Luiz Eduardo de Carvalho
Toda poeira da calçada, lançado pela editora Patuá, em março de 2025, é o primeiro romance do já consagrado autor de livros infantis e de crônicas adultas, Ricardo Ramos Filho. Por bem, quis o experiente artista trazer, para essa incursão no novo gênero, duas grandes qualidades fixadas pelas práticas anteriores e transcendê-las ao novo universo narrativo da ficção longa: da literatura infantil e a prevalência do enredo e da história contada; de permeio, herança da crônica, o olhar que não deixa de flanar pelo mundo mesmo quando o exterior está cinzento, nebuloso ou, até mesmo, interditado pelo imposto isolamento social.
Com essa naturalidade de bom contador de histórias e com o traquejo de arguto observador de comportamentos próprios e alheios, transcritos em instantâneos da condição humana, lançou-se Ricardo na composição estilística de uma obra que, como toda dialética, transcende os contrastes das premissas em uma síntese própria e depurada. O resultado é um romance como pouco se vê por aí na contemporaneidade tão empertigada por arroubos e excessos de experimentalismos que, quase sempre, esvaziam o principal: uma história bem contada como metáfora de algum elemento humano de relevância. No caso em tela, a passagem para a velhice.

Falar do caso em tela é, em última análise, um trocadilho, uma vez que o enredo principia sua jornada de descobrimentos justamente quando seu protagonista se depara com uma tela deposta num monte de lixo, do qual ele a resgata e leva para casa, com o fito de se propor um aprendizado em relação à linguagem pictórica, que ele próprio diz ignorar. Parece caso fortuito, ainda mais quando aliado a outros, sem prevalências de importância, que lhe atravessam a vida, postos mesmo como pequenas crônicas cotidianas que, isoladamente, revelam sentido próprio, porém não constitutivo, em si, do mote maior que só se concatena com o decorrer do romance. Eis a genialidade na arquitetura dessa obra: da justaposição dessas intercorrências se depreende o sentido maior. Cada pequeno fato narrado sob a prosaica perspectiva de episódios aparentemente dispersos se soma aos demais com sinergia e, porque a ilustram, acabam constituindo a grande metáfora do livro, que se traduz em um importante rito de passagem da vida humana rumo aos seus últimos capítulos.
Atentem ao título que diz “toda poeira” e não toda a poeira, sutil diferença locucional: toda poeira, sem o artigo definido, é qualquer poeira, uma genérica a representar qualquer outra, uma sinédoque! E o que é poeira senão, intrinsecamente, uma sinédoque, uma mínima partícula de algo difícil de determinar apenas pelo indício do fragmento? Ou, conforme nos ensina o Aulete: o pó fino que se acumula, com o tempo, sobre os objetos; partículas que se levantam do chão ou, em sentido figurado, a vaidade e a presunção, coisa passageira e sem valor ou valia; e calçada, senão o caminho cotidiano que atravessamos repetidamente durante a vida em qualquer deslocamento, em qualquer transição?
Um rito de passagem, portanto, relativo ao envelhecimento, ao reconhecimento das poeiras da vida, à virada da esquina rumo às últimas quadras na calçada da existência, justamente a parte do trajeto em que as importâncias de antes se tornam desimportâncias e vice-versa, trajeto no qual se reveem as presunções e as vaidades.
Momento em que a aposentadoria vem libertar, com vazios provocativos para novas ocupações, aquilo que a lida profissional preenchia com o sufocamento das possibilidades e, nesse sentido, sobram ocasiões para o olhar presente sobre as banalidades cotidianas que perfazem o próprio viver e, quem sabe?, para assumir algumas prioridades adiadas que lhe emprestam maiores significados. Ponto da vida quando a síndrome do ninho vazio torna a casa desabitada grande demais e, daí, a necessidade de uma nova habitação mesmo mediante os sabidos transtornos e desconfortos das mudanças. Circunstância em que surgem maiores preocupações com a saúde física e mental, com a qualidade de vida, com o medo da morte à nossa espreita e de nossos amados, com cuidar dos ainda mais velhos, com a ressignificação dos mortos, com o redimensionamento da espiritualidade, com os derradeiros desafios do autoconhecimento… Dias também voltados ao futuro e novas realizações, nos quais o ócio criativo faz contemplar, com mais acurada objetividade, perspectivas artísticas jamais experimentadas, como a própria experiência de redigir um romance depurado no longo tempo vacante, obra que possa abarcar, depurar e exorcizar todas essas novas significações para a vida em embate com mais um de seus importantes pontos de transição.
Assim, em Toda poeira da calçada, com delicadeza, Ricardo Ramos Filho empreende uma sutil construção simbólica, dessas em que os significantes se somam, atentos a uma dinâmica feita de hiatos de incorporação, com o vagar necessário a se constituir com organicidade nos significados pretendidos, dando conta da expressão do sentido e da dimensão que os extrapolam. Expressionismo a valorizar o subjetivismo e as emoções postos em tela, porém sem carregar nas tintas ou delatar os rastros das pinceladas nos traços fortes como fazem os expressionistas.
Para não antecipar outras surpresas, atenho-me a exemplificar com o tema já apresentado do quadro resgatado do lixo: encontrado na calçada, apoiado numa parede pichada, descartado num cenário urbano em que a natureza se encontra exilada em uns últimos índices de quase inexistência, como o das maritacas em alvoroço numa esparsa árvore próxima, ou o de uma nódoa verde num parque nas redondezas, inserida numa topografia em que as montanhas são feitas de prédios e, no mais, uns felinos domesticados e confinados ao território de um sobrado geminado e uma pomba urbana e moribunda, estrebuchando sobre a imundice do asfalto. Em meio a tanta desnatureza, salta a confirmação no tema da tela que permeia a obra como a mais potente metáfora: uma natureza morta!
Desse modo, o símbolo construído presta-se, senão à ironia, ao desmanche da essência natural. O real, avaliado sob essa dimensão simbólica, feita da justaposição de índices de deterioração da própria natureza humana, constrói-se em camadas interpretativas de diferentes profundidades a serem experimentadas pelos leitores mais aparelhados em encontrarem congruências e, sem prejuízo ao deleite, pelos tão só afeitos ao entretenimento das narrativas fluidas e salpicadas de temas subjacentes, o que é, em todo caso, artifício fundamental à boa e universal literatura.
Também com as metáforas secundárias, porém operantes na construção da narrativa, repete-se o efeito: sem pressa e sem exageros, os sentidos se somam para traduzir o que poderia ser entendido como relatos da banalidade cotidiana em um espelhamento refinado do sentimento de mundo. Assim, o retrato dessa dimensão simbólica deriva do enredo, e não de digressões numa enfadonha perspectiva autoral ou do escamoteamento de inócuos fluxos de consciência cansativamente urdidos a fim de expressar opiniões a respeito de tudo o que é contado, ao invés de deixar que o todo narrado enseje conclusões próprias aos leitores. Eis a maior força de Toda poeira da calçada: seu universo diegético, ainda que mergulhado em constante diálogo com o mundo real, basta para ilustrar o que, fora dele, são teses e não arte, mas nele, desse modo inseridos, são a tese da boa arte: representatividade!
Bato o ponto nisto: vi-me, senti a derradeira transição da vida plenamente representada pela obra. Para mim, lê-la foi passar momentos íntimos com um amigo, nos quais só encontrei espelhamentos de minha própria existência. Todos experimentarão essa busca de alguma arte, de qualquer arte, que resgate a nossa importância, feita tão desimportante neste mundo de valores jogados ao lixo! E, assim, Toda poeira da calçada, como intencionado pelo seu protagonista e, decerto, pelo seu autor, tocará os corações de todos os leitores!