Delicadas reinvenções no reino das breves fábulas

Wilhelm Marstrand, "Dom Quixote e Sancho Pança" (c. 1847)
Museu Nivaagaard, Dinamarca

Luiz Eduardo de Carvalho

Alguns livros, como certos doces, levam-nos a devorá-los compulsivamente. E não falo apenas dos recheios feitos de harmoniosas misturas de letras, mas também da forma que o contém, das coberturas e confeitos, do que primeiramente salta aos olhos antes da degustação. Assim me chegou As mil e uma noites por Dom Quixote da La Mancha, de Adriana Bandeira. Uma obra feita de atrativos: a começar pela linda capa, em textura e imagem; seguido pelo miolo inaugurado com bela ilustração e com um instigante e preciso prefácio, coroado por uma diagramação delicada. Um primor de projeto gráfico da Editora Bestiário.

Lá dentro, onde moram os sabores mais íntimos, encontrei uma prosa poética de magnetizante tessitura, fragmentos que alternam breves e profundas provocações, ficticiamente redigidas por Quixote, com raptos das emoções espelhadas em sua voz na forma de comentários que mimetizam a percepção de uma reinventada Sherazade acerca dos estímulos tão bem mimetizados desde o clássico cervantino. Assim se estrutura a obra e se decifra o enigma contido em seu título. É maravilhoso perceber, nas pequenas narrativas, a dicção de fábulas sufis mescladas à voz com que Cervantes dotou o imortal personagem, cuja fala a autora emula com dupla verossimilhança nessa inextricável síntese entre os dois grandes personagens da literatura atemporal.

Adriana Bandeira é autora experimentada. A psicanalista gaúcha já nos brindou com Chá das cinco (AGE, 2006), Escritos de calabouço (Patuá, 2018) e Cartas trocadas (Bestiário, 2022), obra feita em parceria com o contista, poeta, dramaturgo e tradutor uruguaio, Jorge Rein. Por isso, não surpreende que ela nos surpreenda! E que delícia estar assim: preso ao visgo que me capturou do minuto em que tirei o exemplar do envelope até o ponto final desta resenha.

Tive o prazer, antes de conhecer sua obra, de conversar com Adriana Bandeira no Usina Literária, o podcast semanal que produzo para dialogar com a literatura brasileira contemporânea e que, além de ir ao ar na Sensações Webrádio, pode ser ouvido no Spotify. Naquela conversa, a autora contou que o livro foi redigido durante o isolamento solidário vivido em decorrência da pandemia do Covid e anunciou, para nossa sorte de leitores, que virá uma espécie de continuação, Os cadernos de Dulcinéia, que pretende dar contorno de existência a essa personagem imaginada por Quixote e que tão bem representa umas tantas mulheres reais.

Ainda segundo Adriana, As mil e uma noites por Dom Quixote de la Mancha representa o coroamento artístico, a materialização em obra, de um velho hábito seu, cultivado desde tenra idade: escrever como se fosse ela o próprio Dom Quixote – e ela frisa: não escrever como se fosse Cervantes, mas como se fosse seu mais renomado personagem! Tal mania mostrou-se-lhe, à sombra dos horrores da pandemia, o único instrumento vislumbrado para escrever com delicadeza a respeito do medo, inclusive o de nossa possível extinção. Não bastasse, imaginou ela, tal reflexão só se consumaria se o cavaleiro da triste figura tivesse como interlocutora a princesa Sherazade e emulasse, em sua própria narrativa, o modo de narrar da personagem das Mil e uma noites. Arquitetura engenhosa para uma obra literária que abre uma miríade de possibilidades temáticas.

As escolhas não poderiam ser melhores, nem render melhor resultado: a angustiante espera de Sherazade ao longo da sucessão das intermináveis noites de confinamento, associadas aos sonhos utópicos de liberdade de Quixote dão o tom exato dos sentimentos experimentados naqueles dias expectantes e cativos. Ou, nas palavras de Quixote que abrem a obra: “olha o traço que se põe ao final do dia. O que a noite esconde entre ela e a vida: a escuridão e as estrelas tardias. Repara, Sancho, que o sempre é tempo demais para a luta e o amor das idas. Mas nós conhecemos! E ele é vasto como toda a poesia!” E responde, ele mesmo, imitando a personagem-narradora Sherazade: “a cada vez, para não morrer, conto uma história. Como a noite do deserto me ensinou. Nada me cabe que não seja escrever o depois. Era uma vez uma Canção e mesmo que não fosse cantada, vinha ao pássaro. Não pelo bico ou pelos olhos. Surgia nas asas e sem querer, sem poder, elas voavam. O pássaro olhava”.

Como no transcrito acima, sucedem-se mais vinte e três minicontos com igual composição poética, reflexiva e narrativa: uma declaração na voz do Quixote e o respectivo eco que simula respostas de uma Sherazade a apresentar inusitados personagens: o tempo e o vento, a voz e a alegria, a vigília e as horas, o horizonte e o sonho, o destino e o apocalipse… Eros e Tânatos, em sua eterna pulsão.

Prosa poética de imenso dulçor, sem os arabescos de coreografias mal arquitetadas, nem o forjado peso da morte das asas que, nesta obra, fazem os leitores se alçarem ao êxtase. Fabuloso convite fabular ao diálogo com a literatura universal e com os arquétipos humanos sem vestes de fetiche, sem redemoinhos de próprio umbigo! Um doce delicioso, para ser comido com a pressa e gula de criança e, depois, para ser revisto e degustado com a calma contemplativa dos prazeres da busca pelos secretos sabores e aromas escondidos entre a fome e o deleite!

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