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Catábases do contemporâneo: a crise da linguagem

Pieter Bruegel, o Velho, "A torre de Babel" (c. 1563)
Museu de História da Arte, Viena

Jocê Rodrigues

No princípio era o Verbo. E nunca estivemos tão distantes da noção da palavra como força motriz criadora e transformadora. Nossa linguagem, assim como a maneira de nos comunicarmos com outras pessoas, está cada vez mais rápida, mais ansiosa. Repete, via de regra, o padrão monótono e sem viço do algoritmo desritmado das redes. Descompassada, sem ordem. Apenas volume feito de pedaços extirpados de uma realidade muito maior.

Perdemos o tato. Perdemos o trato da relação verbal. Uma perda que se reflete diretamente no comportamento para com o outro. A esfera do cuidado está cada vez mais negligenciada. Afinal, não há tempo para ele. Não há espaço para a vivência do tempo e, portanto, não há amor ― já que para amar é preciso disposição para o cultivo e o cuidado, coisas que exigem, é claro, tempo, atenção e estima. Não aquela atenção fragmentada de um post de 140 caracteres, mas sim a atenção necessária para a leitura da Divina Comédia ou de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, haja vista que, “na experiência humana, não há fenomenologia mais complexa do que aquela dos encontros entre texto e percepção”.1

O livro, como objeto físico que guarda em si os caracteres da vida interior, para o bom leitor que busca o desvelamento [Unverborgenheit] é uma iconóstase que divide o mundo natural do metafísico e através do qual é possível adentrar a antessala do infinito. A leitura é hoje como uma oração silenciosa por meio da qual inteligência e imaginação se elevam aos confins do sagrado. No entanto, cada vez menos preces são feitas, já que o número de bons leitores está cada vez menor.

Em comparação ao estilo e aos meios de leitura que temos hoje, mediados por telas, teclas, vídeos e anúncios, o apego do bom leitor ao livro (entendido como conceito em torno do qual orbitam signos diversos e não apenas como parergon) se apresenta como ato de amor e de imaginação em contraposição ao ato quase pornográfico e efêmero da fantasia. De acordo com as considerações de Roger Scruton, que revisita as reflexões feitas por S. T. Coleridge em seu Biographia Literaria, de 1817, no primeiro existe ponderação; no segundo, desempenho.2

A fantasia aparenta ser hoje a manifestação maior do ato da leitura, isso quando ela de fato existe. Poucos parecem ser aqueles que se dedicam atenta e seriamente a ela. Os vídeos tutoriais que “explicam” Heráclito e Aristóteles em dez minutos fazem muito mais sucesso do que os próprios filósofos referidos. No fim, restam apenas fantasmas e sombras dos dois, que se mostram suficientes para aqueles que os procuram nesse tipo de conteúdo e que estão interessados unicamente em parecer mais inteligentes e bem-informados durante seus jantares e reuniões.

É que a leitura, a leitura séria, como aquela defendida por George Steiner (que não deve ser considerada apenas como uma leitura crítica), exige muito mais do que apenas ouvir comentários breves enquanto se navega por vinte abas abertas com os mais variados temas. Exige solidão, silêncio e paciência. Muita paciência.

A opção de aumentar a velocidade de uma mensagem de voz enviada por um aplicativo de mensagem, que há pouco tempo foi saudada como uma revolução da comunicação, não é sinal de evolução. Ela antes evidencia o declínio da disposição e da paciência e erige um monumento à paixão por tudo o que é passageiro, efêmero e sem viço. A pressa é o signo dos tempos atuais e a escrita, com seu sistema único de configuração por caracteres e sinais que buscam dizer e representar algo, necessita mais do que um rápido golpe de vista.

Ainda que possa ser verdadeira a aversão de Sócrates e de Platão à estática da palavra escrita, não é possível pensar o desenvolvimento da sociedade sem ela. “A escrita é o arquipélago no meio de uma imensidão oceânica da oralidade humana”, sem a qual seríamos incapazes de apreender toda a imensidão da vida interior. Já no século XII, vivendo na onda crescente da cultura livresca, Hugo de São Vítor se preocupava com o desenvolvimento espiritual e intelectual dos seus colegas e alunos através da leitura, da reflexão e da contemplação, guiadas por regras que parecem impensáveis para a mentalidade atual, tão comprometida com os resultados rápidos, sem pausas para o exercício da ponderação:

Existem principalmente duas coisas por meio das quais uma pessoa adquire conhecimentos, ou seja, a leitura e a meditação. Destas, a leitura detém o primeiro lugar na instrução […] São três as regras mais necessárias para a leitura: primeiro, saber o que se deve ler; segundo, em que ordem se deve ler, ou seja, o que ler antes, o que depois; terceiro, como se deve ler.3

Aqui, outro obstáculo se apresenta: como ler bem quando grande parte do que se produz hodiernamente é feito para não ser compreendido?

Caravaggio, “Narciso” (c. 1600)
Galeria de Arte Antiga, Roma

As narrativas labirínticas (no mau sentido do termo) dominam o cenário atual. Mas, antes delas, precedeu a interpretação labiríntica. Quando o sujeito dessa nova sociedade em crise se tornou falsamente livre para interpretar tudo do jeito que bem entendesse, acabou por desencadear uma comédia de erros difícil de desfazer, fruto de leituras preguiçosas e desatentas às intenções originais, seja do texto ou do autor, que acabou por focalizar somente os anseios e as limitações técnicas e cognitivas do intérprete. Uma leitura, portanto, egoísta. Sem compromisso com a alteridade, pois, assim como fez Narciso, esse leitor “livre”, tresloucado e embevecido por sua própria impressão de mundo, busca o reflexo de si mesmo na superfície de cada página que lê. 

Negar limites para a interpretação não é impor liberdade (palavra bastante em voga mas pouco discutida a fundo). É, antes, atrofiar os músculos da imaginação, constantemente bombardeada por memes e vídeos curtos e descartáveis. Não é resistência, é rendição. Entrega de bandeira e de esforços.

Não é segredo que o próprio Umberto Eco, que deu o pontapé inicial para a discussão com a publicação do seu Obra aberta, em 1962, viu-se de frente com a necessidade de tentar frear a descida ladeira abaixo da sua teoria pelas mãos de críticos e leitores mais emocionados. Trabalhos como Lector in fabula (1979), Os limites da interpretação (1987) e Interpretação e superinterpretação (1992), publicados décadas depois, tentaram dar conta do recado, mas o estrago já estava feito.

Essa tendência de encarar a literatura e a arte como terras de ninguém fez com que os autores que, antes de mais nada são também leitores, passassem a criar de maneira labiríntica no intuito de não ficarem por fora da moda. A partir daí, um ponto sem retorno acabou por se formar. Escreve-se do jeito que bem se entende e se interpreta da mesma maneira. Um jogo de cegos guiando sombras entre escombros de linguagem.

Umberto Eco

Tomemos como exemplo a poesia brasileira atual. O fenômeno poético se transformou num conjunto de palavras fáceis, sem profundidade, com signos imediatos e sem força duradoura. Um poema hoje só é poema se atinge a superfície, se apenas move a água do espírito como uma folha que pousa sobre ela. Qualquer coisa para além disso é considerado complicado demais, clássico demais, denso demais. Sendo assim, é melhor descartá-lo e focar somente naquilo que for rápido, ligeiro e malfeito. Nesse tipo de criação não existe compromisso com as próprias forças internas e com as forças do mundo. Hoje, todo mundo é poeta ― basta quebrar algumas frases em algumas linhas e ter likes o suficiente para comprová-lo.

A relação nociva da livre interpretação não se resume ao circuito autor-leitor. Ela reverbera igualmente nas relações cotidianas e interpessoais, manifestando-se diretamente na linguagem, no ato da fala, na transmissão oral de mensagens. “No dia a dia, tal qual na literatura, a forma como nos comunicamos pode ser tão importante quanto o que comunicamos. As palavras que usamos são como as roupas que vestimos”,4 ensina tão bem Northrop Frye, para quem a decodificação da linguagem sempre representou uma missão de inegável importância.

A linguagem é o objeto próprio da inteligência. Quando falo “linguagem”, me refiro àquela exclusiva do ser humano. Complexa, rica, com inúmeras possibilidades. É pela linguagem que o ser humano também se instala em sua realidade radical,5 que se coloca em posição de existência propriamente dita. “Por mais tosco que fosse o entendimento de um homem, sempre seria superior ao dos irracionais”,6 escreveu Borges no seu famoso conto “Os imortais”. Ela é, em suma, uma forma de se vivenciar o tempo, um “elemento que estabelece uma relação possível e bem dimensionada entre o homem e a realidade, que não cria a realidade, mas traduz, compreende e organiza o que percebemos da realidade”.7

Dietrich Schwanitz, em seu extenso e prazeroso estudo sobre a cultura, expõe alguns pontos que demonstram a especial posição do ser humano em relação aos animais, bem como a necessidade de compreensão dessa extensão única:

– por meio da língua, o homem consegue criar um mundo paralelo e simbólico, que ele compartilha com outros homens; 

– nesse mundo paralelo são possíveis algumas coisas que não existem no mundo real: por exemplo, negar. “O cão não mordeu o homem”; a negação nos permite criar mundos virtuais, irreais, possíveis, fictícios e fantásticos; 

– é somente por meio desse mundo paralelo que o ser humano consegue assumir o papel do outro e compreendê-lo; 

– o significado objetivo de um símbolo é a base de toda objetividade e de toda instrumentalização, desde o martelo, passando pela escrita, até a ciência; 

– por meio da língua podemos dar uma forma mais precisa a nossos difusos estados anímicos e torná-los acessíveis à nossa própria percepção; com isso, a língua torna possível o pensamento e a reflexão.

– quem não consegue dominar perfeitamente sua língua e não é capaz de se expressar corretamente também não é capaz de pensar corretamente; 

– aquele a quem estão vedadas todas as províncias da língua só participa da sociedade de forma limitada; todo um continente de símbolos lhe permanece inacessível;  – quem só consegue articular-se de modo deficiente também tem uma visão muito obscura de seu próprio mundo interior.8

A sociedade em crise hoje resiste à riqueza da linguagem como um organismo que resiste a um vírus. Estamos ficando imunes a ela, ao seu alcance, à sua abrangência. Da mesma forma que uma vacina (profanando aqui o paradigma imunitário de Roberto Esposito) necessita apenas de uma pequena parte ativa de um vírus para criar uma proteção, o pensamento contemporâneo intenta injetar em si apenas um pequeno fragmento de linguagem com o objetivo de ficar imune ao todo dela. Quanto mais curta, concisa e pouco trabalhada for uma mensagem, melhor.

Nesse contexto, a linguagem complexa, para além do nível mais baixo de comunicação, surge como perigosa em dois extremos. De um lado, como aquela impenetrável, que exclui e que segrega, a exemplo da linguagem acadêmica dura e do atual delírio sobre a construção e implementação de uma linguagem neutra; de outro, aquela estratificada ao máximo, empobrecida e esvaziada de aspirações maiores do que a rápida e instantânea comunicação.

O que temos hoje, em relação àquilo que pode ser considerado como as potências da linguagem, em grande medida é um rascunho dela. Perguntas retóricas, frases de efeito, sentenças curtas, diálogos fast food, quase intragáveis: assim poderia ser resumida a estrutura da conversação contemporânea. Conversas e cabeças vazias de sentido.

O culto ao efêmero, ao passageiro, às frases de impacto e de pouca reflexão apontam uma falha, uma que não é estrutural, mas que vem sendo construída desde os discursos herméticos e confusos da filosofia dita pós-moderna. O importante não é entender, mas fingir que entendeu.

Além disso, o presente uso da linguagem escancara a supressão da alteridade. Os discursos estão voltados para quem os enuncia, como num grande monólogo.

Diferente do efeito do solilóquio, tão bem empregado pelos personagens shakespearianos,9 que conseguem se ouvir e a partir disso refletir sobre ações, impressões e emoções, os grandes monólogos hoje disfarçados de conversações carregam a missão (consciente ou inconsciente) de anulação do outro ― passo importante para a homogeneização e integração do indivíduo a um grande consciente coletivo, que busca a simples repetição de comandos e palavras de ordem disfarçadas de busca por liberdade. Uma derrapada grotesca na construção de uma comunicação efetiva, já que, “na sua função de expressão, a linguagem mantém precisamente o outro a quem se dirige, que interpela ou invoca”.10

Somente dessa forma, através da “revelação do outro”, da relação inconteste entre sujeito e objeto, é que ela se manifesta em sua integridade. De outro modo, quando a utilizamos para borrar o Outro em função única da nossa própria afirmação, ou da afirmação de grupos específicos, o resultado não pode ser outro senão um fragoso duelo verbal entre surdos.

Se considerarmos a linguagem como uma forma de vivenciar o tempo, é penoso notar o quanto o sujeito da sociedade contemporânea, em toda sua extensa crise, vê-se perdido nas areias de uma ampulheta desregulada e destinada ao desvario constante de uma desconsolada aceleração.


Referências

1 STEINER, George. Aqueles que queimam livros. Trad. Pedro Fonseca. Belo Horizonte: Editora Âiné, 2018, p. 15.

2 SCRUTON, Roger. Beleza. Trad. Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 77

3 SÃO VÍTOR, Hugo de. Didascálicon da arte de ler. Trad. Antonio Marchioni. Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p. 45

4 FRYE, Northrop. A imaginação educada. Trad. Adriel Teixeira et al. São Paulo: Vide Editorial, 2017, p. 116.

5 MARÍAS, Julián. Antropología metafísica: la estructura empírica de la vida humana. Madrid: Revista de Occidente, 1970, p. 269.

6 BORGES, Jorge Luis. O aleph. Trad. Davi Arrigucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 16.

7 CARREIRA, Luiz Augusto Nunes Netto. O bom leitor: a ética da leitura e a intelecção amorosa da obra de arte literária. Brasília, 2015. Tese de Doutorado em Teoria Literária, Universidade de Brasília – UnB, p. 25.

8 SCHWANITZ, Dietrich. Cultura geral: tudo o que se deve saber. Trad. Beatriz Silke Rose et al. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 377-378.

9 BLOOM, Harold. Shakespeare: the invention of the human. New York: Riverhead Books, 1998.

10 LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 59-60

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