreendentemente, apareceu em visita à cidade decadente. As suposições eram a de que ela estaria indo para lá em busca de fortalecimento espiritual e apreciação existencial a um povo remoto, ímpar, desconforme. Por isso escolheu a esquecida cidade para sua turnê sabática. Se era artista, certamente tinha uma perspectiva e uma observação crítica diferenciadas, sobretudo nas suavidades imperceptíveis e nas paisagens comuns; logo, não poderia se comparar aos olhares toscos e incompletos das pessoas normais, as desprovidas do capricho sensorial.
Ao tomarem conhecimento da ilustre presença, a mídia e os fãs da alta cultura se debruçaram em pesquisar a história de Lollitd e suas obras, pois os habitantes decadentes da cidade decadente se importavam bastante com a recepção dos estrangeiros, mais até do que com a de seus irmãos conterrâneos. O mais popular e decadente jornal da cidade se deu ao trabalho de desvendar quem seria essa tal de Lollitd: encontraram uma única rede social, com poucos seguidores, umas fotos adornadas de brilhos e poses e uma descrição de sua primeira obra artística a ser lançada, chamada genderfluid. Logo abaixo da descrição, havia uma bandeira do País de Gales com a localização da capital, a cidade de Cardiff.
Um jornalista decadente se atreveu a mandar uma mensagem pessimamente traduzida em inglês para ela e, após obter uma imediata e seca resposta, sentiu um tal deleite que poderia se dominar de gozo social, porque teria uma matéria explicativa sobre a visita de Lollitd e sua inestimável arte. O jornalista publicou um artigo vago de detalhes biográficos da artista e de sua arte, mas farto de polêmicas para um dia simples na cidade. Assim funciona a mídia local: a decadência é um luxo se manejada com a malícia necessária, e requer artimanha para estar em evidência.
Lollitd era galesa, motivo de enlouquecimento dos vira-latas. Porém, tinha uma característica que polarizava os decadentes da cidade: a moça tinha o gênero fluido, algo novo para aquela decadente metrópole. Quer dizer, novo ou ignorado. De qualquer forma, era um tema complicadíssimo de mensurar em definitivo; a partir dessa identidade de gênero Lollitd estava criando uma obra que, em breve – não se sabia quando –, seria apresentada ao público: genderfluid. Em português, gênero fluido. A artista não respondeu com clareza de que forma a obra seria expressa: através de uma pintura, um romance, um livro de fotografias, uma peça teatral, um ato de protesto…
Algumas horas depois de o artigo do jornalista ser publicado, causando um alvoroço desmedido entre os citadinos, os “influenciadores” e entendedores dos assuntos acerca de Lollitd assumiram a importância de suas vozes para tirarem as conclusões concretas do caso. “Pode-se dizer que gênero fluido é a condição de uma pessoa que não está fixamente atrelada ao gênero masculino e feminino, tramitando ora num, ora noutro. Ou seja, é uma pessoa que não se identifica como cisgênero (que é o gênero de nascença), nem como transgênero (que é o gênero diferente do de nascença). Gosto de utilizar o termo intersexo”, concluiu um doutor especialista no assunto.
Bem, sua sólida formação acadêmica não o impediu de receber uma enxurrada de críticas desvairadas. “Onde já se viu uma pessoa não ser homem nem mulher! Só pode ser bicho, então”, esbravejou um indignado especialista popular de coisas de gente honesta num vídeo bastante difundido pela cidade. Os comentários na boca do povo iam de um deboche preconceituoso à defesa da jovem com uma anêmica argumentação. De um lado, um grupo que não aceitava o diferente; do outro, um grupo que repetia como rebanho uma reverberação idiotizada; abaixo, o público decadente via aquilo como uma notícia rotineira, cheia de verdades duvidosas e mentiras convincentes.
Lollitd falou publicamente somente uma vez, por vídeo. Depois disso, nem sequer as mensagens em sua rede social ela respondia, apesar do crescimento vertiginoso de curtidas, comentários e seguidores. Em pouco tempo, a artista teve um impulso de milhares de seguidores decadentes e, alguns dias depois, conseguiu um selo de verificação que comprovava sua relevância e a tornava merecedora das glórias artísticas. Retornaria ao País de Gales pronta para produzir sua primeira e clássica obra.
Antes de o vídeo se perder neste escrito como se perdeu da vista do povo, eis o que apressadamente ele dizia, com um português malmente decorado: “Olá, pessoal. Amo esta cidade. Obrigada, meus fãs, pela recepção. Amo esta cidade. Viva Lollitd! Obrigado!” O vídeo foi uma fagulha numa casa encharcada de combustível para os citadinos decadentes, extremando adoração infundada de uma parte e raiva incontida da outra. Um lado encenava uma obsessão doentia por crianças; seus seguidores diziam, eufóricos, sob o mais fútil pretexto: “protejam nossas crianças. Não é por nós, é por elas”. No íntimo, esmurravam seus filhos e os obrigavam a ser uma continuidade do que eles próprios eram. O lado falsamente oposto também encenava uma nivelada hipocrisia. Seus seguidores se utilizavam de uma sensatez vazia e pedante para alavancar o discurso professoral e as carreiras, berrando: “precisamos mudar o sistema e as mentes atrasadas; a arte é a base de tudo!” No íntimo, desejavam agradar seu núcleo.
A classe média, sim, fio condutor de nossa decadência crônica, usava os discursos pacificadores como escudo para seus próprios ganhos. Esse segundo lado é o mais perigoso porque, ao contrário do primeiro – que diz sem saber o que diz –, ele sabe muito bem e faz questão de cultivar um sonho que não mexa com sua autoridade nem ponha em xeque seus privilégios. Uma relação de simbiose, harmoniosa: a ação de um lado depende do outro. Quanto mais barulho, menos pensamentos.
A cidade decadente transitava sobre esse dilema moral ao qual todos pensavam estar submetidos. A curta hospedagem de Lollitd originou um furdunço generalizado, só se falava nisso. Os políticos decadentes da cidade discutiram a possibilidade de oferecer o título de cidadã a Lollitd, de nomear a mascote de um evento cultural da cidade com o mesmo nome, de organizar uma galeria com as produções da visitante. Uma pena ela não ter publicado nenhuma obra até então em sua rica astúcia artística. Um lado organizou uma festa de despedida no aeroporto para fazer uma homenagem à consagrada artista. O outro sistematizou um ataque virtual ao perfil das redes sociais de Lollitd, espalhando em abundância uma imagem falsa da jovem onde ela expunha uma tatuagem com um símbolo nazista na panturrilha esquerda. Os de baixo dividiam a atenção entre acompanhar, estonteados, a polêmica e trabalhar incessantemente. Diziam coisas como: “viu, uma nazista veio doutrinar nossas crianças pro comunismo e pra ideologia de gênero”, “lá se vai pro País de Gales uma artista revolucionária, espero que um dia volte”, “onde fica essa tal de Gales, país comunista?”
Lollitd saiu da cidade com umas honrarias de causar inveja aos artistas locais, embora não tenha estado presente em todas as homenagens recebidas. Inclusive, no aeroporto, conseguiu driblar os fãs ensandecidos sem dar justificativas ou mais agradecimentos. As redes sociais cessaram de quaisquer movimentos; nada de fotos estilosas ou vídeos em outros países. Pelo visto, o ano sabático era um ano em que ela decidira viver como artista. Ao término do roteiro, talvez tivesse abandonado as ambições artísticas, pois desapareceu.
O povo decadente continuou a brigar por ninharias. As semanas posteriores ao caso seguiram num bafafá agoniante dos lados e de baixo; hoje, os decadentes já não se lembram de nada. É assim: eles se arengam como irmãos, declaram a morte dos mitos rivais, juram para si uma vingança para todos verem a burrice de seu inimigo, mas permanecem inabaláveis na mesma dança, mesmo se odiando, odiando a respiração e tudo o que o outro lado representa… Enfim, esquecem. Tudo se esquece, para que os problemas se renovem e prossiga o bate-boca interminável e insolúvel. Lollitd concluiu sua passagem pela cidade sem se adaptar ao ar decadente inalado durante a ligeira estadia. Ali, a decadência é um vírus peçonhento e contagioso, apesar de o contato com a cidade ser reduzido em breves dias.
Lollitd não teve desfecho trágico ou finais emocionantes, como é na vida, afinal, e de fato, e sempre, e tanto. E lamentavelmente, uma gaulesa, uma artista sem obra e que desfrutava de um ano sabático é tão dissemelhante ao citadino decadente que parece haver uma redoma de vidro separando a cidade do resto do mundo. Inclusive, a redoma de vidro (decadente) seria uma excelente ideia de escultura para a primeira obra de Lollitd.