Luis S. Krausz
I
“Há nas coisas sempre muitos detalhes. Detalhes minúsculos, cada vez mais minúsculos das coisas. Pedacinhos cada vez menores e cada vez menores das coisas, que parecem contar alguma coisa da coisa, a tal ponto que há muita gente que se confunde: o mínimo detalhe é confundido com a coisa em si. O detalhe: algo que foi talhado da coisa, isto é, fez-se um talho: de um lado, a coisa. De outro lado, o pedacinho que foi talhado da coisa. Foi talhado? Ou já estava separado? Talhado significa, também, adequado, apropriado, próprio. Feito sob medida: com toda a atenção ao detalhe. Como na boa alfaiataria, é uma questão de detalhes. Há quem diga: Deus está nos detalhes. Há quem diga: o diabo está nos detalhes. E quem souber qual das duas afirmativas está certa, está enganado.”
“Está enganado?”
“Onde está um, está o outro. Eles são inseparáveis! Eles são as duas metades de todos os detalhes. E se os detalhes são tudo, o que isto significa é: tudo são detalhes. Os detalhes: tão irrelevantes! Tão importantes.”
“Como é possível alguém dizer: ‘onde está um está também o outro?’ Negar a separação é a teologia da perversidade.”
“Separação? Eu ouvi: separação? Um está de um lado e o outro está do outro lado? Isto é o que significa separação. Mas os dois lados são os dois lados de uma mesma coisa. Uma única e mesma coisa. Uma coisa que é um pedacinho de outra coisa: um detalhe. Uma faísca. Cada uma dessas faíscas é imperfeita, mas cada uma dessas faíscas é uma faísca. Uma faísca tem luz própria. Uma faísca brilha porque é um detalhe e os detalhes brilham como se fossem as próprias faíscas.”
“Faíscas, sim, detalhes.”
Era o ano de 1981.
Era quase dezembro.
Era meio-dia e a fúria do sol estava em seu auge e a cidade se entregava ao calor, à pressa. Tudo parecia urgente.
Mas, na Cidade Universitária, tinha-se sempre a impressão de estar a um passo de distância da cidade: era como se a pessoa estivesse em São Paulo – pois era São Paulo o que se via ali na frente, aquelas colinas verdes, o Alto de Pinheiros e o Alto da Lapa, encimadas por umas antenas enormes e por uns prédios, além dos quais já não se via mais nada: só esse céu de quase dezembro, azul, que parecia chegar a seu ponto máximo de afastamento da terra, repelido por grossas colunas de ar quente, que subiam do asfalto, do cimento, dos gases que vêm da queima de óleo diesel e de gasolina. E umas nuvens brancas, nervosas, arredondadas, dessas que parecem não ser de nada e que, do nada, se intumescem: ficam cinzas, ficam roxas, ficam pretas, estala um raio. E desaba a tempestade.
O aguaceiro lava a face do mundo.
Ao fim, todos respiram, aliviados.
É um alento.
Além disto, há a piscina da Cidade Universitária.
É possível fugir para lá sempre que as coisas se tornam insuportáveis.
Ou quase sempre.
O sol a pino atravessa a água da piscina olímpica e se reflete no fundo de azulejos brancos. A água parece uma espécie de aguardente azul anil.
Há um licor cujo nome é: Blue Curaçao.
É feito de agave e de laranjas.
As garrafas de Blue Curaçao, expostas nas prateleiras de supermercados de frias cidades europeias, parecem conter a luz e o calor do Caribe.
A água da piscina da Cidade Universitária tem uma cor: a cor do Blue Curaçao.
Fugir é sempre uma opção.
Foge-se do frio para uma temporada no Caribe.
Ou para um porre de Blue Curaçao.
Foge-se do calor de quase dezembro para a piscina que tem a cor azul do Blue Curaçao.
Convenientemente dispostos em relação à piscina da Cidade Universitária estão os prédios das diferentes faculdades.
Nem todas as faculdades, porém, têm prédios.
A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, por exemplo, tem um prédio que, no entanto, abriga só um
pedaço de si mesma.
Quanto aos outros pedaços, há uns galpões bem desleixados, que foram construídos às pressas e de má vontade, e que ocupam espaços que deveriam ser áreas verdes em meio a edifícios, que deveriam abrigar moradias de estudantes, mas que permanecem, em parte, em forma de grandes esqueletos vazios, de concreto, que assustam quem os olha, e que, em outra parte, foram destinados a outros usos.
São detalhes.
A esses galpões dá-se o nome de colmeias porque elas têm, de fato, a forma de hexágonos, como os favos de uma colmeia.
E o mel que ali se destila é o mel da literatura!
O mel da literatura.
A pessoa prova de um mel assim e aquilo fica zumbindo na sua cabeça de uma tal maneira que acontece algo que é verdadeiramente simples: a pessoa não se esquece mais daquilo. Ela se lembra desse canto e esse canto, por sua vez, traz, em suas dobras, a memória de tudo.
Não é o que foi o que é trazido: é a memória. Porque a memória sabe tudo o que foi e por isso conta sempre a
verdade. Como uma neblina que desce aos poucos do céu, encobre as coisas desse mundo e embaça seus contornos. Passa algum tempo e tudo o que se vê é essa neblina. Despidas de suas aparências habituais, as coisas ficam veladas por essa neblina.
É também a uma espécie de véu que pode ser comparado aquele algo inominável que parece sempre estar pairando entre a superfície embaçada dos olhos do Prof. Mattos e a opacidade das lentes muito grossas dos óculos do Prof. Mattos.
Por décadas e décadas, fez-se tudo o que era possível fazer para ignorar, obliterar, remover os vestígios da literatura, vista como um mal na República dos Engenheiros.
Aos engenheiros cabe uma gloriosa tarefa: a construção do futuro.
Se alguém perguntar: “quem os incumbiu de tal tarefa?”, haverá alguém capaz de responder a uma pergunta como essa?
Na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo ensinam-se, como se sabe, muitas técnicas.
Por meio dessas técnicas, o homem submete a natureza a seus desígnios e por meio dos seus desígnios o homem submete, igualmente, o tanto de natureza que traz em si mesmo.
E o seu próprio destino.
Há verdadeiros campeões de submissão.
Nem sempre são pessoas agradáveis.
Não querem: mandam.
Não pensam: sabem.
São homens de ciência e a ciência, como se sabe, é objetiva: repousa sobre verdades matemáticas.
Na matemática há certezas: não discussões.
E alguém, sabendo da verdade, economiza tempo para si mesmo e economiza, também, tempo para os outros.
Portanto, é melhor que se fique sabendo logo.
Quanto mais tempo for capaz de economizar, maior será a velocidade de tudo o que gira e gira, o tempo todo,
em torno de si mesmo, cada vez mais depressa, cada vez mais depressa, como num carrossel enlouquecido cujos
delicados cavalinhos tivessem se transformado em touros atormentados, que esperneiam e corcoveiam, e ora empinam suas patas traseiras e ora empinam suas patas dianteiras e ora erguem seus chifres para o céu.
Acaba voando para algum lugar que é bem longe a pessoa que vai sentada sobre uma montaria assim.
Alguns desses galpões em forma de favos foram destinados a abrigar a biblioteca de Letras.
E os livros que há na biblioteca de Letras são livros antigos: livros que foram adquiridos, principalmente, nas
décadas de 1930, 1940 e 1950, na França, num tempo em que eram os franceses quem davam as cartas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Esses livros franceses têm um cheiro peculiar e o cheiro peculiar desses livros franceses paira no galpão abafado
para o qual eles foram enxotados daquelas bonitas prateleiras de imbuia maciça sobre as quais tinham passado seus anos de glória, na Rua Maria Antônia, em Santa Cecília.
Fala-se, com frequência, do exílio.
Não são só livros da biblioteca de Letras que vivem no exílio naqueles galpões.
Há também, por óbvio, pessoas, ali. Pessoas às quais se dá a entender, sem nenhum tipo de ambivalência: não são desejadas. São detestadas porque merecem ser detestadas. Isso se torna, como se fosse, uma questão de justiça.
Portanto, para frequentar a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP a pessoa precisa ter um
pouco de ousadia.
Fica bem frequentar um lugar assim?
Não fica.
Os favos das colmeias são ligados uns aos outros por uns caminhos de cimento, como se fossem calçadas. Essas
calçadas são ladeadas pela terra nua. Sobre a terra nua brotam as ervas e o mato.
Quando chove, aquilo tudo se alaga. Quando chove muito, a água transborda das grandes poças e cobre as calçadas.
Os favos das colmeias se tornam ilhas.
Às vezes, nem mesmo essas ilhas ficam a salvo da água e do lodo.
E, então, as aulas são suspensas: a pessoa se deu ao trabalho de ir até ali e dá com os burros n’água.
São essas as chuvas que, silenciosamente, se formam naquelas nuvens muito altas.
As nuvens sob o sol do meio-dia engordam como grandes tumores.
É uma gente esquisita que frequenta aquelas calçadas.
Há, ali, velhos professores.
Gente que veio de lugares esquecidos na escuridão do tempo.
O mundo é feito de escuridão.
Em plena luz do dia, sob o sol do meio-dia de um dia de sol claro e de céu brilhante, em dezembro, ou quase, há
luz por toda a parte: tem-se a impressão de que a verdade foi escancarada.
Tanta luz, tanto sol, tanto calor que as pessoas chegam a arreganhar os dentes, como cachorros que mostram os
dentes ao se sentirem ameaçados.
Há quem pense que estes cachorros estão rindo.
E há, de fato, cachorros que, de tanto olharem para as pessoas que lhes sorriem, acabam, eles mesmos, aprendendo a sorrir.
Há cachorros e há cachorros.
Há cachorros que frequentam aquelas calçadas que levam de um a outro dos favos das colmeias.
São cachorros que retornaram à vida selvagem. Vivem em matilhas pelo campus da Universidade de São Paulo. Caçam juntos. Comem juntos. Procriam. Formam, feitas as diferenças, famílias, das quais ninguém poderia, de fato, dizer: são boas famílias. Mas uma família é uma família e, segundo se diz, uma família merece respeito. Uma família se constrói e uma matilha de cães que retornaram à vida selvagem se constrói.
Talvez fosse mais certo dizer: uma matilha de cães que vivem na vida selvagem, porque esses cães, é certeza, nasceram ali. São os netos e são os bisnetos e são os trisnetos de outros cães, que vieram parar ali, sabe-se lá como: uns pela fome e uns pela sede; uns pelo fogo e uns pela espada; uns pela doença e uns por epidemias.
Tendo vindo de onde vieram – ninguém sabe dizer de onde! –, lá ficaram.
Vivem ali, à volta das colmeias, como se fossem abelhas.
Os livros franceses e o aroma estranho que se desprende dos velhos livros franceses: aquilo está ali há décadas, à
espera de ser esquecido.
Quem se interessa por livros como aqueles?
Só gente esquisita.
Pois não é verdade que o ritmo da vida é pulsante e não é verdade que, quanto mais pulsante, melhor?
Para a frente.
Prá frente!
Um grande triunfo um dia se anunciou.
Um triunfo assim deixou órfãos.
Como órfãos caminham por ali velhos professores.
Paira à sua volta um ar de desamparo.
Eles andam acabrunhados pela sensação de serem criaturas que pertencem a um mundo extinto e esvoaçam por
aquelas colmeias como fantasmas simpáticos, tão inofensivos quanto leões velhos, desdentados, reumáticos.
Alguns carregam, silenciosamente, algum tipo de revolta.
Sempre silenciosamente.
Como convém às pessoas corretas, educadas.
Às vezes desatam a falar.
E como falam, então!
Falam da França, por óbvio, a França.
É na França que obtiveram seus mestrados e é na França que obtiveram seus doutorados.
É na França que pensam quando dizem: Universidade.
É na França que eles sonharam com carreiras iguais às dos grandes professores franceses, dos quais foram alunos.
Pelas calçadas que levam de um favo da colmeia a outro favo da colmeia e pela terra cheia de mato que se transforma em lodo sempre que chove forte passam cachorros.
Às vezes, algum deles entra numa das salas de aula porque, na maior parte das vezes, encontra aberta a porta envidraçada, por causa do calor. Durante o dia o sol despeja a fúria dos seus raios sobre as lajes de concreto que cobrem as colmeias. Durante a noite, o calor acumulado pela laje se irradia para o interior das salas de aula.
Ainda assim, o Prof. Mattos não dispensa o paletó.
Não é um paletó novo e, mesmo quando foi novo, não foi um paletó bonito. Ainda assim, é um paletó. É feito de tecido sintético que brilha sob a luz áspera, esbranquiçada-azulada das lâmpadas fluorescentes. É um tecido áspero, que tem uma espécie de relevo, como uma folha de papel quadriculado cujos quadradinhos tivessem, em sua superfície, regiões mais elevadas e depressões. Conforme a luz incide sobre esse tecido, ele parece mais cinza ou parece mais esverdeado. Às vezes brilham, ali, umas tonalidades de marrom, que logo voltam a desaparecer. É como se fosse uma espécie de luminoso que brilha na noite e anuncia: a feiura.
Ainda assim, um paletó é um paletó e quem veste um paletó se coloca numa posição que é diferente da de alguém que está sem paletó.
Apesar do calor, o Prof. Mattos apresenta todas suas aulas vestido com um paletó.
Há outra coisa que o acompanha, sempre: a fumaça do cachimbo que ele fuma enquanto apresenta suas aulas.
É uma fumaça azulada e perfumada a do tabaco da marca “Irlandez” com o qual, a cada tanto, o Prof. Mattos enche seu cachimbo. É toda uma série de gestos que se repetem, sempre iguais a si mesmos: encher o bojo do cachimbo com a quantidade certa de tabaco, nem demais, nem de menos: a quantidade certa. Quem sabe esta medida? “O polegar da mão esquerda do Prof. Mattos!”
Enquanto sua mão direita segura o cachimbo, o polegar da mão esquerda aperta sua polpa macia sobre o tabaco
que está no bojo do cachimbo e essa polpa macia é como se fosse um instrumento de precisão: o que ela sente ali, ao encostar no tabaco seco e picado, corresponde à quantidade certa: a justa medida.
Quem tem na polpa do polegar da mão esquerda a justa medida, tem sorte.
Uma vez que tenha sido encontrada a quantidade certa de tabaco, aplica-se com esta mesma polpa do polegar
esquerdo uma pressão sobre o tabaco: ele nem pode ficar solto demais, nem pode ficar compacto demais. E, quando chega a hora certa, nem antes, nem depois, acende-se o cachimbo. E também, para isso, como em todo ritual, há o momento adequado e há o gesto consagrado.
Num ritual, tudo o que importa são os detalhes.
Rituais são feitos inteiramente de detalhes: o gesto certo, sob a luz certa, no momento certo.
Disto fazem-se muitas coisas, ainda que isso, por si só, talvez, de fato, não seja nada. Pois o que se busca por meio do ritual é: nada. É um espaço. Um fôlego. Um pouco de ar. É como uma flor que brota num lugar inesperado. Porque quem olha para a flor não vê a planta da qual ela nasceu. Não vê suas raízes, que mergulham na podridão e na imundície, lá onde a força dos vermes parece inesgotável: seus corpos gelatinosos se enfiam com voracidade em tudo o que um dia viveu.
A tudo estraçalham.
Até os corpos de grandes reis e de grandes rainhas, que repousam em grandes criptas, em catedrais europeias feitas de pedra, chumbo e vidro. Até os corações – os corações! – de grandes reis e de grandes rainhas, que repousam, nessas criptas, em grandes relicários de prata, que têm a forma de taças.
O coração é algo que o homem carrega no peito, para cá e para lá, e o coração está para o homem assim como a flor está para a planta: não há quem possa entendê-lo em seus caprichos, em suas delicadezas, todas elas feitas de detalhes.
Como era um capricho do Prof. Mattos esse de fumar o cachimbo e viver seus dias rodeado por uma nuvem de fumaça aromática e pelo aroma com o qual essa fumaça impregna tudo: a roupa do Prof. Mattos, por óbvio, mas também seus cabelos, sua barba, sua pele, seus livros.
É como se, de tanto estar rodeado pela fumaça e pelos vestígios da fumaça, o Prof. Mattos parecesse, aos olhos de quem o olha, uma imagem fora de foco do próprio Prof. Mattos.
Para reforçar esta impressão estão lá, sempre, sempre, os pesados óculos de grau do Prof. Mattos: uma grossa armação de acetato preta que põe diante de cada um dos seus olhos um retângulo com cantos arredondados e no interior de cada um desses retângulos, que parecem telas de TV em miniatura, embaçadas, está uma lente trifocal, amarelada, sobre a qual, à medida que ele vacila com a cabeça, a luz se reflete de mil maneiras diferentes, pois as janelinhas dessas lentes, nas quais estão engastadas duas pequenas lentes secundárias, agem como prismas: partem os raios de luz em milhares de pedacinhos, em faíscas que têm as sete cores do arco-íris. E o que se vê em cada uma dessas telas é a imagem desfocada de um olho, um olho castanho, amendoado, cujo branco é amarelado-avermelhado, que olha através da neblina, da fumaça, da distância.
Um olho do qual não se vê o brilho.
E quanto às coisas que aqueles olhos veem, elas tampouco pareciam brilhar.
Isso parece falar do caráter ilusório que os olhos de um filósofo veem em tudo o quanto veem.
O Prof. Mattos é estudioso de filosofia grega.
Ele é, também, professor de filosofia grega e de literatura grega.
Em sua aula de hoje, ele fala sobre a filosofia grega, isto é, fala sobre as origens da filosofia grega, que está nos cultos a Apolo: “Não seria um exagero dizer do culto a Apolo que ele estava entre os ideais mais elevados e mais sublimes da cultura da Grécia arcaica”, diz o Prof. Mattos.
Ele apresenta um curso que tem como tema a Ilíada.