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Sete amores

Luiz Eduardo de Carvalho

Sete e sete são catorze, com mais sete, vinte e um! Sete contos retratam sete manifestações da imaterialidade do amor materializadas em sete relações amorosas diversificadas para abordar sete distintos temas subjacentes na una e diversificada composição do livro Portas e vãos, que David Oscar Vaz lança pela Editora Urutau. Eu, leitor, por detrás da capa do livro, qual de uma porta, e espiando pelos vãos de suas páginas, qual pelas frestas de janelas, flagrei-me ávido voyeur das vívidas imagens tingidas com a paleta das confidências nessas histórias de alcova, quase todas ambientadas em recintos fechados e apartados dos olhares de demais intrusos, concedendo o privilégio da exclusividade na audiência e na observação de seus mais íntimos segredos.

Se é verdade que cumpre ao bom escritor fazer com que a literatura e a vida vibrem em frequência consonante, harmonizadas no timbre que emana do relatado em tradução potente e sonora do pasmo ante a realidade, David Oscar Vaz soa como diapasão a afinar a sua narrativa do conto “A flor de Marcela”, que abre a coletânea encerrada por trás de tantas Portas e vãos. Um delicado jogo de correspondência entre o que a arte perscruta com o fito de insinuar como ocorrências concretas de fatos, como se fossem delatados relatos de uma imaginada realidade que nos convencem de sua existência mediante o pacto de reconhecimentos e estranhamentos que a verossimilhança garante.

Mal dissipado o encanto do primeiro conto, prende a obra com seu visgo pelas páginas de “A noite dos viúvos”, na qual aniversariam cruéis fatos determinantes do enredo, além de outras significativas efemérides correlatas ao cerne da trama – inclusive a do nascimento do autor (não declarada no texto), o que inocula suspeitas, senão de citações biográficas, ao menos de referências autoficcionais. Mais do que a concretude dos acontecimentos, prevalece um clima que ecoa e transborda a latência de segredos entre os personagens, os quais, revelados para a surpresa apenas do leitor, desimpediriam a consumação de um ato amoroso obliterado por renitente luto. Mais espanto diante de uma nova cena enclausurada numa sala onde ecoam os chamados de fantasmas do passado que interditam os desejos presentificados, propondo o jogo psicológico de um triângulo amoroso extrapolado para a arquetípica tensão entre os princípios da libido e de sua antagonista morte, sob a oposição entre Eros e Tânatos. Um primor!

O terceiro texto, “O coração de Carolina”, acontece em uma cela de presídio, na qual, à guisa de confessionário, um padre toma a confissão de um pedófilo detento num extenso diálogo sem contrição, quase sem mediações do narrador, economicamente postas quase como rubricas teatrais, artifício narrativo que empresta ao conto a expressividade da dramaturgia. Mais uma vez, fatos circunstanciados na realidade dos personagens e outros vindos de uma narrativa literária emergente de dentro da história e que é decupada em especulações interpretativas se justapõem para tecer o misto do que se conta com o que é contado, a fim de que reste sugerido, no vão do que se lê, a sentença na mente do leitor. E isso não é fácil de se encontrar por aí pelo simples fato de que é muito difícil de ser feito, e portanto restrito a poucos gênios criativos e destinados a afortunados leitores, como os deste Portas e vãos. Quanto ao fortíssimo tema e à forma como é relativizado nesse terceiro conto, abstenho-me de comentar, pois exigiria toda uma resenha à parte, o que estragaria o pasmo dos leitores!

A seguir, vem um relato em fluxo de consciência com o mesmo título do livro, “Portas e vãos”, que acontece num divã de psicanálise, mais um ambiente fechado a suscitar o ensejo de confissões de atos e intenções que, pautados em libertinagem sexual, vivem apartados dos meios sociais e familiares. Conto de virada, com um final surpreendente que só reforça o contágio libidinoso traduzido na excitação que um relato libertino bem feito pode trazer.

O quinto conto, “Chuva oblíqua”, é homônimo do poema do ortônimo Fernando Pessoa que, fluído em bela prosa poética, dialoga, na própria dicção pessoana, com o heterônimo Álvaro de Campos, repleto de citações mais ou menos explícitas a poemas famosos como “Tabacaria”, do qual emerge o Esteves, personagem coadjuvante em ambos os textos. É uma experiência narrativa que, ao transcender o decalque ou a paráfrase e se apropriar da linguagem do poeta, constrói-se com engenhosa arquitetura textual, atestando o ecletismo estilístico de David Oscar Vaz.

Se em “Este mundo é todo teu”, a cena não se dá restrita a um espaço fechado, ainda que circunscrito a um cenário insular, no caso, a Ilha da Madeira, a redução drástica é a do tempo, que oferece apenas um dia para a realização da incontível atração entre os protagonistas. No entreposto das rotas da migração, decorre senão o mais lírico, decerto o mais emotivo dos enredos da obra.

A derradeira história do volume, “A trama de Afrodite”, é o mais paradoxal dos contos, pois, embora seja aquele em que o amor se realiza de forma mais positiva e sem percalços, é também o que apresenta um desfecho colateral dos mais cruéis e trágicos, conforme simbolicamente prenunciado pelo rito da imolação de tantos cabritos que, para festejar o Natal, habitavam a memória do personagem. Um amor que não aconteceria, não houvesse a possibilidade de expiação do próprio destino desviado pelo sacrifício do trágico bode. Evoé!, amantes abençoados, porém maculados pela dor alheia.

Não bastasse o brilho individual de cada história, há algo mais do que o tema central do amor e os diferentes temas subjacentes às relações expostas. Algo a dispô-las em constelação: aqui e ali, o pano de fundo político, citações a filmes de Hitchcock ou a personagens de obras alheias que, aos modos do cineasta, fazem aparições quase disfarçadas na própria obra; índices metalinguísticos amiúde, sobretudo os ecoborgianos, com a inserção de obras fictícias a influenciar ou determinar os enredos ou outros vestígios a indicar ora a arquitetura, ora claras citações no enredo ou em epigrafes; a reincidente herança lusitana; cenas passadas em Guarulhos; e mais outras sutilezas, presentes em toda a extensão do livro, principalmente relacionadas à tessitura da elegante e precisa linguagem, detalhes que conferem coesão ao conjunto, apresentando-o em uma articulada e potente obra com unidade temática e narrativa.

Acolho, por fim, alguns aspectos da arguta leitura de Moacyr Godoy Moreira que, no posfácio, intitulado “Vãos são portas e janelas: uma trilha de mão dupla entre passado e presente”, ressalta aspectos rodriguianos nas tragédias urbanas e suburbanas de algumas tramas familiares trazidas por David Oscar Vaz e a sua elegância machadinha ao transpô-las desse amálgama de memória e imaginação que, para o leitor, torna-se a única realidade possível de ser experimentada. No caso, saboreada!

A edição traz um competente trabalho de projeto gráfico e a escolha da imagem da capa é magistral. O agourento corvo a ecoar, na mente do leitor letrado, a sentença do poeta Poe: “nunca mais”. É assim: o amor consome-se e, dele, restam apenas as narrativas enquanto houver memórias. Repeti-los, revivê-los? “Nunca mais, nunca mais”.

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