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FICA 2024, Diário de viagem, dia 4

(Foto: divulgação)

Miguel Forlin

Como prometido anteriormente, usarei o texto de hoje para comentar brevemente sobre De longe toda serra é azul (2003), de Neto Borges, o documentário a que assisti ontem (13/06). De longe toda serra é azul conta a história de Fernando Schiavini, sujeito que dedicou a maior parte de sua vida à proteção dos povos indígenas (o documentário é uma adaptação do livro homônimo que Schiavini escreveu acerca de suas experiências e observações como indigenista ao longo de mais de 40 anos).

De todos os filmes que vi até o momento (nesse caso, “até o momento” diz respeito ao instante em que os créditos finais de De longe toda serra é azul aparecem na tela), o longa de Neto Borges é, sem sombra de dúvida, o que mais se assemelha a uma produção profissional. Diferentemente dos demais, que, em um momento ou outro, ou até mesmo em sua inteireza, deflagravam certo amadorismo (por “amadorismo”, refiro-me à inexperiência dos seus realizadores e/ou a condições mais precárias de trabalho), De longe toda serra é azul parece ter sido produzido e realizado em circunstâncias ideais (aliás, ele tem nomes bastante conhecidos, como Caio Blat, responsável pela narração em off, e Zeca Baleiro, que compôs a trilha sonora).

No entanto, isso não foi suficiente (nunca o é) para que o resultado se mostrasse satisfatório. Infelizmente, Schiavani e Borges incorrem no erro mais comum a obras tematicamente similares (a idealização e o elogio irrestrito ao objeto de defesa, como se só dessa maneira a causa pudesse ser legítima – o que é um absurdo). Além disso, Borges exagera no uso de drones (seria o abuso de planos aéreos e gerais uma mácula no olhar? Uma dificuldade de saber o que registrar? Possivelmente…) e no uso da trilha sonora (a qual, inclusive, soa, e de forma não proposital, alheia e indiferente às imagens).

Para piorar, todas essas impressões foram potencializadas pelo filme a que assisti no quarto dia (14/06), a sessão mais esperada do FICA 2024: Antonio Candido, anotações finais (2024), do gigante Eduardo Escorel (lenda viva, Escorel encarna o apogeu do nosso cinema – falo do Cinema Novo, é claro). Ao que tudo indica, Escorel também realizou o seu longa em circunstâncias ideais, mas, ao contrário de De longe toda serra é azul, Antonio Candido, anotações finais é um acerto do início ao fim (a começar por sua estrutura narrativa, emprestada de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis).

Nele, o objeto de interesse, o também lendário Antonio Candido, não aparece de maneira idealizada ou falsa, mas, sim, de maneira real e desnuda (ele chega, inclusive, a emitir opiniões políticas polêmicas); o olhar é direcionado, seleto e rigoroso (Escorel percebeu precisamente quais foram as principais preocupações de Candido em seus últimos meses de vida e focou somente nelas); e a trilha, íntima e minimalista, não só acompanha com harmonia as imagens, como também as engrandece, dando-lhes ainda mais sentimento e força. É, não adianta, o que se faz com o que se tem é o que dita a qualidade de algo…

Escrevivências (foto: Vinicius Schmidt)

Mas, como nem tudo foram sessões de cinema no meu quarto dia em Goiás Velho, não posso deixar de falar do encontro que tive com o Rodrigo Cássio Oliveira, intelectual brilhante (o Rodrigo é professor na UFG e autor de um livro obrigatório sobre o cinema do Glauber Rocha – Razão em Transe: o Barroco e o Cinema de Glauber Rocha) e amigo de longa data. O Rodrigo veio para mediar um debate no dia 15 e acompanhar o festival até o dia 16, data em que voltará a Goiânia.

Ao longo de praticamente todo o dia, ele, o Fabrício Cordeiro e eu andamos pelo centro de Goiás Velho, assistimos ao documentário do Escorel (o Escorel montou alguns dos filmes do Glauber, e a presença dele e do Rodrigo no mesmo local foi um daqueles momentos mágicos em que cinema e academia habitam o mesmo espaço físico) e conversamos sobre os mais diversos assuntos (conversa regada a muitas risadas, obviamente!).

Quando nos despedimos, estávamos exaustos, mas não por causa de um dia puxado e difícil; pelo contrário, estávamos exaustos porque o dia fora imensamente agradável e proveitoso. O cansaço que se abateu sobre nós se deu por termos vivido um dia bem e de modo pleno, como deve ser. Ao me sentar para escrever mais uma das páginas deste meu diário de viagem, senti estar aproveitando, ao menos nos últimos dias, a vida que me foi dada, e essa sensação é absolutamente maravilhosa!

Ah, no quarto dia, reencontrei a Maria Pascoal! Mas esse é um assunto para o próximo texto…

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